O ministro Toffoli acorda os Demônios do Atraso

O ministro Toffoli acorda os Demônios do Atraso
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No último dia 7 de novembro, o Supremo Tribunal Federal restabeleceu a ordem constitucional por 6 votos a 5, declarando a inconstitucionalidade da execução provisória de pena em segunda instância. Contudo, o direito fundamental a presunção de inocência continua sob ameaça. A ordem legal encontra-se novamente sob risco.

O ministro Dias Toffoli votou a favor da Constituição, mas afirmou no mesmo voto e em posterior entrevista que cabe ao Congresso Nacional mudar a lei e instituir a execução provisória de pena após condenação em segunda instância.

Não demorou muito para o levante das hostes do inferno no Senado Federal e na Câmara dos Deputados.

A senadora Simone Tebet (MDB), presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado anunciou que colocará em pauta na próxima sessão, uma proposta de emenda constitucional que permite a execução provisória de pena. A PEC 5/2019 é de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos) e insere o inciso XVI ao artigo 93 da Constituição estabelecendo que “decisão condenatória proferida por órgãos colegiados deve ser executada imediatamente, independentemente do cabimento de eventuais recursos”.

Já na Câmara, o deputado Felipe Francischini (PSL), presidente da Comissão de Constituição e Justiça, não perdeu tempo e pautou para segunda-feira, dia 11 de novembro, a votação de outra PEC que trata sobre o mesmo tema. Segundo o deputado, ele consultou ministros da Corte Suprema que também dizem ter a sua opinião sobre o artigo 5 da Constituição Federal não ser uma Cláusula Pétrea. Terraplanistas da política. Terraplanistas do Direito.

Os ministros que votaram a favor da Constituição no julgamento sobre a prisão em segunda instância declararam a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal que espelha o artigo 5, inciso LVII, da Constituição Cidadã que dispõe com cristalina clareza que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ou seja, que ninguém será considerado culpado até sentença penal irrecorrível, tamanho é o grau de proteção que a Constituição confere ao princípio da presunção de inocência que não pode ser lido como um princípio genérico, senão como uma regra imponderável, gravada no texto constitucional e dirigida ao Poder Judiciário, determinando que o cidadão só poderá ser tratado como culpado pelo Estado após uma sentença penal condenatória não mais sujeita a recurso. A regra da presunção de inocência protege os cidadãos de uma indevida restrição estatal ao direito individual fundamental a liberdade. Nunca é demais lembrar que a liberdade perdida e a vida são irrecuperáveis.

O Poder Constituinte Originário que tem o povo brasileiro como seu titular, protegeu os direitos e garantias individuais em cláusulas pétreas, isso quer dizer, que os nossos direitos individuais são insuscetíveis de deliberação, intangíveis a vontade da maioria e do Parlamento. Não podem ser abolidas ou modificadas, nem por emenda a Constituição ou medida provisória. A Constituição dispõe de maneira expressa e inequívoca sobre as cláusulas pétreas no seu artigo 60, parágrafo 4.

Há uma razão civilizatória que justifica a existência das cláusulas pétreas nas Constituições democráticas. No pós-guerra, a Democracia passou por um processo de constitucionalização, como uma forma de impedir o retorno das sementes do fascismo. O princípio da maioria, o sufrágio universal, eleições livres e periódicas, alternância de poder, e a pluralidade de partidos que caracterizam a democracia formalrepresentativa foram a via pela qual ascenderam os regimes ditatoriais que irromperam no século XX. Dessa maneira, no pósguerra, inaugurou-se o paradigma da Democracia Constitucional, a partir da criação de Constituições rígidas que impõem limites e vínculos substanciais a onipotência das maiorias, seja da população, seja do Parlamento. São eles, os direitos e garantias individuais fundamentais protegidos em cláusulas de inviolabilidade, portanto, indisponíveis, inegociáveis, e de obrigatória observância pelo Estado. As cláusulas pétreas consubstanciam-se em antídoto contra a volta de regimes ditatoriais, como aquele instalado no Brasil em 1964.

