Celso Furtado, nosso pensador renascentista

AS PAUTAS QUE FURTADO definiu como prioritárias, sobre a centralidade do Estado no desenvolvimento, seguem de pé. Sua retidão política e seu profundo compromisso com o Brasil fizeram dele um combatente multifacetado, que interveio em diversas frentes de debate e de combate. Uma espécie de sábio do Renascimento, cujo legado é capaz de municiar os que ficam para enfrentar os obstáculos, as mentiras e as brutalidades destes tempos infames da nacionalidade.
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1. EUGÊNIO GUDIN (1886-1986), o pai de todos os economistas neoliberais brasileiros, detestava Celso Furtado (1920-2004). Um ano depois do golpe de 1964, o qual apoiou, ele escreveu o seguinte, em “Análise de problemas brasileiros, 1958-1964”:

“Celso Furtado não acredita na existência e na utilidade de princípios científicos fundamentais de Análise Econômica. (…). Os estudos econômicos passariam assim a ter um caráter muito mais político, histórico e até literário e opinativo, do que analítico. (…) Isso explica que nos livros de Furtado raramente se encontre um estudo, já não direi econométrico, mas simplesmente quantitativo”.

O ataque do homem que se opôs tenazmente à industrialização brasileira, à criação da Petrobrás e que quase quebrou o país quando foi ministro da Fazenda (1954-55), é a prova inconteste de que Furtado incomodava as velhas oligarquias. É o melhor indicativo da necessidade de se ler e reler o autor de “Formação Econômica do Brasil”, quando se comemora seu centenário. As bases do pensamento furtadiano tinham como métrica a intervenção na realidade pobre, desigual e injusta e não modelos econométricos nada isentos, tidos como “princípios fundamentais” por gente como Gudin.

2. CELSO FURTADO FEZ na Economia o que seu contemporâneo Oscar Niemeyer realizou na arquitetura: inventou uma abordagem brasileira na área. Antes de Niemeyer, nossas cidades estavam repletas de cópias de um ecletismo europeu pouco adaptado ao entorno tropical. Furtado nos ensinou a pensar a periferia e a criar uma teoria política do desenvolvimento, para além de parâmetros pretensamente universais emanados de centros de pesquisas dos países ricos. Sem negar os clássicos, ele os leu e interpretou com novos olhos.

3. NÃO PARECE SER POSSÍVEL entender a obra de Furtado sem dois eventos fundamentais em sua vida, a Guerra e o golpe de 1964. A vivência do conflito, como pracinha da FEB na Itália, em uma Europa devastada lhe deu “Os ares do mundo”, título de um dos volumes de suas memórias. O ambiente da descolonização e do nacionalismo do terceiro mundo teve aqui seu sincretismo no nacional-desenvolvimentismo. É nesse quadro que nasce a Comissão Econômica da América Latina (Cepal), em 1948. É nesse quadro que ele e Raúl Prebisch veem na ação do Estado a alavanca fundamental do desenvolvimento e da industrialização.

4. O GOLPE retira Furtado de sua marca essencial de homem prático, presente em três governos, desde 1951. O arbítrio e o exílio o atingem sua plena maturidade intelectual, aos 44 anos. A maior parte de sua obra é posterior a esse evento. Mas ela guarda uma coerência e um fio de raciocínio impressionantes com seus marcos primordiais. Todo seu trabalho teórico parece formar um único e enorme livro que sempre volta ao veio central, o de como romper o círculo de ferro do subdesenvolvimento. A cada nova obra, Furtado alarga seu raio de ação e incorpora novos pontos de vista, como a reforma agrária, a desigualdade, a dimensão cultural do desenvolvimento e outros.

5. No início de “O longo amanhecer”, bela cinebiografia realizada por José Mariani, nosso personagem afirma:

“Eu nunca imaginei ser o que fui. (…) Eu imaginava ser um homem de letras e daí pensei em ser um escritor de ficção. Mas com o tempo, fui observando que meu forte não era a ficção. (…) Meu forte era conseguir captar o essencial da realidade e, através da análise, entender o Brasil”.

Celso Furtado incorporou talento literário à sua obra teórica. Suas linhas proporcionam ao leitor imenso prazer intelectual. Parece algo secundário, mas não é. Raras são as obras acadêmicas cuja prosa flui com graça e bom gosto. Furtado era um narrador de mão cheia. O estilo é seco e enxuto. Não existe conversa jogada fora. Há um quê da sobriedade estilística de Graciliano em suas páginas.

6. FURTADO FOI UM PENSADOR DA AÇÃO, que não se conteve apenas nos âmbitos acadêmicos e nem tampouco colocou sua energia intelectual a serviço de algum interesse privado. Vale lembra-lo como um intelectual sempre referenciado no papel público do Estado. Tínhamos nele um economista que articulava profundo conhecimento na matéria, uma aguda imaginação científica e a visão de que as decisões essenciais no âmbito econômico se resolvem na esfera da política. Tal assertiva é clara em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, de 1966:

“As lutas pela superação do subdesenvolvimento e pela preservação de uma personalidade nacional com autodeterminação se integram dialeticamente na prática da ação política”.

Em outra parte, ele fala das:

“Modificações profundas, decorrentes de uma redefinição das funções do Estado que somente poderá realizar-se com o apoio de movimentos políticos de grande amplitude, capazes de alterar as bases atuais das estruturas de poder”.

7. AS PAUTAS QUE FURTADO definiu como prioritárias, sobre a centralidade do Estado no desenvolvimento, seguem de pé. Sua retidão política e seu profundo compromisso com o Brasil fizeram dele um combatente multifacetado, que interveio em diversas frentes de debate e de combate. Uma espécie de sábio do Renascimento, cujo legado é capaz de municiar os que ficam para enfrentar os obstáculos, as mentiras e as brutalidades destes tempos infames da nacionalidade.

Celso Furtado, JK e Jango.