Pensar um projeto nacional que supere a herança escravocrata

Escravidão e Projeto Nacional
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Na última quinta-feira (22) o Portal Disparada organizou o evento “Escravidão e Projeto Nacional”. A discussão contou com as contribuições da cantora, compositora e deputada estadual Leci Brandão, do professor emérito da Universidade Paris-Sorbonne Luiz Felipe de Alencastro, e do professor Renato Aparecido Gomes, vice-presidente do Instituto Luiz Gama.

Um ponto levantado pela organização (motivo, aliás, da própria realização do evento) foi a necessidade de repensar a herança escravocrata do país diante do imperativo histórico de formular um novo projeto nacional de desenvolvimento.

PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO

Partiu-se da concepção de que desde a crise que afetou o Brasil na década de 1980, mas principalmente desde os governos neoliberais iniciados na década de 1990, passando pelos governos petistas dos anos 2000, para chegar finalmente ao governo Temer, não se discute mais o desenvolvimento do país em termos de projeto nacional.

Após a crise da década de 1980, que desnorteou a política nacional, os governos que se seguiram advogaram ou pela primazia total do mercado, com reformas liberalizantes, ou pela humanização do mercado, com políticas sociais acompanhando as reformas exigidas pelo mercado. Apesar da dificuldade de encaixar os governos referidos nesses modelos “puros” ou tipos ideais, o fato é que, ainda assim, nenhum governo em quase três décadas pensou o Brasil em termos de projeto nacional.

Por projeto nacional compreende-se um plano de curto, médio e longo prazo de transformações estruturais que leva em conta uma visão sistematizada das realidades econômicas, políticas e sociais formadas historicamente no país. Além disso, trata-se de enxergar a posição ocupada pelo país no mercado mundial e na governança global, buscando alterar radical ou gradualmente o tipo de inserção nessas estruturas.

Outro fator indispensável para um projeto nacional de desenvolvimento é um conceito de desenvolvimento em oposição a um conceito de subdesenvolvimento, o que de longe excede a limitada busca por “eficiência”, “crescimento” e outras definições abstratas do debate econômico atual.

Um projeto nacional de desenvolvimento tem por objetivo ações internas no país para reintroduzi-lo soberanamente no cenário internacional. Os mais altivos períodos da vida nacional foram acompanhados pelo fortalecimento do Estado nacional com o propósito de realizar os intuitos de projetos nacionais pré-definidos: Getúlio Vargas (1930-1945 e 1950-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961).

Foram períodos nacionalistas da vida política do país, mas que em termos econômicos se traduziram através do termo nacional-desenvolvimentismo. O nacional-desenvolvimentismo derivou fundamentalmente da renovação teórica promovida pela CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) após a segunda guerra mundial.

Parte importante do projeto cepalino foi repensar o subdesenvolvimento dos países latino-americanos em oposição às teorias econômicas universalizantes que o precederam. Os teóricos da CEPAL perceberam que essas teorias, de origem européia ou norte-americana, não compreendiam as especificidades do subdesenvolvimento, pois tratavam das realidades distintas dos países mais centrais do desenvolvimento econômico mundial.

SUBDESENVOLVIMENTO E ESCRAVIDÃO

Um dos equívocos mais graves nesse sentido e que as teorias importadas não conseguiam captar, de acordo com o economista brasileiro Celso Furtado, foi a questão dos fatores de produção (capital e trabalho):

  • Nos países desenvolvidos, o desenvolvimento industrial absorveu o trabalho antes ocupado nos setores artesanais e de subsistência até que essa mão-de-obra se fizesse escassa. A evolução tecnológica que se deu a partir de então buscou poupar trabalho construindo equipamentos e organizando o processo produtivo de modo que se necessitasse de menos pessoas trabalhando. O desenvolvimento nesses países pioneiros da industrialização se deu num quadro de abundância de capital e escassez de mão-de-obra;
  • Nos países retardatários, a relação foi inversa: abundância de mão-de-obra e escassez de capital. Explico: a industrialização foi realizada desde o princípio com maquinário importado dos países desenvolvidos, ou seja, o capital escasso destinado à indústria foi empregado em equipamentos poupadores de mão-de-obra. Dessa forma, como absorver a parcela enorme da população recém libertada da escravidão?

O professor Luiz Felipe de Alencastro, responsável por um dos trabalhos mais respeitados sobre a escravidão no Atlântico Sul, trouxe uma informação, durante o evento organizado pelo Portal Disparada, com a qual somos obrigados a trabalhar. Afirmou o professor que entre 1500 e 1850, a cada 100 indivíduos que entraram no Brasil, 80 eram africanos.

