A destruição do Cortume Carioca

A destruição do Cortume Carioca (1)
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Uma das minhas memórias de infância, lá pelo início e meados dos anos 2000, era passar todo dia em frente aos que antes era o Cortume Carioca, no bairro da Penha, subúrbio do Rio.

Sabia, por meu pai e outras pessoas mais velhas dizerem, que ali antigamente funcionava uma fábrica. Contudo, o que via ali eram apenas prédios abandonados, pichados, com janelas quebradas, invadidos e ocupados por mendigos ou pequenas igrejas evangélicas. A Expressão “Cortume Carioca”, para mim, estava associada apenas a um cenário digno de filme trash estadunidense da década de 1980, à la Street Trash. Depois, no início dos anos 2010, uma parte do espaço virou conjunto residencial. Melhorou o visual, mas nada que tenha modificado a dinâmica de degradação contínua do lugar.

Descubro, recentemente, que o Cortume Carioca não fora apenas uma fábrica, das tantas que existiam no subúrbio do Rio e deixaram de existir desde o final dos anos 80 e início dos 90, compondo um verdadeiro “rust belt” ao longo e nos arredores da Avenida Brasil. Não. O Cortume Carioca fora nada menos, até o seu fim no início dos anos 90, o maior curtume da América Latina e um dos maiores do mundo, abastecendo todo o Brasil e exportando para vários países, inclusive EUA. Também investia em outros curtumes Brasil adentro, como em Salgueiro, no sertão de Pernambuco, ajudando a interiorizar a nossa indústria.

Criado em 1920, o Cortume destinava-se não apenas à fabricação de artigos de couro e de peles, mas, também, à indústria química, metalúrgica e agropecuária, produzindo a maior parte dos insumos e equipamentos de que necessitava. Possuía um laboratório de pesquisas com várias divisões e, inclusive, uma cooperativa de crédito controlada pelos trabalhadores, bem como Grêmio Recreativo, biblioteca e outras utilidades públicas abertas a todo o entorno – um tio-avô meu, que jamais trabalhou no Cortume, casou no Grêmio Recreativo da fábrica.

É verdade que, desde 1925, o Cortume era controlado por uma empresa suíça. Mas, devido aos controles de fluxos de capitais instituídas por Getúlio Vargas e mantidos nos governos seguintes, a empresa suíça não apenas retinha os investimentos no Brasil, como transferia tecnologia para o Cortume e enviava engenheiros suíços para ensinar aos brasileiros os segredos tecnológicos. Não era uma relação parasitária, de centro-periferia, mas um jogo de soma positiva, apenas possível dada a uma adequada regulamentação governamental.

E o que aconteceu? Bem, o governo Collor, ao privatizar o comércio exterior e implantar o laissez-faire comercial, inviabilizou o Cortume que, obrigado a entrar no mercado de ações, foi devorado pelos tubarões da Bolsa. Além disso, a empresa suíça se desinteressou e abandonou o Cortume. Mais grave, porém, foi o abandono dentro do próprio país, onde ninguém sequer propôs que o Estado encampasse a fábrica, adaptasse seus processos produtivos para a nova fase dos couros sintéticos e para uma maior atenção a normas ambientais e, depois, concedesse a grupos privados nacionais ou, melhor ainda, a cooperativas de trabalhadores, aproveitando a experiência dos empregados com a cooperativa de crédito.

O resultado foi o encerramento total e definitivo de um dos maiores curtumes que já existiram, com a demissão de mais de 6 mil funcionários e o extermínio do laboratório de pesquisa, do Grêmio Recreativo e tudo mais.

Não foi um caso isolado. A desindustrialização absoluta do subúrbio carioca nessa mesma época levou à degradação do lugar. Da década de 90 em diante, onde até pouco tempo antes atrás havia uma classe média sólida e próspera, só sobraram seus descendentes falidos e precarizados, cada vez mais indiferenciados dos moradores de favelas – já há 15, 20 anos atrás eu ouvia falar de gente que perdeu o emprego e foi dirigir kombi. Florestas e bosques viraram imensos e violentos complexos de favelas, que cresceram exponencialmente entre o final dos anos 80 e o início dos anos 2000. Espaços públicos de lazer e convivência foram desmontados e a única lei que passou a existir foi a do fuzil, seja do tráfico ou da PM. Eu vivi isso e, por esse motivo, eu e minha família saímos do subúrbio do Rio em 2007, como praticamente todo mundo ali que podia fazer fez.

