José Tadeu de Chiara, uma vida dedicada ao ensino do Direito Econômico

Por Gilberto Bercovici, André Ramos Tavares, José Maria Arruda de Andrade, Luís Fernando Massonetto e Alessandro Octaviani - Fomos atingidos pela triste notícia do falecimento inesperado do professor José Tadeu de Chiara, no último dia 5. Ele foi, durante décadas, nosso professor, nosso amigo, companheiro de lidas profissionais e de utopias políticas.
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“Nenhum meio mecânico, por mais eficiente que seja, nenhum materialismo, por mais triunfante, pode erradicar a aurora que experimentamos quando compreendemos um Mestre. Esse júbilo nada pode contra a dor da morte. Mas faz com que nos enfureçamos com seu desperdício” (George Steiner)

Por Gilberto Bercovici, André Ramos Tavares, José Maria Arruda de Andrade, Luís Fernando Massonetto e Alessandro Octaviani – Fomos atingidos pela triste notícia do falecimento inesperado do professor José Tadeu de Chiara, no último dia 5. Ele foi, durante décadas, nosso professor, nosso amigo, companheiro de lidas profissionais e de utopias políticas.

Tadeu De Chiara deixa um legado de enorme relevância para o Direito Econômico brasileiro, a partir de sua notável presença na área de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, nas Arcadas do Largo de São Francisco.

De família de imigrantes italianos com raízes no Brás e no Bom Retiro, sua formação humanista tem origem no clássico “Colégio de Aplicação” da USP, ao qual ele sempre se referiu com orgulho. Lá, entre o fim da década de 1960 e início da década de 1970, em plena ditadura militar — como ele gostava de mencionar —, aprendeu desde cedo que os seres humanos travam relações de produção, que tendem a se tornar relações de dominação. A forma de superar essa dominação estrutural seria a mesma capaz de realizar a derrota da sufocante ditadura: a luta política. O ambiente contestatório do colégio o colocou também em contato com a fervilhante São Paulo do ano de 1968, a Maria Antônia e o sonho de adentrar na Academia de Direito.

Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no meio de agitações políticas no Centro Acadêmico XI de Agosto, da atuação do Departamento Jurídico do XI de Agosto (em que foi diretor, nos anos de 1973 e 1974) e do cotidiano no centro da cidade, marcado pelo delicioso pastel com caldo de cana em frente à faculdade, Tadeu de Chiara foi acima de tudo um dedicado estudante de Direito, aproximando-se do Direito Econômico. Já no segundo ano do bacharelado, participou de concurso para monitor da área, tendo sido vencedor com a monografia “A produção — seus fatores e a empresa”. Seu desempenho na área do Direito Econômico chamou a atenção do professor Geraldo de Camargo Vidigal, que o convidou para trabalhar como estagiário, junto à assessoria que prestava a entidade representativa dos bancos e instituições financeiras. A função do estagiário era “preparar o boletim”, como ele mencionava: separar, ler e arquivar diariamente as notícias referentes às finanças públicas, à macroeconomia, à regulação bancária, à economia internacional e afins. Dessa tarefa diária trouxe o mestre De Chiara, até o fim de sua vida, uma enorme capacidade de ler a conjuntura a partir da estrutura, de desvendar, por dentro da dogmática, os grandes movimentos da economia política.

Essa experiência profissional o levaria, já durante a graduação, a começar a trabalhar em instituição financeira e, ao concluir o bacharelado, em 1975, tinha a certeza de que gostaria de juntar sua cada vez mais rica experiência prática com uma sólida reflexão teórica, que revelasse os meandros do verdadeiro poder econômico, a junção dos donos do dinheiro com os donos do poder que, no Estado capitalista, operam sua dominação por meio da forma jurídica.

Foi orientado no doutorado pelo mesmo professor Vidigal e, desde o início de seu doutoramento, exerceu a função de docente voluntário convidado e, posteriormente, a convite de seu orientador e do professor Eros Grau, a função de auxiliar de ensino no Departamento de Direito Econômico e Financeiro.