É lamentável ouvir de deputados que incorporam o Poder Constituinte Derivado que a Constituição da República está ultrapassada e cabe dentro de uma geração que não pode prender as gerações futuras em suas noções obsoletas e retrógradas. Senhoras e senhores deputados, os direitos e garantias individuais, protegidos em cláusulas pétreas, não são algo que se supera, mas que se conserva, pois são conquistas humanas e civilizatórias e não “modinhas”, e por isso, intemporais, imutáveis e universais. As conquistas consagradas no texto constitucional pelo Poder Constituinte Originário – o povo – são o que nos separam verdadeiramente da barbárie.

Ouvi também senadores dizerem que como representantes do povo deveriam ouvir a voz daqueles que os elegeram e que pedem por prisão em segunda instância. Volto a insistir: Os senhores senadores representam o povo, entretanto não há conflito entre quem representam e os limites e vínculos substancias impostos a vontade da maioria, aos berros da turba que clamam por linchamento. São esses limites e vínculos que em última instância protegem o povo do próprio povo.

Aqueles deputados e senadores que defendem a abolição e modificação de cláusula pétrea romperam com o juramento de fidelidade a Constituição Cidadã, de manter, defender e cumprir a Constituição do povo, para o povo, e promulgada pelo povo no exercício do Poder Constituinte Originário, desnaturando completamente a vontade popular.

E ainda, o ministro Dias Toffoli ao proferir em seu voto que o princípio da presunção de inocência é cláusula pétrea, mas admitindo, por outro lado, modificação da lei e da Constituição, realizou uma cisão inexistente entre o princípio da presunção de inocência e sua regra que está inscrita no artigo 5, inciso LVII, do texto constitucional. O ministro desnaturou o princípio da presunção de inocência ao separá-lo de sua regra, retirando sua força normativa e convertendo-o em um princípio solto no espaço do arbítrio e do voluntarismo.

As cláusulas pétreas somente podem ser modificadas por uma nova Constituição, através da convocação de uma nova Assembleia Constituinte. Frisa-se que a feitura de outra Constituição que desprezasse os direitos e garantias individuais que a Constituição de 88 preservou em cláusulas pétreasseria de índole profundamente autoritária, como a Constituição brasileira de 1937, outorgada pelo presidente Getúlio Vargas, no mesmo dia em que implantou a ditadura do Estado Novo, conhecida como Constituição Polaca, que retirava direitos e garantias individuais da população.

O cenário catastrófico se conformaria na admissão dos projetos de emenda a Constituição no Congresso Nacional, remetendo a matéria novamente ao Supremo Tribunal Federal com configuração incerta, já que possui dois ministros que estão na iminência de se aposentar, o decano Celso de Mello e o ministro Marco Aurélio que votaram a favor da Constituição no julgamento. Além do ministro Luiz Fux, porta-voz da Lava Jato e da extrema direita, que será em 2020 presidente da Corte e poderá pautar a questão e mudar novamente o entendimento do Tribunal para a execução provisória de pena em segunda instância.

As democracias mais avançadas do mundo observam perplexas as instituições brasileiras titubeantes com ênfase na insegurança jurídica do país. Diminuímos na comunidade internacional. Adecisão do Supremo Tribunal Federal a favor da Constituição por um placar apertadíssimo e o voto de minerva envergonhado do Presidente do Tribunal que animou o motim das hostes do inferno no parlamento a modificar cláusula pétrea, através do usual populismo penal irresponsável, terá como efeito a quarentena imposta pelos investidoresafinal quem se dispõe a investir em um país sem regras, onde não há respeito as leis e a sua própria Constituição? É preciso darmos um basta nesse discurso punitivista que invisibiliza e legitima o roubo das nossas liberdades, a usurpação dos nossos direitos fundamentais e a restrição da nossa cidadania.

Basta de atraso!