A efetividade da criminalização da LGBTfobia no combate à discriminação

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No dia 13 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento do Mandado de Injunção (MI) nº 4733 e da Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 que buscam, em suma, a criminalização da LGBTfobia perante a Suprema Corte.

Não é de hoje que vergonhosamente o Brasil ocupa o 1º lugar no ranking de mortes de pessoas LGBTs[1], dados estes que não vêm demonstrando queda. Curiosamente, o Brasil também é o país em que mais se consome pornografia trans no mundo[2].

Em primeiro lugar, vale dizer que a demanda pela criminalização da LGBTfobia é legítima. Se tivermos a condição de exercitar a empatia, evidentemente, não há como dizer que o Brasil adota medidas capazes de tutelar essa minoria contra a violência que, não sem razão, a apavora. Assim, não é absurdo, nem descolado da realidade, que o movimento LGBT busque efetivar sua proteção, enfim, apostando as fichas no sistema punitivo por acreditar neste como a única alternativa.

No entanto, tal aposta demonstra uma paradoxal visão sobre a esperança: por um lado, espera-se que o sistema penal vá efetivamente assegurar que a violência diminua, por outro, mostra que não há espaço para a adoção de medidas menos gravosas que possam ser utilizadas, pela urgência da resposta por parte do Poder Público. A par disso, os posicionamentos quanto ao tema são diversos e com linhas de argumentação e fundamentação das mais variadas.

Pois bem.

Não se pode olvidar que quando o assunto adentra o mundo jurídico quase sempre é possível a fundamentação de quase todo posicionamento em quase todos os assuntos. De certo modo, a afirmação de que “não existe certo e errado no Direito, mas sim posição mal fundamentada”, carrega grande coerência.

Muito embora se tenha argumentos bastante interessantes no sentido de que seria possível o STF legislar pela criminalização da LGBTfobia em MI e/ou ADO, e no sentido de que o STF deve criminalizar a LGBTfobia em razão da gravidade do assunto em comento, particularmente, acreditamos não ser possível.

De início convidamos o leitor a se despir para a leitura que se segue.

Não concordamos com a criminalização da LGBTfobia, porque a não observância quanto a separação dos Poderes proposta por Montesquieu nos parece muito cara à Democracia. É certo que, pelo ordenamento jurídico brasileiro, o STF detém – ainda que atipicamente – condição para legislar em algumas hipóteses de controle de constitucionalidade.

No entanto, entendemos que essa possibilidade não abrange normas penais. Isso porque, assim como o artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição da República (CRFB) prevê como cláusula pétrea o MI, o artigo 5º, inciso XXXIX, da CRFB – também cláusula pétrea – prescreve que não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (princípio da reserva legal).

Ademais, não se pode olvidar que a matéria penal tem particularidades próprias, por exemplo, a possibilidade de interpretação legal que comumente ocorre em outras áreas do direito não é aplicável da mesma forma na esfera penal. Tem-se que, os juízes, por exemplo, “deviam constituir-se em meros aplicadores das leis aos casos concretos, sendo-lhes vedada a tarefa de recriação das normas ou sua interpretação, dada a possibilidade de abusos, que se constituiriam em violação ao princípio da legalidade.”[3]

Ainda, “os princípios constitucionais penais são, é possível dizer, uma exigência de racionalização e legitimação, imposta pela Carta Constitucional, para elaboração e operacionalização do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito. São limites democráticos que estreitam e condicionam tanto as possibilidades de formulações legislativas penais referentes à privação da liberdade e da vida humana, direitos fundamentais, quanto à atuação judicial concernente à interpretação das regras criminais existentes.”[4]

Nesta esteira de entendimento, se faz relevante a abordagem do cenário jurídico constitucional brasileiro, tomando como elemento de análise as recorrentes medidas de exceção referendadas pelo Poder Judiciário por meio do seu crescente ativismo na vida política do país.

Em outras palavras, para além do debate se o STF deve ou não legislar e, portanto, cumprir um papel que seria exclusivo do Poder Legislativo, dentro dessa conjuntura político-jurídica, a fragilidade das instituições democráticas nacionais é um dos principais temas que devem ser colocados quando refletimos sobre tal questão.

Na verdade, não podemos deixar de reconhecer que a passagem do regime ditatorial para o regime democrático não apagou suas antigas características autoritárias. Pelo contrário, pois, embora tenhamos, na CRFB 88, a proteção explicita de direitos e liberdades individuais, a Lei Maior deu uma forte autonomia e independência ao Poder Judiciário, de tal maneira que se percebe atualmente uma alternância de supremacia, que foi do Executivo para o Judiciário.

