Sobre direito administrativo, histórias e teorias – uma réplica a Maurício Portugal

Sobre direito administrativo, histórias e teorias – uma réplica a Maurício Portugal
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Por Gustavo Kaercher Loureiro[1] – Maurício Portugal, com inteligência e agudo sentido crítico, publicou um texto em que considera fúteis discussões sobre as origens históricas (francesa) de nosso atual instituto do equilíbrio econômico-financeiro – EEF e sobre sua pretensa ancoragem constitucional. De lambuja, descartou o cabimento de se utilizar com proveito a teoria da imprevisão, também filhote do Direito francês[2].

Escrevi recentemente quatro artigos que fazem, exatamente, o que Maurício diz para não fazer[3]: gastei muitas páginas para falar do pedigree constitucional da figura (para combater a ideia disseminada na doutrina de que tal pedigree existe); desencavei livros, velhos e novos, de direito francês (e norte-americano), para buscar as origens e os fundamentos de nosso direito nessa matéria e, de lambuja, pretendi reabrir a discussão sobre a teoria da imprevisão no âmbito das concessões de serviço público. Quatro artigos condenados à fogueira pelo anátema de Portugal. Não fiz o que fiz (só) porque não quero me meter de pato a ganso e falar de coisas sobre as quais outros, por formação específica, têm mais competência, porque tenho fascinação pela história e gosto de discussões acadêmicas. Fiz isso porque acho que, pragmaticamente, essas coisas importam. Me policiei para não fazer arqueologia ou museologia jurídicas. Meu viés foi de crítica ao que aí está posto em termos de teoria do EEF. E para isso usei a história do direito francês – na medida em que importa para compreender o direito brasileiro – e as bizantinices da exegese constitucional. Maurício reconhece certa utilidade nisso, mas não dá o braço a torcer. Então, vou tentar vender meu peixe.

Quanto à condenação lançada sobre o estudo da história do direito francês, parece estar fundada no seguinte: a.) já possuímos farta experiência com o tema, no bojo de quase trinta anos de existência da Lei 8.666/93; b.) o direito ao reequilíbrio já está positivado e tem seus contornos delineados em lei, contratos e jurisprudência; c.) a teoria da imprevisão, em especial, seria desnecessária, como tal, uma vez que ela teria sido positivada (art. 65, inc. II, alínea d, da Lei 8.666/93). “Por tudo isso”, conclui o autor, “tentar usar a história do direito francês, particularmente, da teoria da imprevisão, para determinar a extensão no presente do direito ao equilíbrio econômico-financeiro no Brasil me parece fútil.” Discordo. E o argumento tem duas partes.

A primeira nada tem a ver com contar ou não contar a história do direito francês. Ela diz respeito ao que tomo por uma suposição do autor, de que, bem ou mal, temos uma tradição bem estabelecida no direito brasileiro em tema de equilíbrio econômico-financeiro. Não temos.

Um primeiro problema com essa ideia está em que temos 30 anos de tradição. Temos, mas ela está toda calcada na Lei 8.666/1993 e isso não é bom. As reflexões e resultados produzidas ao longo desse tempo colonizaram, até muito recentemente, o arranjo econômico-financeiro de concessões e de parcerias público privadas. Faz pouco que essa colonização veio a ser questionada, por inúmeras e sólidas razões[4]. Então, não dá para dizer que estamos ok só porque pensamos no assunto desde 1993, no mínimo. Podemos ter tradição autóctone nesse campo, mas ela requer revisão, adaptação. E, como ainda direi, essa tradição autóctone incorporou, fez sua, argumenta e decide também a partir da exploração da história do direito francês, que usa como argumento de autoridade ou como fonte de inspiração, gostemos disso ou não (detalhe: eu não gosto e acho que Maurício Portugal também não). Aliás, o autor é um dos protagonistas desse movimento de libertação quando aponta com argúcia as especificidades de cada tipo de negócio jurídico administrativo. Sob essa perspectiva, é notável que, em seu texto, ele fale genericamente de contrato administrativo, como se tivéssemos um regime jurídico unitário (se o autor não tinha em mente as figuras específicas das concessões e PPP’s, toda essa minha crítica está deslocada).