São décadas ininterruptas de decadência que coincidem com a Nova República e o neoliberalismo. Essa não é a história da modernização de um país, como prometido, mas da sua pilhagem e da sua destruição.

Abaixo, material de 1980, quando o Cortume ainda estava a pleno vapor.

 

A destruição do Cortume Carioca (1)

  1. Parabéns pela artigo! Meu pai de origem suíça trabalhou durante 30 anos no Cortume Carioca, até 1982 , quando, quando teve início a crise da dívida e também o início da decadência da empresa. Realmente foi uma vergonha o que deixaram acontecer com a empresa (e possivelmente muitas outras indústrias estabelecidas na Zona Norte).e também com a degradação da Penha e toda Zona Norte. Ia muito à Rua Quito na Penha visitar meu pai, que era um bairro bucólico típico de classe média do subúrbio. Fui visitar os prédios da empresa em 2001 e me espantei com o abandono do conjunto arquitetônico belíssimo dos anos 1920 que poderia ter sido utilizado para revitalização do bairro. Na ocasião, o porteiro da “massa falida”‘ me alertou para ir embora antes do anoitecer, quando a rua seria tomada pelas gangues locais. Parece que faltou um mínimo de iniciativa ou mesmo imaginação para os governantes ou pressão da sociedade para amenizar o impacto da falência (e a criação de novos negócios e etc.). No entanto a atividade de cortume é muito poluidora e o Cortume Carioca causava muitos problemas ambientais, também por estar localizado em área urbana (meu pai mesmo sempre sugeriu a mudança de parte dos negócios da empresa para Novo Hamburgo/RS). Com a crescente concorrência chinesa, penso que grande parte da desindustrialização teria sido difícil de evitar, mas teria sido necessário ter havido um apoio a uma mudança estrutural da economia, capacitacao da mão de obra e etc,

  2. Parabéns Felipe!
    É com profundo aperto no coração que leio matérias com tema sobre o Cortume. Tive o prazer e o privilégio de trabalhar nessa mãe de empresa chamada Cortume Carioca. Tudo que você disse, é inteiramente verdade. O Cortume tinha tudo isso e muito mais. Tinha um supermercado próprio, refeitório, posto de saúde, dentista, vale farmácia que a empresa bancava 50% dos nossos medicamentos em farmácias credenciadas. O clube com uma excelente quadra de futsal (revolucionária para sua época), espaço para eventos. Tinha a fazenda Santa Constância em Guapimirim com uma área enorme com grama verdinha, lindos rios, casas de veraneio, muito gado, onde de manhã cedo você podia chegar no curral e pegar leite fresquinho, galinheiro com ovos frescos. Tudo isso exclusivamente para os funcionários.
    Tinhamos 5 livros grandes de capa dura na cor preta (chamados livros de ouro) onde tinha fotos desde a construção do Cortume na Penha. O Cortume sofreu muitos processos ambientais como o Alex citou no texto acima. Mas eu te digo que foi uma injustiça, pois foi o Cortume que criou a Penha. Construiu casas ao seu redor, disponível para parte dos seus colaboradores que compraram as mesmas com pequenos descontos em seus ordenados. Meu avô trabalhou lá, meus tios trabalharam lá… Foi o primeiro emprego do meu pai, e foi lá que ele se aposentou. Ganhou um lindo relógio de prata e ouro com o nome dele gravado, placa de homenagem e uma linda cerimonia por seus anos de serviços prestados. O Cortume foi uma empresa que não existe mais igual a ela no Brasil hoje. Sinto muitas saudades… Fui desligado do quadro, quando a empresa estava prestes a fechar. Antes disso, eu caminhava por dentro de seus largos corredores, vazios, silenciosos e tristes, onde em seus dias de glórias, podíamos ver centenas de colaboradores em atividades cumprindo suas tatefas. Logo depois a empresa fechou. Passa em seu entorno e dava pena de ver no que à estavam transformando. Ficava muito triste e com a sensação de impotência de ver e não poder fazer nada. Sinto muita falta daquela época. Bons tempos que não voltam nunca mais!
    Forte abraço!

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