Malgrado a suma importância em se observar o ordenamento jurídico naquilo que ele dispõe não se pode perder de vista que esse sistema busca, apenas e tão somente, a manutenção do status quo dominante. De modo que se presta a manter as mazelas sociais estruturadas da forma que o são como meio de controle social.

Não temos dúvidas de que a Ação Penal 470 e as Ações Penais decorrentes da Operação Lava-Jato são hoje o fio condutor do afastamento, da ignorância e da suspensão de garantias fundamentais resguardadas na CRFB. No entanto, a vida constitucional se faz de quimeras na República Brasileira há muito tempo, haja vista a histórica seletividade do sistema de justiça penal brasileiro que criminaliza os pobres, negros e periféricos aos calabouços modernos.

Apesar de ter regras bem claras, o ativismo judicial em matéria penal vem sendo cada vez mais comum no Brasil, o que nos traz – ou ao menos deveria trazer – grande preocupação. Recentemente tivemos uma “nova interpretação” da cláusula pétrea prevista no artigo 5º, inciso LVII, da CRFB, por meio do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) nº 43 e 44 pelo STF, oportunidade em que foi fixado o entendimento de que seria possível o início do cumprimento de pena com a condenação penal em segunda instância.

Na Ação Penal nº 470, por exemplo, o STF admitiu a configuração do dolo eventual em crimes de lavagem de dinheiro, mediante a suposta aplicação da teoria da “cegueira deliberada” em evidente distorção do instituto estrangeiro[5] e, mais uma vez, contrário ao ordenamento jurídico pátrio.

Em um cenário como este, ainda que seja uma pauta extremamente relevante, objetivar e clamar ao Poder Judiciário proteção penal mediante a criminalização da LGBTfobia, não só abrirá um precedente perigoso, como tonificará o ativismo dessa instituição que se encontra em relativa atuação excepcional.

O momento é oportuno para a lembrança de que em nome de necessidades relevantes, a suposta proteção concedida pelo STF em nome da plena expressão das garantias fundamentais da sociedade, abre espaço para que a justificação do uso de mecanismos de exceção encontre fulcro tanto na ocorrência de pautas legítimas, como é o caso da criminalização da homotransfobia, quanto por ocasião de relativização de garantias e direitos constitucionalmente protegidos.

Ao contrário do que acredita o senso comum, o direito penal não serve para “defender bandido”, o direito penal serve para proteger o cidadão das arbitrariedades estatais. Permitir que o STF dê, cada vez mais, interpretações para normas penais, nos parece um caminho sem volta que, a qualquer momento, pode nos surpreender (ainda mais).

Dado esse lampejo, pelos dois lados que se olhe, (a criminalização da LGBTfobia e a não-criminalização da LGBTfobia) entende-se, aqui, que há equívocos. A uma, porque já deveríamos ter entendido, enquanto sociedade, que o sistema penal jamais apresentou resultados efetivos contra a violência e a criminalidade, nem mesmo quando falamos de delitos menos graves (por não atentarem contra a vida humana diretamente), como os patrimoniais. A ideia de que tipificar uma conduta (torná-la crime) fará com que os indivíduos deixem de praticar crimes beira a ingenuidade, pois ignora a crescente “criminalidade” que nos cerca, independentemente do endurecimento penal[6].

Ademais, pelo outro lado, a falta de criatividade que nos rodeia é também assustadora: falhamos pela ausência de propostas que desafiem a óbvia demanda pela punição daquilo que nos aflige. Este fato não deve ser ignorado e a crítica ao sistema criminal não pode se pautar apenas na negação do sistema como legítimo e eficaz, mas também passar a ser propositiva.

O problema está na apropriação da lógica punitiva (como capaz de solucionar conflitos sociais) por parte dos movimentos sociais, o que faz com que nos distanciemos da busca por soluções mais eficazes, pois passa-se a satisfazer-se e aliviar-se pela punição e identificação do inimigo, do mau, do perigoso, dispensando a investigação das razões ensejadoras das situações negativas, ao provocar a superficial sensação de que, com a punição, o problema já estaria resolvido[7].