Um segundo problema está em assumir que nossas leis dão conta do recado. A menos que se queira dizer com isso que elas deixam grande margem de liberdade para os contratos e que, estes sim, disciplinam a contento a matéria (questão de fato que eu não saberia responder, mas duvido). O que vejo é que os dispositivos legais específicos para concessões que temos – em particular: arts. 2º, 9º e 10 da Lei 8.987/1995; arts. 4º e 5º da Lei 11.079/2011 – informam muito pouco. Como o próprio Maurício Portugal já afirmou no passado, em obra de doutrina: “A resposta também, neste caso, é bastante simples, particularmente para os contratos de concessão comum ou PPP: a lei não estabelece qualquer limitação nem exigência em relação à configuração do sistema de recomposição do equilíbrio econômico financeiro; apenas limita-se a enunciar a necessidade de que exista um sistema de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. O art. 10, da Lei 8.987/95 deixa isso bastante claro, ao enunciar que ‘Sempre que forem atendidas as condições do contrato, considera-se mantido seu equilíbrio econômico-financeiro[5].’” Ainda que o autor tenha revisto esse entendimento, acho que ele estava certo antes[6]. Ou seja, é magra a disciplina legal, de modo que teremos de nos socorrer dos contratos ou de teorias. Ou de outro artigo de lei.

Chego no coração desta primeira parte do argumento relativo ao estado da arte de nosso Direito e, me parece, núcleo do texto de Maurício. Do que escreve eu entendo algo como “ainda que o mundo caia, nós sempre teremos Paris”: mesmo que os textos das Leis 8.987/1995 e 11.079/2004 sejam acanhados, mesmo que a Constituição capitule (adiante) e mesmo que os contratos sejam fracos, sempre podemos voltar para os braços do art. 65, II, d da Lei 8.666/1993. Ele resolve nossas agruras tão bem que não precisamos de teorias, em particular, daquela da imprevisão.

Discordo da tese salvacionista por uma penca de razões. Elas envolvem (i.) a feição da norma que se pode razoavelmente extrair daquele texto obscuro (problema de conteúdo); (ii.) as consequências a que levaria a aplicação desta norma ao menos a algumas concessões (problema de adequação) e por fim, razão fundamental (iii.) a não incidência do art. 65, II, d nesses contratos (por problemas jurídicos dois tipos: de incompatibilidade e de subsunção).

Sobre a difícil interpretação do texto, me remeto a quanto já escrevi em alguns daqueles artigos ociosos. Para compreender e usar o art. 65, II, d me parece que precisamos sim, da teoria da imprevisão, ainda que ela não seja um exemplo cartesiano de clareza e ordem. Aliás, qual teoria jurídica é?

Sobre as consequências da aplicação, também já dei meus pitacos, que resumo na forma de uma pergunta cuja resposta, parece-me, é negativa: supondo-se que seja empiricamente possível identificar a “relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração”, é desejável sob alguma perspectiva econômica, social etc. manter, por 30, 35 anos, a equação econômico-financeira original, como exigiria o art. 65, II, d? Desejam uma perene imutabilidade dessa equação o concessionário, os usuários e o poder concedente? Tome-se o exemplo das concessões de distribuição de energia elétrica obtidas por meio de privatizações das companhias estaduais nas décadas de 90 e nos anos 2000 em que o critério de licitação foi o maior lance pelas ações da concessionária. Qual foi a “equação original”? Onde ela ficou cravada como “cláusula pétrea” da concessão, para que possamos consultá-la? Está todo mundo de acordo em mumificá-la? É isso o que o art. 65, II, d exige.

