As formas sociais não se abolem naturalmente, elas são abolidas

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Karl Marx em sua primeira frase de O Capital afirma: “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ´enorme coleção de mercadorias, e a mercadoria individual, por sua vez, como sua forma elementar”[1]. Em sua análise da mercadoria, ele não parte de uma exposição histórica, ou seja, da circulação simples de mercadorias no pré-capitalismo até a especificidade das circulação de troca capitalistas. Ele parte de uma exposição lógica, do nível mais abstrato, a mercadoria, até suas formas mais sobredeterminadas no decorrer da exposição dos três livros. Logo, a lei do valor é o regulador das relações capitalistas, não são leis da natureza, leis da ciência da economia política, que não podem ser abolidas pela ação social, não são leis eternas, diferente do que afirma Stálin na passagem abaixo:

O marxismo entende as leis da ciência — quer se trate das leis das ciências naturais, quer das leis da economia política — como o reflexo de processos objectivos que ocorrem independentemente da vontade das pessoas. As pessoas podem descobrir, conhecer, estudar, ter em conta estas leis nos seus actos, utilizá-las no interesse da sociedade, mas não podem modificá-las nem aboli-las. Muito menos podem formar ou criar novas leis da ciência.[2]

Para Stálin o marxismo descobriu as leis da economia política, não se trata do que o Marx afirma no subtítulo “crítica da economia política”. Marx em sua teoria do valor-trabalho expõe as engrenagens não perceptíveis aos olhos da ideologia burguesa e suas contradições inerentes. Tal obra tem como propósito não estudos acadêmicos em si, mas a compreensão da materialidade capitalista. Estudar a teoria do valor de Marx não é ficar no reino das abstrações, mas entender que estas são abstrações reais, que estruturam as relações de dominação capitalistas, que só a abolição das formas sociais capitalistas pode socializar gados, cabras e porcos, e claro,  socializar a eletrificação. Stálin continua dizendo que o homem não pode agir contra tais leis, que essas só serão abolidas se o desenvolvimento das forças produtivas permitir.

O mesmo se deve dizer a respeito das leis do desenvolvimento económico, das leis da economia política, tanto faz tratar-se do período do capitalismo ou do período do socialismo. Tal como nas ciências naturais, também as leis do desenvolvimento económico são objectivas, refletem os processos do desenvolvimento económico que se produzem independentemente da vontade humana. As pessoas podem descobrir estas leis, conhecê-las e, apoiando-se nelas, aplicá-las no interesse da sociedade, imprimindo outra direcção à ação destruidora de certas leis, limitando a sua esfera de ação, dando livre curso a outras leis que abrem o seu caminho, mas não podem eliminá-las ou criar novas leis económicas. Uma das particularidades da economia política consiste no fato de que as suas leis, diferentemente das leis das ciências naturais, são efémeras, atuam, na sua maioria pelo menos, no decurso de um determinado período histórico, após o qual cedem lugar a novas leis. Porém, estas leis não são eliminadas, apenas perdem validade por força das novas condições económicas, e saem de cena para dar lugar a novas leis, as quais não são criadas por vontade humana, mas surgem na base das novas condições económicas.[3]

Mas seria essa leitura de Marx que aqui faço, distinta do pensamento bolchevique, um fruto da Nova Leitura de Marx? Ou seria a interpretação stalinista um claro desvio teórico das interpretações de Marx e, por que não, um revisionismo? Será que Lênin, Pachukanis, Isaak Rubin e Mao concordam com as interpretações de Stálin de que as leis da economia política, logo, a lei do valor não podem ser abolidas pela ação política e ideológica, apenas se abolem naturalmente com o desenvolvimento gradual das forças produtivas?

Lênin em Estado e revolução, com base na experiência da Comuna de Paris, aposta em uma transformação qualitativa do Estado em que este, gradualmente, vai perecendo e o poder político dos Sovietes emerge como a nova forma de organização política.

