Não é só “advogado caro” que ganha recurso e HC

Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, durante sessão da Primeira Turma do STF
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Tema candente do mundo jurídico, a execução provisória da pena após condenação em segunda instância é assunto que recebe contribuições diárias, seja por meio de pesquisas, estatísticas, opiniões etc.

O Ministro Luís Roberto Barroso – pedra angular da ala civil e jurídica que defende a execução de pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória – abusou, principalmente em seus posicionamentos recentes mais divulgados, da retórica calcada essencialmente no social (“em atenção ao anseio do povo”, de acordo com ele próprio); consequentemente, fez vista grossa para o caráter contramajoritário do Supremo.

Careceu de substância, em contrapartida, a tese jurídica que balizaria uma interpretação alternativa à Constituição e ao Código de Processo Penal, claros e literais no enunciado das regras (e não “princípios”!) que regem o tema. Ipsis literis:

CF, art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

CPP, art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

A questão é que até mesmo os argumentos sociais que Barroso enunciou são suscetíveis de questionamentos.

Trataremos de um em especial.

A ala jurídica que segue o magistrado “liberal” e de forte retórica populista faz questão de afirmar que a execução da pena somente após o esgotamento das vias recursais é uma injustiça com os mais pobres, pois, para tanto, são necessários bons advogados, e os serviços de bons advogados custam caro.

É bem verdade que, muitas vezes, personalidades das alas “liberais” – tanto da política quanto do mundo jurídico – invocam, em debates, a “situação do pobre”. Poucas vezes, contudo, elas têm conhecimento do que estão falando. Quase sempre se trata de retórica vazia e populista.

Uma das maiores conquistas da democracia brasileira foi o amplo acesso à justiça por meio da Defensoria Pública, instituição de altíssima qualidade na prestação de serviços jurídicos ao povo brasileiro. Ao réu que não tenha condições de arcar com as despesas de um advogado para recorrer à sua liberdade até o fim, será nomeado um defensor público.

Infere-se que ou a ala “liberal” ignora essa realidade, ou ela entende que um defensor público não tem competência para lograr o êxito da advocacia privada de elite. Ocorre que fatos derrubam a retórica; dados legam o moralismo ao ostracismo.

Foi feito um levantamento de resultados de habeas corpus impetrados no Supremo Tribunal Federal. Constatou-se que a Defensoria Pública obteve praticamente cinco vezes mais ordens do que o conjunto de advogados privados que mais lograram êxito em ações de habeas corpus no mesmo STF.[1]

Um estudo diverso, elaborado pelo Superior Tribunal de Justiça, apontou na mesma direção: os resultados obtidos pela Defensoria Pública em recursos são muito superiores aos da advocacia privada.[2] De acordo com os dados coletados, 40% de todos os recursos no STJ são interpostos pela Defensoria, e o percentual de êxito na modificação de decisões de segunda instância é relevante.

Foram analisados 27.779 recursos interpostos pela Defensoria Pública. Em 12,28% deles houve diminuição de pena; em 8,44% houve alteração do regime prisional. Considerados os casos de absolvição, substituição da pena restritiva de liberdade por restritiva de direitos e prescrição, isto é, considerando as situações em que a pena de prisão é afastada de forma direta, esse percentual é de 4,16%. Em números absolutos, significa que 1.155 pessoas teriam ficado encarceradas injustamente até a decisão do STJ.

Gráfico que mostra, em porcentagem, o resultado do julgamento pelo STJ de 27.779 recursos interpostos pela Defensoria Pública

A conclusão – diante dos fatos pesquisados, tabelados e colocados à nossa disposição – parece simples: apoiar a supressão da regra constitucional do trânsito em julgado com base na retórica da “situação do pobre perante a justiça” não passa de um moralismo vulgar, populista e, portanto, perverso, pois desconectado do mundo real.

A pergunta que fica é por que, então, a maioria absoluta da população carcerária brasileira é composta por jovens negros, pobres e de baixa escolaridade? Porque o sistema de justiça criminal assim deseja. É a lógica da justiça penal brasileira.

Isto é: é justamente o perfil dos assistidos pela Defensoria Pública que faz a diferença nos tribunais e em todas as instâncias judiciais.

Os resultados obtidos pela Defensoria Pública no STJ e no STF demonstram, por conseguinte, que a falta de acesso à justiça não vem da ausência de qualidade técnica dos defensores públicos, mas sim de uma situação de discriminação estrutural do sistema de Justiça, que pune com mais rigidez jovens negros, pobres e que moram nas periferias.[3]

[1] https://www.jota.info/stf/do-supremo/quem-mais-vence-hc-no-stf-08122017

[2] http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/pesquisa_recursos.pdf

[3] https://www.conjur.com.br/2018-mai-06/opiniao-tese-advogados-caros-conquistam-recursos-insustentavel