Machismo, seletividade e o funcionamento padrão do sistema de ‘justiça’: o que fica ocultado sob a palavra de ordem

apesar da pauta real e extremamente relevante em mãos, o veículo jornalístico promoveu uma clara indução ao erro já na manchete e, com isso, fez emplacar a palavra de ordem “não existe estupro culposo”. Esses foram os termos nos quais a notícia ganhou a discussão nacional, e quanto a isso não há dúvida.
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3 de novembro de 2020 foi tão movimentado do ponto de vista do debate público e dos fatos políticos relevantes quanto um dia pode ser, mesmo para os parâmetros atuais. Eleição nos EUA, eleições municipais no Brasil, discussão sobre autonomia do Banco Central no Senado e novas informações sobre o caso do estupro sofrido por Mariana Ferrer, sobre o qual eu gostaria de apontar algumas questões.

O Intercept Brasil apresentou uma matéria acompanhada do tão enojante quanto significativo vídeo em que o advogado criminal humilha a vítima e tem como plateia silenciosa o juiz do caso e o membro do Ministério Público. Ocorre que, apesar da pauta real e extremamente relevante em mãos, o veículo jornalístico promoveu uma clara indução ao erro já na manchete e, com isso, fez emplacar a palavra de ordem “não existe estupro culposo”. Esses foram os termos nos quais a notícia ganhou a discussão nacional, e quanto a isso não há dúvida.

Desde que comparei minha primeira leitura da matéria com as peças citadas do processo (as alegações finais do Ministério Público e a sentença), considerei a escolha dos termos de péssimo tato jornalístico e, de algum modo, também antiética, já que, na sentença, a expressão estupro culposo aparece apenas na forma de uma citação doutrinária que aponta para a inexistência desse tipo penal. Em bom português, afirmando que não existe estupro culposo.

Em nota adicionada no mesmo dia às 21:54, o site alegou que “A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

A crítica sobre o rigor da apuração e a validade do “artifício usual” eu deixo aos jornalistas porque costumo me pautar pela antiquada mania de não opinar sobre aquilo que não conheço. Mas, como leitora, me soou mal, muito mal.

De todo modo, fiquei especialmente indignada depois de ler essa nota: se a intenção era “explicar para o público leigo”, foi prestado um imenso desserviço. E digo isso muito mais pelo que ficou de fora dos holofotes do que por aquilo que foi evidenciado por eles.

 

As falsas promessas do processo e da “justiça” penais

Em primeiro lugar, o processo penal é construído em torno de uma lógica pela qual a vítima é excluída. Ao contrário daquilo que povoa a imaginação do senso comum, o julgamento de um crime não é pautado pelo dualismo acusado versus vítima: os atores ativos são o Estado e o acusado, só. A pessoa que sofreu os danos é, pela própria dinâmica formal do julgamento criminal, quando muito, coadjuvante. Penso que esse ponto merece ser salientado para mostrar quão longe estamos do ideário que acredita na possibilidade de fazer justiça por meio da pena, já que, do processo que leva a ela, a vítima participa somente como um expectador silenciado que, novamente, se vê impotente quanto ao fato que atravessou sua vida.

Na prática, contudo, há uma importante e machista exceção a essa regra de “não participação da vítima”: os casos de violência contra a mulher em sentido amplo (agressões enquadradas sob a Lei Maria da Penha, estupro, feminicídio). Nesses casos a vítima é alçada ao centro do debate, mas não como sujeito capaz de contar a própria história e contribuir na decisão sobre o seu fechamento (como ocorre na Justiça Restaurativa). A mulher violentada passa a ser protagonista porque é colocada na posição de uma “acusada informal”, que acaba por ser mais questionada e julgada do que o próprio réu. Roupas, fotos, expressões faciais, relacionamentos passados; tudo passa a ser referência para desqualificar sua palavra, sua violação, seu sofrimento e, no limite, sua existência enquanto pessoa que pode decidir sobre a própria vida. A brilhante produção do podcast Praia dos Ossos mostra isso de forma nítida ao contar a história do assassinato de Angêla Diniz e da comoção nacional que, no primeiro momento, acabou por transformar seu algoz em herói e tratá-la como a grande vilã da história. O cuidado de pesquisa, roteiro e narração dos fatos feitos pela Rádio Novelo tem muito a ensinar ao The Intercept Brasil.

Um outro ponto que considero crucial é o da seletividade penal que, no caso em questão, aparece na absolvição por ausência de provas (e não por “estupro culposo”). Não discutirei o mérito e os pormenores do caso, mesmo porque não os conheço, mas, com base no que foi publicizado, parece haver um significativo volume de provas que viabilizaria a condenação. O que me interessa, de todo modo, não é a demanda por criminalização, mesmo porque sou absolutamente cética quanto à possibilidade de o direito penal resolver qualquer problema social e isso até mesmo em razão do que, de fato, chama a minha atenção: a diferença de tratamento quando o banco dos réus é ocupado por um homem branco, rico, empresário e “bem relacionado”.

Neste mesmo país que condena por muito menos e que prende aos milhares antes mesmo de uma condenação, assistimos ao ápice de um suposto garantismo penal quando muda o cliente. Mas isso só é uma surpresa para quem acredita no conto de fadas da lei penal igual para todos e do direito penal do fato: o que existe, na verdade, é um direito penal do autor que seleciona seus inimigos entre os jovens, negros e pobres das periferias do país. Quer dizer, há um tipo de “criminoso” ideal e certamente André de Camargo Aranha não é um deles.

A mudança repentina de entendimento por parte do Ministério Público também soa muito relevante e merecedora de investigação e debates urgentes, mas quanto a isso ouvi e li muito poucas inquietações. Penso que é um ponto crucial da discussão que ficou para trás e que merece registro.

Por fim, exatamente porque, neste caso, entendo que é o mais merecia atenção, sublinho a relevância do vídeo do julgamento. A violência e machismo escancarados do advogado Cláudio Gastão, como se Mariana fosse a pessoa em julgamento, diz muito sobre a absoluta falta ética, decoro e profissionalismo do defensor de Aranha, mas diz ainda mais sobre o Judiciário e o Ministério Público brasileiros. A omissão do juiz e do promotor presentes soou como um símbolo espetacular de como funciona a lógica do sistema penal e o machismo da sociedade e das instituições no Brasil.

Os quatro minutos de imagem e som aos quais tivemos acesso trazem consigo uma prova ultrajante da violência, desta vez institucionalizada, sofrida por Mariana e, com ela, de toda a barbárie que mencionei nos parágrafos anteriores. O sistema penal é uma máquina de moer gente e merece ser combatido enquanto tal, nada menos do que isso.

Não existe estupro culposo, de fato. Também é fato que a dupla culpabilização da vítima merece ser denunciada e combatida. Mas é urgente entender, acima de tudo, que as múltiplas violências sofridas por Mariana estão inseridas em uma lógica perversa e consolidada cujos traços estruturais acabaram ocultados pela palavra de ordem que ocupou o centro do debate.

apesar da pauta real e extremamente relevante em mãos, o veículo jornalístico promoveu uma clara indução ao erro já na manchete e, com isso, fez emplacar a palavra de ordem “não existe estupro culposo”. Esses foram os termos nos quais a notícia ganhou a discussão nacional, e quanto a isso não há dúvida.