O Crocodilo, Direito e Saúde: Fracassamos

As vidas com plano de saúde, na prática, valem mais do que as vidas que não tem dinheiro para pagar um plano de saúde e dependem do serviço público superlotado e colapsado, em que sequer há sabão.
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No conto “O Crocodilo”, de Dostoiévski, um presunçoso burocrata, de ideias “avançadas”, é engolido por um crocodilo, acidentalmente, que estava sendo exibido em São Petersburgo, e, sem nenhuma angústia pessoal, passa a morar na barriga do réptil. Dessa posição confortável e segura, cujo isolamento lhe permite focar em suas ideias, decide proclamar um novo conjunto de normas para a melhoria do futuro da humanidade. Como ele explica “basta você se arrastar para dentro de um crocodilo, fechar os olhos e, no mesmo instante você inventa um milênio perfeito para a humanidade”.

Deixando de lado, essa pilhéria satírica fantástica com o espírito utópico “clássico” – pois os modernos jogaram um banho de água fria nas esperanças utópicas – Dostoiévski concentra a sua atenção em dois personagens antípodas: o amigo ingênuo do habitante do crocodilo, preocupado com sua saúde e que empreende inúteis esforços para resgatá-lo, antes que se dissolva nos sucos gástricos da fera e um alto burocrata, que recentemente fora persuadido por um importante capitalista de que a Rússia tinha grande necessidade de investimentos externos e expansão econômica e que o crocodilo é propriedade de um empresário alemão visitante, e qualquer dano a ele desestimularia a entrada de capital no país.

O próprio residente do crocodilo, embora “progressista”, concorda, com o raciocínio econômico do capitalista, antes de qualquer coisa, deve-se salvar a economia. Assim, rejeita-se todas as considerações humanistas, e o raciocínio utilitarista, o raciocínio consequencialista, triunfa sobre o ser humano, sobre a vida humana. O defensor da empresa capitalista e o idealista utópico estão de acordo e aceitaram as mesmas prescrições frias para a ação humana que não respondem a nada, a nenhum principio limite.

A ADPF 671 pedia que o Supremo Tribunal Federal estabelecesse uma autorização para que os poderes públicos requisitassem os leitos privados para estabelecer uma fila única de acesso aos leitos hospitalares, pelo SUS. O acesso aos serviços de saúde deve ser universalizado por meio do mecanismo de requisição administrativa previsto pelo inciso XXV do art.5 da Constituição da República para o enfrentamento da pandemia. Os governadores, em sua maioria, inclusive de Estados em que a rede pública de saúde estava em colapso, pressionados pelo empresariado, posicionaram-se contra.

A Confederação Nacional de Saúde que representa os interesses privados na área de Saúde propôs uma ADI para que o STF proibisse aos poderes locais de fazerem requisições de leitos privados sob a injunção econômica, da propriedade privada e livre iniciativa.

O ministro Lewandowski negou a ação 671 que pede a judicialização da saúde no enfrentamento a pandemia, para que se tenha fila única na garantia do acesso universal e igualitário aos serviços de saúde como forma de concretizar o direito humano fundamental à saúde e a inviolabilidade do direito à vida. Entretanto, o Direito não chegou antes, não impediu que se faça hierarquia de vidas, diante de um sistema de saúde público, sucateado e precarizado.

Apesar da COVID-19 não ser seletiva em seu contágio, é extremamente desigual em seu tratamento. As vidas com plano de saúde, na prática, valem mais do que as vidas que não tem dinheiro para pagar um plano de saúde e dependem do serviço público superlotado e colapsado, em que sequer há sabão.

E conforme divulgado na imprensa, protocolos médicos estão desconsiderando, em concreto, a igual dignidade da pessoa humana, escolhendo quem entra e sai da fila, em que ordem entram, e até quem, mesmo depois de iniciado o tratamento, poderá tê-lo suspenso. Na rede pública de saúde está se “escolhendo” quem morre e quem vive como é título da reportagem do jornal o Globo “Escolha de Sofia oficial: no Rio, mais jovens terão mais chance de obter vaga em UTI pra tratar coronavírus”.

Os critérios de discriminação para acesso a tratamento médico remontam as experiências totalitárias do século XX, especialmente o Nazismo, onde as vidas classificadas como “sem valor”, as pessoas com deficiências e doentes “terminais”, foram alvos do chamado T4, nome em razão do endereço da sede, uma ação que exterminou mais de 70 mil pessoas, através de um programa de eutanásia em massa.

Nenhum outro juiz alemão se manifestou contra a eutanásia em massa, a não ser um, Lothar Kreyssig, que em 1942 iniciou um processo público, acusando de assassinato o chefe do programa, sendo afastado do cargo no mesmo ano. Em 1928, ao iniciar a carreira no magistério, Kreyssig se recusou a entrar para o partido nazista e em razão disso foi punido com um cargo menor, o de juiz de casos de guarda de pacientes mentais em Brademburgo. E em 1940, ao notar um número espantoso de certidões de óbitos, enviou uma carta de protesto ao ministro da justiça de então, Franz Gurtner. Kreyssig foi chamado a Suprema Corte onde foi explicado a ele que as sentenças de morte aos doentes era a vontade do Fuhrer e que sua vontade era a “fonte da lei”.

Nenhum protocolo médico pode fazer tábula rasa da Constituição, garantia de civilidade, que estabelece como fundamento da República o princípio da dignidade da pessoa humana, indisponível, intransigível e de obrigatória observância pelo Estado. O princípio é que não há uma hierarquia de vidas. O princípio é que uma vida é igual a uma vida, não importa de quem seja vida. A vida humana possui uma dimensão não instrumentalizável. Princípio, este, que é sempre relativizado no fascismo, e substituído pela onipotência do arbítrio dos raciocínios consequencialistas/moralistas/utilitaristas/econômicos e que não raro, foram invocados, pelos grandes criminosos da história. Stálin. sacrificou alguns milhões em nome da melhor da “vitória do socialismo”, com as declarações de “solidariedade” e “justiça social”, cuja ação prática negava os valores civilizatórios mínimos.

A pergunta é: Em que determinadas ações político-sociais irão resultar a ideia de que uma vida vale mais que outra? Em que determinadas ações político-sociais irão resultar a relativização do principio da igual dignidade de todos? Nós já conhecemos a resposta. Eugenia, banalização da morte, indiferença à vida.

Dostoiévski, um dos maiores escritores do século XIX, com sua imaginação escatológica e limítrofe era capaz de pôr uma ideia em ação e depois segui-la até as últimas consequências, o que lhe permitiu entrever em que ações político-sociais determinadas ideias poderiam resultar, dessa forma, lançou uma ponte entre o século XIX e os séculos seguintes. Dostoiévski, antecipou o totalitarismo do século XX que fez tábula rasa das velhas concepções humanistas, dos valores civilizatórios mínimos de respeito a vida e dignidade humana e os substituíram pelo cálculo utilitário, pela matematização de vidas, pela lógica consequencialista, em nome de novos ideais.

No entanto, fracassamos. O Direito do segundo pós-guerra, criado para proteger a sociedade da barbárie e selvageria dos raciocínios consequencialistas, não chegou antes das “escolhas de Sofia”. Bastou uma pandemia para nos colocar a prova enquanto civilização e reprovamos no teste civilizatório.