A depuração do aparato de Estado, ou seja, a luta contra os portadores concretos do mal burocrático, a luta contra o inimigo de classe, que se abrigou em nosso aparato de Estado como se fosse a última trincheira, é agora uma das tarefas centrais. Ela não pode ser evitada a partir de considerações como essas de que antes de tudo é preciso transformar todo o sistema, pois “um sistema ruim estraga pessoas boas”. Devo ressaltar que o ponto de vista de Lênin acerca da luta contra os defeitos de nosso aparato nunca se esgotou no lema “estudar e elevar a cultura organizativa”; juntamente com isso, Lênin reiteradamente frisa a necessidade de dura repressão aos representantes concretos a burocracia e aqueles que não sabem lutar contra essa burocracia. Lenin nos conclamou a não nos escondermos atrás de condições objetivas. Ele efetuou a delimitação das tarefas de Inspeção dos Operários e Camponeses, que deveria direcionar sua atenção não tanto para a identificação de culpados quanto para a procura de medidas visando o aprefeiçoamento da organização do trabaho, das tarefas do tribunal, que deve punir os burocratas e aqueles que os favorecem.[4]

O receio de Lênin com a restauração do Estado pela via da burocratização permanece até sua morte. Para ele, não só a elevação cultural do proletariado estava em jogo, mas o combate a uma nova camada burocrática se constituindo no seio do Estado. Lenin não aceitava a manutenção da divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, a divisão “técnica” do trabalho, que no fim era uma divisão de classe. Ele lutava pela participação de toda a massa trabalhadora.

O mais importante na orientação leninista consiste em recrutar para a participação na gestão do Estado toda a massa, sem exceção, e não escolhidos, não pessoas que se destaquem por certas qualidades peculiares, pois o Estado soviético deve trazer para a gestão justamente os mais atrasados, os mais iletrados, os mais humildes, para desenvolvê-los e para elevá-los. Com relação a isso precisamente é que Lenin, em diversos discursos, desenvolve seu plano de introdução gradual nos mais diversos trabalhos, primeiro os mais simples, depois mais e mais complexos.  .[5]

Esse foi um ponto de destaque do pensamento maoísta, que com a Revolução Cultural dava primazia às organizações de massa, conselhos operários sobre o partido e o Estado. O aprimoramento da produção não pode vir de uma hipertrofia do Estado, mas da sua atrofia. Essa foi a preocupação de Lenin, Pachukanis e Mao, sem abandonar o combate à pauperização, recuando quando necessário, mas sem perder a linha política da revolução. Por isso a preocupação em construir uma economia socialista distinta da economia capitalista.

Com a tomada do poder estatal, a estatização dos meios de produção não abole a propriedade privada, isso é um socialismo jurídico. O fundamento da propriedade privada são as relações de produção, e não o Estado e institutos jurídicos. Se os meios de produção são controlados pelo Estado, e este for controlado pela massa trabalhadora (e não uma vanguarda educada do partido), daí o conceito ditadura do proletariado, ainda assim, a propriedade privada permanece durante um período, longo ou curto, dependendo das condições materiais, pois o planejamento econômico coexiste com o mercado. Na economia planificada “as relações de produção entre os indivíduos membros da sociedade se estabelecem conscientemente, para garantir o curso regulador da produção”[6], logo, “o papel de cada membro da sociedade no processo de produção, isto é, seu relacionamento com os demais membros, é conscientemente definido”[7]. Já no mercado e na produção mercantil, voltadas a produção de valores de troca, as relações de produção são mediadas por coisas (mercadoria, dinheiro). A anarquia do mercado é substituída pela administração técnica das coisas, na produção de valores de uso, de bens, e não mercadorias. Essa contradição entre mercado e planificação perdura no socialismo. A administração técnica das coisas só é possível se a luta contra o burocratismo for mantida. Caso contrário, tais normas técnicas oriundas do Estado são normas jurídicas que consolidam o antagonismo de classe. Sobre a distinção entre norma jurídica e norma técnica, Pachukanis afirma:

Uma das premissas fundamentais da regulamentação jurídica é, portanto, o antagonismo dos interesses privados. Isso é, ao mesmo tempo, uma premissa lógica da forma jurídica e uma causa real do desenvolvimento da superestrutura jurídica. O comportamento das pessoas pode ser regulado pelas mais diferentes regras, mas o momento jurídico dessa regulamentação começa onde têm início as diferenças e oposições de interesses. (…) De modo contrário, a unidade de finalidade representa a premissa da regulamentação técnica..[8]