Sobre o primeiro problema jurídico, o de incompatibilidade do art. 65, II, d, ele está em que o direito específico das concessões e PPP’s possui mecanismos – como bem apontou Maurício Portugal em outro artigo[7] – que intencionalmente destroem periodicamente a “relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração”. Esta também é a opinião que venho manifestando desde 2000, no âmbito do setor elétrico, em que falei, exatamente, sobre a existência de um sincretismo metodológico mal resolvido nos contratos de concessão de distribuição de energia elétrica, derivado de uma misturança que deu em lambança regulatória, entre a tradição francesa e a norte-americana na regulação dos contratos de concessão[8]. Elementos como a Revisão Tarifária Ordinária – RTO fazem pó dessa equação original exigida pelo art. 65, II, d da Lei 8.666/1993. Sei bem que esse dispositivo não está preocupado com a RTO, mas com revisões extraordinárias (por álea econômica extraordinária), mas seu suposto de atuação é essa equação simples dos contratos comutativos que, para as concessões (se um dia existiu), perdeu-se propositalmente em algum lugar do passado (virou história).

Ou seja: não dá para aplicar, qua tale, o art. 65, II, d por falta de suposto de operação, a equação original. Certo: sempre se poderia argumentar que, na verdade, o comando não é de restabelece-la, mas (apenas) de fazer retornar o estado de coisas anterior ao evento de desequilíbrio. Só que isso é coisa diferente. Nesse caso, já estamos falando em uma aplicação “amoldada”, por analogia, não mais do “art. 65, II, d”. Aliás, essa aplicação analógica já se manifesta quando se tem presente que, nas concessões, em geral, sequer existe a “retribuição da administração”. Quem (contra)presta são os usuários. Por isso tudo, não estamos nos valendo do art. 65, II, d, mas de uma norma nova, obtida por analogia. E, para usar a analogia, é preciso justificar uma série de coisas – aliás, que tal arregimentar a teoria da imprevisão para isso?

Quanto segundo e último problema jurídico, da subsunção, isto é, da aplicação do dispositivo às concessões enquanto contratos distintos das “obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações”, reitero o quanto já disse naqueles textos ociosos. Na esteira e como corolário da reflexão anti-colonialista que antes mencionei, mais e mais vozes se alevantam contra a aplicação imediata a automática do art. 65, II, d às concessões porque elas não estão na hipótese fática do dispositivo. Em minha opinião, razão tinha Maurício Portugal em entendimento que depois revisitou[9]: a aplicação do art. 65, II, d é decididamente afastada para definir a alocação de riscos no universo das concessões e PPP’s. Tudo, ao fim e ao cabo, deveria ser resolvido no contrato.

Em resumo, “Não me fale da 8.666![10]”. Não acho que tudo esteja claro no direito brasileiro; que os trinta anos de tradição desde a Lei 8.666/1993 sejam suficientes, e que nosso direito positivo seja claro, completo e coerente para lidar com concessões. Há muito o que discutir, especialmente se os contratos – ponto de chegada e locus próprio da regulação do tema, no estou de pleno acordo com Maurício Portugal – forem pouco elucidativos. Essa não é uma hipótese tão remota e parece ser uma (má) qualidade de certas matrizes que fazem alocações confusas de riscos, na medida em usam diferentes critérios de atribuição deles entre as partes, e os sobrepõem, criando “combinações” de hipóteses com tratamentos conflitantes de um determinado risco dentro da própria matriz.

A essa altura o leitor atento deve estar impaciente. Tenha eu razão ou não no diagnóstico, Maurício Portugal está falando de outra coisa e o argumento que prometi nos levaria à conclusão de que discutir a história do instituto do EEF tem alguma valia. E até aqui nada. Entramos agora na segunda parte do argumento: como não temos tudo pronto e acabado no direito positivo, precisamos consultar os oráculos, doutrina e jurisprudência, para ver o que dizem sobre essas e outras coisas e, sobretudo, como dizem.