Vale observar que a equiparação da LGBTfobia ao racismo ignora também o precedente da Lei Maria da Penha que, da mesma maneira, visa tutelar uma minoria vulnerável, mas apresentando inovações, distanciando-se da lógica exclusivamente punitiva, estabelecendo medidas cautelares de proteção, a criação de uma vara especializada e atendimento multidisciplinar sem a necessidade de busca ao Poder Judiciário, procurando voltar-se, minimamente, à vítima e não apenas à vingança estatal oferecida pelo direito penal. Sem pretender adentrar na efetividade prática desta lei, o fato é que, pelo menos em tese, procurou-se uma nova forma de resposta para a mulher vítima de violência doméstica e familiar para além do efeito meramente criminalizador.

Nesse contexto, é importante pontuar o papel que a vítima tem no processo penal, percebendo que há, em verdade, uma ausência de protagonismo desta, que, além de submetida ao sofrimento da violência criminosa, ainda estará submetida a uma nova vitimização, por se deparar com um sistema burocrático, técnico e frio, que a fará reviver o trauma, mediante sucessivas declarações, em delegacias, em salas de audiência, etc., sem qualquer respaldo por parte do Poder Público.

Do ponto de vista do direito penal e do efeito que dele se espera, é contraditório esperar que um sistema pensado justamente para a manutenção do status quo será a nossa salvação, enquanto defensores de minorias. Mesmo porque, ainda que condutas LGBTfobicas passem a ser condenadas, é sabido também sobre quem tais condenações recairiam: à clientela habitual do sistema punitivo. Exemplifica-se esse apontamento com a enorme probabilidade de recaimento de um estigma de criminoso homofóbico sobre um segurança de casas noturnas do que sobre o próprio dono do estabelecimento que adota políticas discriminatórias.

Porém, o que ora se discute é justamente a equiparação do tratamento da violência LGBTfóbica ao tratamento da violência racista, que, por meio da criminalização, falhou miseravelmente, exceto, unicamente, pelo seu aspecto simbólico.

No entanto, não há como comemorar a criminalização do racismo como algo efetivo apenas pelo simbolismo que representa, pois o efeito simbólico do direito penal encontra a barreira de sua própria efetividade.

Deve-se levar em conta que, especificamente a Lei nº 7.716/89, que tipificou o racismo, prevê o racismo em duas modalidades: tanto como crime material (que exige resultado), consumado pelo impedimento ou obstrução de pessoas em razão de discriminação racial, quanto como crime formal (que não exige resultado), consumado pela negativa, recusa, indução ou incitação motivadas por discriminação racial. Para as duas modalidades, é necessário que se comprove o dolo do agente discriminador, ou seja, é necessário comprovar que as condutas se deram em razão de discriminação racial. Tal demonstração, por si só, já é de difícil comprovação, pois atua no âmbito subjetivo do indivíduo. Por mais que muitas vezes pareça óbvia a motivação para o cometimento da ação, provar (dentro de um processo formal e garantista) que uma pessoa agiu movida por um preconceito não é tão simples assim, na prática.

Não bastasse isso, percebe-se que uma conduta motivada por preconceito racial, muitas vezes, não pode ser enquadrada como crime racial, tendo em vista que, para o direito penal, deve ser observado o fato de que o resultado de um crime, em regra, prevalece sobre a sua intenção. Por exemplo, um indivíduo que pratica lesão corporal contra uma pessoa negra motivando-se por essa condição da vítima (ser negra), será julgado pelo crime de lesão corporal e não por crime de racismo, que apenas poderia ensejar uma causa de aumento por motivo torpe no momento da aplicação da pena.

Conclui-se, assim, que a aplicação da lei no caso do delito de racismo é difícil, tanto quanto ao próprio enquadramento no tipo penal, quanto pela comprovação do dolo (vontade de discriminar).

Tendo isso, pergunta-se: qual a efetividade da criminalização da LGBTfobia? O que se pretende com a criminalização da LGBTfobia? Qual política pública nós queremos?

Evidente que o país tem um grave e sério cenário para enfrentar. Não se pode em hipótese alguma permitir o genocídio de pessoas LGTBs e a inércia do Poder Público em não adotar medidas efetivas para a prevenção dessas condutas.

Não se pretende aqui, de forma alguma, deslegitimar o movimento LGBT, o MI e a ADO propostas perante o STF. Evidente que é urgente a adoção de medidas pelo Poder Público para se evitar o genocídio da população LGBT. Mas, o que se questiona é: seria a criminalização da LGBTfobia a saída para a proteção que se busca?