Em 1986, depositou a brilhante tese “Moeda e Ordem Jurídica”, em que desvela ser a moeda, simultaneamente, a “forma superior das trocas”, mas plenamente dependente do Estado, da ordem jurídica, para cumprir suas funções. A moeda instrumentaliza o poder de compra, portanto é origem de diversas relações jurídicas. Somente o Estado tem condições de garantir sua eficácia. Mas, sendo o Estado “resultante dos interesses prevalentes”, a própria moeda é instrumento de dominação, ainda mais quando organizada pelos bancos, em sua forma escritural. A política, velha conhecida do colégio e dos tempos de Arcadas, surgia novamente como a instância capaz de solucionar o dilema, pois se é a “dominação (…) que preside o funcionamento dos mercados”, deve ser superado o individualismo liberal e civilista, por uma perspectiva de Direito Econômico, que incorpora “as variáveis inerentes à instrumentação monetária e interesses de ordem coletiva que superam a esfera de atuação de um único sujeito de direito” (p. 114).

Após conquistar o título de doutor, tornou-se professor-doutor, mediante concurso público de ingresso. Ao falecer, era o decano do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário, tendo formado inúmeros mestres e doutores e, principalmente, robustecido como poucos o Direito Econômico, que é um instrumento capaz de ler as contradições e conflitos da realidade e reordená-la, em caráter transformador, como dão prova suas reflexões sobre a disciplina jurídica da atuação do Estado na economia, do sistema financeiro, do câmbio, da moeda e dos juros.

Essa indiscutível excelência acadêmica aliada a uma vasta experiência profissional em que chegou a diretor de instituição financeira, levou a que fosse convidado para resolver os principais dilemas jurídicos da implantação do Plano Real, elaborando os textos que serviram de base para a positivação das medidas legais que impuseram a Unidade Real de Valor (URV) e a nova moeda, o Real. Como aponta Gustavo Franco: “A resposta (…) caberia a um dos principais artífices desse desenho, o professor José Tadeu De Chiara (…): ‘Moeda é fruto da linguagem jurídica'”. (“A moeda e a lei”, p. 576). A explosão da dívida pública interna, o crescimento do desemprego, as distorções cambiais, a concentração do poder econômico dos bancos e a extração dos juros mais altos do mundo que se seguiram à implantação bem-sucedida da nova moeda não escaparam ao olhar arguto do velho mestre, em aulas e reflexões magistrais sobre o assunto, na graduação ou na pós-graduação.

Tadeu De Chiara não era um adepto das modas acadêmicas que vêm e vão ao sabor dos ventos, nem estava preocupado em estudar e pesquisar a repetição dos mesmos temas de sucesso em centros internacionais. Ele prezava a precisão dos conceitos jurídicos, era um cultor dos clássicos e da boa formação intelectual jurídica e humanística que hoje é cada vez mais difícil de se encontrar. Firme em suas convicções, não era de sorrisos fáceis nem se preocupava em agradar os outros. Mas era um amigo leal e fiel daqueles que presenteava com sua amizade, além de estar sempre disposto para, com toda a paciência e dedicação, explicar aos alunos os temas mais complexos e inescrutáveis. Tadeu era um professor à moda antiga: severo, rígido e dedicado. Na sala de aula estava realizando sua missão, sem se preocupar com os falsos produtivismos que não deixam marca alguma. Sua realização era ensinar e formar gerações. Tadeu De Chiara era professor e isso bastava para ele. Nada era mais importante do que estar em sala de aula com seus alunos, nunca deu importância para títulos ou concursos, libertando-se das mágoas e frustrações que tanto caracterizam a carreira acadêmica.

Durante os dias de aula na pós-graduação, gostava de sair aos intervalos, cercado de alunos, andar pelas Arcadas, tomar um café, olhar o seu velho Centro da Cidade, contar algumas histórias, e retornar para a etapa final da aula, condensando ensinamentos sobre a ordem jurídica, o poder, a moeda e o projeto de nação que devemos ter para efetivamente realizarmos nossa Constituição.

Sua autoridade moral, seu conhecimento profundo, seu senso crítico, seu grau de exigência e seu compromisso com a emancipação do Brasil nos marcaram profundamente. Levar seu legado adiante é nosso compromisso.

Por: Gilberto Bercovici
Professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

André Ramos Tavares
Professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

José Maria Arruda de Andrade
Professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Luís Fernando Massonetto
Professor-doutor de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Alessandro Octaviani
Professor-doutor de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

*Publicado originalmente no Conjur.