O apelo a estudos históricos poderia, sim, ser mero exercício de erudição superficial, caso a doutrina e a jurisprudência tivessem se limitado, como muitas vezes se faz em outras áreas, a narrar a origem do instituto no direito francês. Aliás, é prá lá de chato topar com obras que começam o estudo de certo tema jurídico pelo Código de Hamurabi (sobretudo quando não citam o próprio, mas o autor de outro manual que cita o autor de outro manual[11]). Por outras palavras, os apelos à história seriam futilidades se doutrina e jurisprudência não tivessem feito suas as velhas decisões do Conselho de Estado e as lições de Jèze, Laubadère e, mais recentemente, de Venezia, Gaudemet e Chapus, para sacar, dessas lições, normas e decisões concretas referentes ao direito brasileiro. Em nosso tema (EEF) não se diz que um “dia houve um Código na Babilônia”. Se diz que, “porque Hamurabi determinou assim, assim é bom que seja” ou que “a solução dada por Hamurabi é justa”.

Goste-se ou não, é fato inegável que nossos doutrinadores e nossos juízes usam de modo prescritivo a tradição francesa – onde, aliás, a história é parte do presente – para construir normas e decidir casos, seja convocando-a como autoridade seja como fonte de inspiração[12]. Podemos, sim, dizer que já somos maduros o suficiente para parar de invocar histórias antigas e autores estrangeiros, mas o fato é que se segue fazendo direito com esse material, e, enquanto isso ocorrer, seguirá sendo importante conhecer bem a testemunha invocada em favor de tal ou qual tese. A jurisprudência do STF é recheada de referências aos “corifeus da Escola do Serviço Público”, aos arrêt du Conseil d’État e as faz para sacar razões de decisão de casos que ocorrem, hoje, no Brasil[13]. A doutrina faz o mesmo: emprega a tradição francesa para interpretar as normas magras do direito positivo brasileiro que antes vimos. Quando a história (francesa) é usada como parteira de teorias e normas – e não simplesmente contada – não dá para concordar com juízo de que seu estudo é inútil. Faço duas caricaturas.

Charmosamente se invoca o arrêt du Gaz de Bordeaux do Conselho de Estado para lidar com eventos imprevistos – arrêt, aliás, que nem na França é velharia. Muitas vezes se o lê mal. Tira-se a conclusão de que o concedente deveria neutralizar completamente o concessionário em face de eventos qualificáveis como álea extraordinária econômica, a bem do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, da mesma forma que o fizera em face de outro tipo de álea extraordinária, aquela derivada da alteração unilateral do contrato, um outro julgado do mesmo Conselho, uns anos antes[14]. Nada disso: a solução encontrada no arrêt du Gaz, para essa específica álea que não era imputável a qualquer das partes (à diferença do caso anterior), foi o compartilhamento dos prejuízos (em parâmetros variáveis, conforme o caso), tendo como justificativa e base a continuidade do serviço público[15]. Nem se falou, ali, por um instante sequer, de equilíbrio econômico-financeiro do contrato, como no julgado de 1910. Se alguém invoca o Conselho de Estado como autoridade, não é inútil futricar na história para verificar se ele disse o que se disse que ele disse.

O mesmo ocorre com o tal do fato do Príncipe. Afirmar, para fazer bonito, que essa é uma categoria que vem da Gália, “assentada na sólida jurisprudência do Conselho de Estado e na abalizada doutrina de fulano francês”, para concluir que um concessionário de serviço público federal deve ser integralmente protegido em face dos efeitos negativos que um Decreto Estadual provocou no contrato é ignorar que, na França, o fato do Príncipe é categoria cujos contornos não são claros. Segundo certo entendimento, ela não contempla atos de autoridades diferentes da concedente. Isso tem a importante conclusão de que, neste caso, o evento (Decreto Estadual) seria reconduzido à teoria da imprevisão e não ensejaria recomposição total do prejuízo. Podemos concordar em colocar à conta do Príncipe tudo que é ato de tudo que é autoridade, mas não podemos chamar em testemunho a história jurídica do país de Asterix.