De uma forma geral, a busca pela criminalização de condutas nos traz sempre ao mesmo cenário: a suposta efetividade do combate ao crime apenas com a tipificação legal de condutas (o que deixa o Poder Público na sua posição de conforto pautada na omissão de propostas e de investimentos em políticas públicas sérias); e, a seletividade do sistema criminal, seus efeitos discriminatórios e o genocídio da população negra, pobre e periférica por esse sistema seleto, excludente e autoritário.

Nunca é demais lembrar que o direito penal é um instituto muito particular, em regra, por ser a ultima ratio, prevê ações que se pautam na repressão de uma conduta mediante o uso da força estatal, após a ocorrência do fato criminoso. Em outras palavras, a atuação do direito penal se dá após o crime. E mesmo para que uma conduta seja considerada crime, é necessário o esgotamento de todas as outras esferas de controle informal (escola, família, por exemplo) e formal (administrativo e civil), pois a atuação do direito penal, por sua gravidade, deve ser considerada em último caso, em última instância; e não como única e primeira alternativa.

As transformações sociais vêm nos colocam numa realidade midiática 24 horas por dia. Há um clamor popular pautado quase que unicamente nas paixões, que, requer, a cada dia mais, medidas mais severas para a repressão de condutas criminosas. Em vista disso, o direito penal simbólico vem ganhando cada vez mais espaço.

A professora Ana Elisa Bechara, nos ensina que, no intuito de por fim a angústia da sociedade insegura, “as normas elaboradas a partir dos discursos de emergência integram um Direito Penal simbólico, cujo objetivo é, antes de buscar soluções, demonstrar a especial importância outorgada pelo legislador aos aspectos de comunicação política a curto prazo na aprovação social das normas correspondentes. A partir desse modelo de política criminal, ou de política de segurança, consentâneo a uma ciência jurídica voltada exclusivamente à eficácia, cria-se um sistema jurídico tecnocrático, que visa a destruir as propostas de solução estrutural dos problemas sociais.”[8]

A grande questão que se nota é que a ausência de proposta de ruptura do sistema em questão não nos traz medidas resolutivas do problema. Voltamos ao mesmo jogo, ao mesmo Estado Policial, à mesma investigação inquisitiva, ao mesmo Poder Público que criminaliza a pobreza. A não proposta de ruptura nos traz aos enlaces do mesmo sistema penal seletivo, desumano e autoritário que reproduz as mesmas mazelas sociais; que prende e viola os direitos mínimos do mesmo grupo social: dos negros, dos pobres e dos periféricos; que não cumpre a sua função social de ressocializar; que joga o egresso de volta à criminalidade; pois, então, nos parece que a aposta no direito penal como o solucionador dos problemas sociais não é a melhor alternativa, justamente por não trazer qualquer proposta de inclusão da comunidade LGBT e por não trazer qualquer solução para que se evite o genocídio de pessoas LGBTs.

Por Claudia Linhares, Matheus Moraes e Tânia Ribeiro

Referências

Referências
1 O GLOBO. Brasil segue no primeiro lugar do ranking de assassinatos de transexuais. 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-segue-no-primeiro-lugar-do-ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23234780>. Acesso em: 16 fev. 2019.
2 REVISTA FÓRUM. Brasil é o país em que mais se procura pornografia trans e que mais mata pessoas trans. 2017. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/brasil-e-o-pais-em-que-mais-se-procura-pornografia-trans-e-que-mais-se-mata-pessoas-trans/>. Acesso em: 16 fev. 2019.
3 MELLIM FILHO, Oscar. Criminalização e seleção no sistema judiciário penal. 1ª ed. – São Paulo: IBCCRIM, 2010, p. 55.
4 LIMA, Alberto Jorge C. de Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais. São Paulo:Saraiva, 2012, p. 65.
5 LUCCHESI, Guilherme Brenner. Acertando por acaso: uma análise da cegueira deliberada como fundamento para a condenação por lavagem de dinheiro no voto da Ministra Rosa Weber na APN 470. Jornal de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 1, n. 1, p. 93-106, jul.-dez. 2018.
6 A exemplo, a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) nunca apresentou estatísticas positivas relacionadas à diminuição de crimes considerados graves.
7 KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. Disponível em: <https://we.riseup.net/assets/369699/74572563-Maria-Lucia-Karam-A-esquerda-punitiva.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2019.
8 BECHARA, Ana Elisa. Os discursos de emergência e o comprometimento da consideração sistêmica do direito penal. IBCCRIM, boletim 190/2008.