Se existe uma divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, existe um antagonismo de interesses entre os burocratas e a classe trabalhadora, da mesma forma, se há a coexistência do mercado, há um antagonismo entre os proprietários privados. Logo, há norma jurídica e não meramente normas técnicas. O socialismo está preso dentro dos estreitos horizontes do direito burguês, ou seja, da forma equivalente. O socialismo é a fase de transição ao novo modo de produção comunista. O direito igual permanece no socialismo, mantendo injustiças sociais[9], pois a distribuição das riquezas se dá pela forma equivalente: x trabalho para x produtos do trabalho. O valor permanece como regulador social, o trabalho ainda é uma obrigação social e não primeira necessidade vital. Nessa formula ainda há uma troca de equivalentes, há o trabalho abstrato como síntese da totalidade social. Só a primazia das lutas políticas e ideológicas contra as formas econômicas pode superar o capitalismo. O socialismo não é construir hospitais em tempo recorde, mandar o homem para a Lua, se tais objetivos não favorecem a classe trabalhadora. Se na China a planificação econômica supera o mercado (sem entrar em polêmicas sobre a veracidade disso ou não), por outro lado, se a divisão entre gestão e execução, trabalho intelectual e trabalho manual não estiver sendo combatida, sem cair nas armadilhas ideológicas burguesas da meritocracia, a circulação mercantil  só foi substituída por uma circulação planejada, ou seja, não houve alteração no modo de produção, apenas no modo de distribuição. Porém, a crítica da economia política de Marx e sua teoria do valor-trabalho é uma crítica radical ao modo de produção capitalista.

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a tiranizante subordinação dos indivíduos à divisão social do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, quando o trabalho não for apenas um meio de vida, mas se tornar ele mesmo a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento múltiplo dos indivíduos, as forças produtivas também tiverem aumentado e quando todas as fontes de riqueza coletiva brotarem com abundância, somente então o horizonte limitado do direito burguês poderá ser definitivamente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever nas suas bandeiras: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”. [10]

Só com o fim da subordinação real do trabalho ao capital, da divisão de classe do trabalho por uma divisão realmente técnica do trabalho (conforme as capacidades); da distribuição da equivalência do valor por uma distribuição conforme as necessidades particulares de cada indivíduo; do trabalho como obrigação social ao trabalho como atividade vital; só assim a produtividade em abundância será comunista. Só a mediação entre as tarefas imediatas e a linha política da construção do comunismo pode fazer do socialismo, como fase de transição do capitalismo ao comunismo, ser vitorioso. Esse é o legado que o marxismo deixou à classe trabalhadora, a necessidade da revolução como única forma de emancipação social. Por isso que os marxistas só falam em destruição do Estado, fim da ideologia jurídica, associação de trabalhadores livres, etc., pois, as formas não se abolem um dia, naturalmente, se não forem abolidas.

[1] MARX, Karl. O capital. Livro I; processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 113)

[2] Stálin, Joseph. Problemas economicos do socialismo na URSS.  In: http://www.hist-socialismo.com/docs/ProblemasEconomicosSocialismo.pdf, p. 2.

[3] Ibid., p. 3.

[4] PACHUKANIS, Evgeny. Teoria geral do direito e marxismo e ensaios escolhidos. Trad. Lucas Simone. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 328-329.

[5] Ibid., p. 333.

[6] RUBIN, Isaak. Teoria marxista do valor. Trad. José Bonifácio de S. Amaral Filho. São Paulo: Polis, 1987, p. 27.

[7] Ibid., p. 27.

[8] PACHUKANIS, Evgeny. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 94.

[9] “O direito igual, diz Marx, temo-lo aqui, com efeito, mas é ainda o direito burguês, que, como todo o direito, pressupõe a desigualdade. Todo o direito consiste na aplicação de uma regra única a pessoas diferentes, a pessoas que de fato, não são idênticos, nem iguais. Por isso, o direito igual equivale a uma violação da iualdade, a um ainjustiça. Com efeito, cada um recebe, por uma parte igual de trabalho social fornecido por si, uma parte igual do produto social. (…) Ora, os indivíduos não são iguais. Um é mais forte, outro mais fraco; um é casado, outro não; um tem mais filhos do que outro, etc” (LENIN, V. I Estado e revolução. Trad. J. Ferreira. Porto: Vale Formoso, 1970, p. 105.)

[10] LENIN, V. I Estado e revolução. Trad. J. Ferreira. Porto: Vale Formoso, 1970, p. 108.

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