Ou seja: quando se usa para fins muitíssimo práticos a história e a tradição francesas, quando a história vira argumento jurídico ou assume um papel “heurístico-exploratório”[16], e não mera narrativa, convém, sim, estudar história do direito não apenas pelo prazer de conhecer. Eu poderia concordar com Maurício Portugal, de que temos que parar de fazer apelos de autoridade; mas não dá para concordar com ele quando diz que revirar a história, nesse contexto carregado de evocações, é inútil. Não é. Nem um pouco. Ao contrário: é indispensável saber o por quê para construir o para quê.

A utilidade também existe quando a história é usada não como autoridade, mas como fonte de inspiração ou comparação. Não é perda de tempo saber, por exemplo, que, de modo geral, as soluções brasileiras para o problema do equilíbrio econômico-financeiro das concessões – baseadas ou não no Conselho de Estado ou em Jèze – são, sempre, mais benévolas para o concessionário do que em França (tanto nos supostos de admissibilidade quanto na disciplina da cobertura do prejuízo[17]).

Isto quanto aos gauleses. Acerca da ociosidade em discutir a ancoragem constitucional do equilíbrio econômico-financeiro, o argumento de Maurício Portugal é mais direto. Algo como: “a Constituição nada diz sobre o EEF, logo é inútil trazê-la ao debate.”

Estou plenamente de acordo com a premissa, mas discordo da conclusão. Faltou dizer que, embora a Constituição nada diga sobre o EEF, a doutrina majoritária acha que ela diz muito. Logo é necessário trazê-la ao debate para provar a premissa do argumento, a qual é, à luz do estado de coisas atual, absolutamente problemática. Foi para isso que gastei páginas e páginas: para dizer que, ao contrário do que boa parte da doutrina pensa e diz, a Constituição, diferentemente de outras de nossa história republicana, nada informa sobre o tema. Prudentemente, deixou-o para a legislação ordinária e para os contratos, a fim de que possamos ter flexibilidade e agilidade regulatórias.

Há uma certa ingenuidade (nada pragmática) ou olímpico descaso para com o contexto jurídico atual em achar que não se precisa gastar tinta com a Constituição. A vigente constitucionalização do EEF não se contenta com pouco. Ela não encontra na Carta apenas um princípio – enunciado normativo genérico, que aponta fins mas não meios, e que deveria ser ponderado, sobretudo nessa “sinuca de bico”[18] em que nos encontramos. Basta compulsar tradicionais manuais e mesmo artigos de direito administrativo para lá encontrar que o art. 37, XXI da Constituição consagrou a teoria do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão e que, com isso, veio de engate um pesadíssimo maquinário de conceitos, instrumentos, preceitos etc. de origem…francesa. Numa tira da Constituição – o “mantidas as condições da proposta” é fragmento de um texto confuso que nem autonomia sintática possui – pendura-se o mundo. Nunca se viu tamanha densidade normativa em cinco palavras que sequer formam uma proposição completa.

Nos estudos sobre a Constituição, sustento que o art. 37, XXI não se aplica, seja porque sua hipótese de fato é claramente o universo dos contratos comutativos ali referidos, seja porque – e também aqui estou de acordo com Maurício Portugal – seu conteúdo não garante nada remotamente parecido com o EEF de contratos de concessão. Como disse em um dos quatro escritos ociosos: “ ‘manter a proposta’ – que é unicamente o que a Constituição exige – não significa ‘manter ao longo de todo o tempo do contrato, e sob qualquer circunstância, a equação econômico-financeira original que decorre da proposta’ ”. A depender de como foi feito o edital, a “proposta” pode contemplar exatamente o oposto disso. Também não dá para chamar em socorro a sede própria em que se deveria esperar encontrar o equilíbrio econômico-financeiro.