A história da economia brasileira aponta que a industrialização mais incipiente se deu a partir de meados do século XIX até a década de 1920, antes de acelerar após a crise internacional de 1929. Estamos falando de um século de atraso em relação aos países pioneiros na industrialização.

Dessa forma, nos deparamos com o problema dos fatores de produção: como empregar essa abundância de mão-de-obra ocupada em atividades de subsistência se o capital disponível era, em parte, despendido em bens de consumo importados pela elite econômica e política do país, e em parte destinado a comprar equipamentos desenvolvidos para poupar mão-de-obra naqueles países onde a mão-de-obra era escassa?

A industrialização brasileira nunca foi capaz de solucionar globalmente essa questão. Uma solução possível seria capacitar o trabalhador industrial brasileiro para produzir os próprios bens de produção utilizados na indústria nacional. Contudo, quando  avançamos definitivamente nesse setor ao durante década de 1970, sobreveio a crise da década de 1980 e as políticas de abertura irrestrita da década de 1990. Desde então vivenciamos um processo de desindustrialização do país.

Em termos puramente econômicos, “mão-de-obra” não faz distinção entre brancos, negros, índios, asiáticos etc. A única forma de compreendermos a herança escravocrata é, realmente, incorporando dados como os apresentados pelo professor Alencastro e retomando uma visão histórica do subdesenvolvimento brasileiro.

NACIONALISMO E HERANÇA ESCRAVOCRATA

A deputada Leci Brandão bem disse que é possível, e de costume, que os brancos do Brasil sempre saibam apontar de onde vieram seus antepassados: Portugal, Itália, Espanha etc. Mas para um negro, dificilmente pode-se apontar de onde vieram os escravos dos quais descendem. Aliás, aqueles não eram escravos por definição, mas, sim, foram escravizados.

Um projeto nacional de desenvolvimento jamais se dará, no entanto, sob uma perspectiva identitária de afirmação de uma identidade negra que precisa ser reparada historicamente diante de uma identidade branca responsável pelas opressões históricas.

O identitarismo possui uma falha básica que é a incapacidade de incorporar o diferente, aquele que não compartilha das características biológicas ou culturais do grupo identitário.

Será preciso que ocorra no Brasil uma verdadeira reorganização nacionalista para que a herança do passado escravocrata seja superada. O motivo é bem simples. A maioria dos brasileiros é negra.

Como lembrou o professor Alencastro, a questão racial no Brasil não se resume a reparações históricas, mas trata da própria viabilização da democracia no país. A construção nacional é impossível se não aglutinar em torno de um projeto a maior parte da população.

O mérito dos cepalinos foi apontar que as teorias econômicas produzidas nos países centrais não podem ser implementadas de maneira neutra nos países periféricos. A partir de então, os intelectuais verdadeiramente nacionalistas tiveram que pensar o Brasil a partir das características essenciais da nossa formação histórica: nasceu o nacional-desenvolvimentismo.

O esgarçamento atual das tensões sociais deve acolher a herança cepalina e nacional-desenvolvimentista para refletir sobre a herança escravocrata, pois a questão remete à própria construção da nossa nação. Para finalizar parafraseando Leci, o problema não foi o 13 de maio de 1888. Foi o 14.

  1. Oi Rica! Legal o texto. Queria ter ido no evento de vocês.

    Fiquei pensando aqui. O tripé que sustenta o nacional desenvolvimento é: substituição das importações, intervenção do estado e nacionalismo, certo?
    Quanto a essa tríade, eu diria ser inegável a politica Lulista de intervenção nas indústrias de base, além da protuberância do sentimento nacionalista e fortalecimento da imagem do Brasil no exterior.

    Admito, contudo, que o governo Lula não se destacou pela transformação da estrutura produtiva, conforme entendiam os Cepalinos, ser o caminho para o desenvolvimento na AL.
    Lula, por outro lado, revolucionou a estrutura de consumo e crédito, que naquele período, arrisco a dizer, talvez tenha sido um juízo mais disruptivo do que uma política de transformação dos bens de capital.

    Ao contrário, seguiu a onda da alta mundial das commodities, superavitou a balança comercial com as exportações no agronegócio e estimulou o comércio nacional. A transformação aconteceu não no “capital”, mas nos “bens” e na amplificação de seus consumidores.

    Difícil comparar o Brasil (e o mundo) de Getúlio ou de JK com o cenário favorável, que um país com as características seculares do nosso, se deparou na primeira década do século XXI. Desafiador, também, é dizer que governante teria peito para não “surfar nessa onda”. O que não podemos é colocar o governo Lula no mesmo saco dos governos neoliberais. Nacional desenvolvimentista, em seus fundamentos, pode não ter sido, mas tinha um claro e ambicioso projeto nacional de desenvolvimento.

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