O art. 175 deixou de lado nossa tradição constitucional e parou, deliberadamente, de falar em equilíbrio econômico-financeiro dos contratos (e em justa remuneração) e trocou isso pela ideia política tarifária, a ser desenvolvida pelo legislador. E atualmente nossa política tarifária contempla coisas que, vistas sob as lentes da tradição, seriam inconstitucionais porque têm por objetivo, justamente, destruir o estado de coisa inicial, em favor de atualizações e renovações do arranjo econômico-financeiro da concessão, como a já mencionada revisão periódica. Enfim, é justamente porque a Constituição é pouco útil que se precisa da discussão. Precisamos dela até que, num mundo ideal que não virá, convencidos todos de que ela não ajuda (ou que enuncia um princípio vago), vamos poder parar de falar dela e vamos passar e falar (só) de contrato.

Last but not least, não vamos esquecer que há um motivo formal para a pendenga renhida acerca da Constituição: a depender da resposta, pode-se ir, ou não, ao STF. E lá nos esperam lições sobre a história do direito francês.

Diante disso tudo, e para descontrair, diria que Maurício foi ingrato. Alguns de meus estudos sem uso, na verdade, corroboram a interpretação que ele dá ao art. 37, XXI. E ele vem agora afirmar que isso é coisa de quem quer esconder a própria incompetência acerca dos temas que mais importam, os mecanismos econômicos e financeiros? Gostaria de conhecer com segurança e profundidade os indispensáveis elementos econômicos e financeiros para poder deles falar com desenvoltura. Mas, como disse, não vou me meter de pato a ganso e pontificar sobre o que não sei. Vai sair direito capenga e teoria econômica risível. Em todo o caso, acho que para solucionar esse imbróglio ainda existe alguma utilidade em se dedicar a interpretar enfadonhos textos normativos, debater teorias incertas e aceitar a própria especificidade e limitação – finitude, num sentido filosófico – para trabalhar em cooperação com quem sabe mais do que eu. Humildemente.

Descer o malho no que o Direito tem de próprio me parece bem pouco um projeto do Iluminismo (talvez de sua degeneração, a Escola da Exegese…francesa). Em todo o caso, essas linhas não são um libelo da Cultura Jurídica contra o pragmatismo chão. Procurei mostrar que é pragmaticamente importante discutir essas coisas. E também Maurício não representa esta vertente tacanha do (sempre necessário) pragmatismo. Aliás, as referências que encerram seu texto sobre a história das ideias e da filosofia – Ockham e Iluminismo – mostram isso.

Por Gustavo Kaercher Loureiro, Doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ex-Professor de Direito Administrativo da Universidade de Brasília (UnB).

Referências

Referências
1 Tenho quase um time de futebol para agradecer: Barbara Sena, Joisa Dutra e Lívia Amorim; Edvaldo Santana, Egon Bockmann, Fernando Simões dos Reis, Gilberto Bercovici, João Paulo Soares Coelho, José Vicente de Mendonça, Marcos Nóbrega e, finalmente, Maurício Portugal, pela fidalguia e disposição para o debate franco. Inútil dizer que as bobagens são só de minha responsabilidade.
2 https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-equilibrio-economico-financeiro-e-o-fetiche-com-a-constituicao-federal-e-com-o-seu-passado-remoto-em-franca/.
3 Alguns artigos foram originalmente publicados no site do CERI-FGV e depois recolhidos em “Estudos Sobre o Regime Econômico-Financeiro das Concessões de Serviço Público” que se encontra disponível em uma edição não revisada https://fgv.academia.edu/GustavoKaercherLoureiro. Uma edição revisada deverá sair em breve pela editora Quartier Latin.
4 Um dos “manifestos” de independência está em BOCKMANN MOREIRA, Egon (Org.), Tratado do Equilíbrio Econômico-Financeiro – Contratos Administrativos, Concessões, Parcerias Público-Privadas, Taxa Interna de Retorno, Prorrogação Antecipada e Relicitação, Belo Horizonte: Forum, 2019.
5 RIBEIRO, Maurício Portugal, Concessões e PPP’s: Melhores Práticas em Licitações e Contratos, [s.l.: s.n.], 2010, p. 98. Exemplar gentilmente cedido pelo autor.
6 Confira-se: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/mauricio-portugal-ribeiro/-atribuicao-ao-contratado-da-administracao-publica-de-todos-os-riscos-nao-tratados-no-contrato-e-nula-perante-a-lei-8-666-93
7 Equilíbrio Econômico-Financeiro de Contratos e Sincretismo Metodológico, disponível em https://www.jota.info/autor/mauricio-portugal-ribeiro
8 KAERCHER LOUREIRO, Gustavo, Considerações Jurídicas sobre os Aspectos Econômicos dos Contratos de Concessão de Distribuição de Energia Elétrica, Revista Jurídica, v. 276, 2000; KAERCHER-LOUREIRO, Gustavo, Revisão Tarifária Periódica – sua Introdução no Ordenamento Jurídico Brasileiro e o Papel do Direito em sua Construção pelo Regulador, in: DA ROCHA, Fabio Amorim (Org.), Temas relevantes no direito de energia elétrica (vol. III), Rio de Janeiro: Synergia, 2014.
9 “Observe-se que, em conseqüência da cultura sobre o equilíbrio econômico-financeiro criada em torno da Lei 8.666/93, especialmente em torno do seu artigo 65, e da confusão entre nós, particularmente na doutrina do Direito Administrativo entre alocação de riscos e sistema de equilíbrio econômico-financeiro de contrato, paira o risco de se entender, na nossa opinião, de maneira muito equivocada, que quaisquer fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, força maior, caso fortuito ou fato do príncipe sejam riscos do Poder Concedente intransferíveis para o parceiro privado, em virtude do art. 65, inciso II, alínea “d”. Já criticamos esse entendimento em trabalho anterior de nossa autoria. Aqui apenas lembraremos o leitor que: (a) o artigo 10, da Lei 8.987/95, estabelece que o equilíbrio econômico-financeiro do contrato estará mantido quando for obedecido o contrato de concessão, o que significa que é o contrato de concessão que estabelece as hipóteses, critérios e metodologia para a realização do reequilíbrio econômico-financeiro; (b) mesmo que se discuta a incidência e alcance do artigo 10, da Lei 8.987/95, é preciso lembrar que o próprio artigo 65, da Lei 8.666/93 estabelece que os mencionados riscos são do Poder Concedente apenas nos casos que a sua ocorrência configure ‘álea extraordinária e extracontratual’. Isso significa que só incide a alocação de riscos prevista no art. 65, inciso II, alínea ‘d’, da Lei 8.666/93 se o contrato não prever alocação diferente destes riscos. Ou seja, se há previsão explícita no contrato de concessão da alocação ao parceiro privado de ocorrências que se enquadram nas categorias previstas no artigo 65, inciso II, alínea ‘d’, há que se entender que prevalece a alocação prevista no contrato. (c) Em relação aos contratos de PPP, da Lei 11.079/04, o art. 5°, inciso III, claramente estabeleceu a possibilidade de repartição pelo contrato dos riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária. Portanto, em relação às PPPs, não há dúvidas que o art. 65, inciso II, alínea “d”, não incide para efeito da definição da alocação desses riscos.” RIBEIRO, Concessões e PPP’s: Melhores Práticas em Licitações e Contratos, cit., p. 80 (grifou-se). Páginas adiante, acrescenta: “É bem verdade que ainda há, entre nós, discussão sobre a aplicabilidade do art. 65, da Lei 8.666/93 aos contratos de concessão comum ou PPP para prestação de serviços públicos. Particularmente, debate-se a incidência do art. 65, inciso II, alínea ‘d’, que reproduzimos abaixo: (…). Observe-se que a condição de incidência do dispositivo é que os eventos nele descritos configurem ‘álea econômica extraordinária e extracontratual’. Ora, para que se configure álea extracontratual, é preciso que o risco da ocorrência do evento não esteja tratado especificamente no contrato e que não haja regra clara sobre a distribuição dos riscos residuais. Portanto, ainda sem discutir a aplicabilidade do dispositivo, o que é claro é que se os riscos forem alocados claramente pelo contrato, e se houver regra no contrato sobre a alocação de riscos residuais, não se poderia falar em álea extracontratual, de maneira que este dispositivo, o art. 65, II, ‘d’, não poderia incidir.
Além disso, o art. 10, da Lei 8.987/95 é regra especial para os contratos de concessão comum e PPP para prestação de serviços públicos, e deve por isso prevalecer às normas da Lei 8.666/93. Aliás, cumpre assinalar que em relação à forma de se fazer o equilíbrio econômico-financeiro, o art. 10 da Lei 8.987/95 não podia ser mais claro no seu mister de delegar ao contrato de concessão comum ou PPP a definição do modo de realização da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, de maneira que não deixou, neste particular, nenhum espaço para aplicação supletiva ou subsidiária da Lei 8.666/93.”, op. cit., p. 98. Sobre o novo entendimento, v. o texto indicado na nota 5.
10 Aludo a um artigo de Egon Bockmann que gerou uma resposta de Marçal Justen Filho sobre o tema: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/egon-bockmann-moreira/nao-me-fale-da-8666-9nfwqt8ulixd3iujy366rjxgu/. A réplica está em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/marcal-justen-filho/mas-temos-muito-ainda-a-falar-sobre-licitacao-0k320vk5ryh9zn8tdrguqlrzm/
11 “Não fale do Código de Hamurabi”, de Luciano Oliveira, disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213608/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf
12 Para exemplos desses usos em nossa doutrina e jurisprudência, BARBOSA, Letícia Chaves Freitas, La Théorie de l’Imprevision dans les Contrats de Concession de Service Public, Université Paris II, 2019. A autora faz uma comparação acerca do modo como é tratada a teoria da imprevisão na França e no Brasil e apresenta exemplos de incorporações e adaptações da matriz francesa pela doutrina e jurisprudência brasileiras.
13 Tome-se, pela relevância, RE 571.969/DF, em particular o Voto (vencido) do Min. Joaquim Barbosa. Seus argumentos são diretamente ancorados na jurisprudência e doutrina francesas, inclusive, o arrêt du Gaz. Outros exemplos podem ser encontrados monografia de Letícia Chaves Freitas.
14 Ministre des Travaux Publics vs. Compagnie Générale Française des Tramways (1910).
15 Esse aspecto foi suscitado recentemente no bem lançado Parecer 262/2020, da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, por ocasião da discussão de uma possível revisão tarifária extraordinária das distribuidoras de energia elétrica.
16 A expressão foi-me sugerida por José Vicente Santos de Mendonça. Segundo ele, há ainda um uso que, se não chega a ser diretamente “operacional”, também não é “mera narrativa”. Estudar para compreender, ajustar, e, só então, operar. Estudar para (se) conhecer. Outro exemplo evidente de “história militante” é o uso que se faz nos EUA da história constitucional. Alias sobre história do direito, do mesmo José Vicente, vale a pena refletir sobre as razões que dá para o estudo de nosso passado constitucional, como potente instrumento hermenêutico e de crítica às soluções que aí estão. José Vicente Santos de Mendonça e Christian Lynch, “Por uma história constitucional brasileira: uma crítica pontual à doutrina da efetividade”, Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 2 (2017). A perspectiva aqui adotada é coincidente.
17 BARBOSA, La Théorie de l’Imprevision dans les Contrats de Concession de Service Public, cit., passim e p. 96
18 https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/sinuca-de-bico-efeitos-da-pandemia-de-covid-19-no-microcosmo-dos-contratos-07042020