“Gráfico da pizza da ACD” e os assediadores morais

GUSTAVO CASTAÑON Gráfico da pizza da ACD e os assediadores morais dívida pública maria lúcia fatorelli
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O Brasil é um país sui generis, todos sabemos. Tão sui generis, que uma parte da esquerda, que não vou aqui nomear, se apaixonou pelo mecanismo da dívida interna e acha que o máximo do progressismo econômico é defender uma explosão sem limites dela através de um déficit público descontrolado.

Para isso, se baseiam numa interpretação instrumental da teoria descritiva da MMT (uma teoria que descreve o processo monetário de um país que emite sua própria moeda).

Defender que o Estado se endivide indefinidamente ao invés de emitir crédito para investir e se tornar credor já deveria ser vergonha suficiente para alguém que se diga de esquerda, mas para eles, não é (num sentido limitado o Estado DEVE se endividar para garantir estabilidade à poupança interna dos entes privados).

Essas figuras se dedicaram à vergonhosa atividade de perseguir e caluniar a economista Maria Lucia Fattorelli, que há anos luta incansavelmente, através da Auditoria Cidadã da Dívida, contra o mecanismo perverso dessa dívida construída juros sobre juros e que destruiu o desenvolvimento do país que mais se desenvolvia no mundo até 1980.

Eles fazem isso porque não conseguiram dobrar os joelhos dela para adorar a dívida, como eles dobraram.

No espantalho que inventaram para perseguir a mulher que não se dobrou à dívida (e a eles), a acusam de espalhar a ideia de que bastaria parar de pagar a dívida para os recursos de nosso orçamento para funções básicas do Estado (saúde, educação, investimento) dobrarem.

Essa é a “Fattorelli” que eles inventaram para caluniá-la em coro com os banqueiros. Ela nunca afirmou isso, se parte da militância de esquerda afirma, cabe esclarecer, não caluniar.

Mais ainda, o principal assunto aqui, inventaram que ela inventou o “gráfico da pizza da ACD”, e que esse gráfico seria uma mentira e uma estultice econômica.

Mas não há “gráfico da pizza da ACD”. O gráfico da pizza que a ACD apresenta é uma representação literal do orçamento da União, aprovado em lei todo ano pelo Congresso Nacional.

Você pode conferir seus valores e a forma como são apresentados NA FORMA DA LEI pelo Ministério do Planejamento e pelo Congresso oficialmente aqui, nos links que armazenam a LOA (Lei de Orçamento da União) e o Orçamento Cidadão (forma didática de apresentar o Orçamento ao público leigo).

E a forma como a lei ordena é contabilizar todas as receitas e todas as despesas.

Você não pode escolher o que quer que o público veja.

O Congresso não faz isso porque quer enganar as pessoas quanto ao peso da dívida, mas precisamente pelo contrário. Além disso, se trata da mais elementar prática de contabilidade.

E também é importante lembrar aqui que essa prática veio junto com a Lei de Responsabilidade Fiscal, não é uma invenção de economistas heterodoxos, muito pelo contrário. É claro que a rolagem da dívida gera custos orçamentários, e como tal, precisa estar claramente prevista em receitas e despesas. É preciso ter muito claro a capacidade de pagamento do Estado fora da mera emissão de moeda.

A lógica econômica por trás dessa contabilidade é que a despesa da amortização é certa (se o Estado não der o calote), mas a receita para rolar a dívida tem ainda que ser conseguida no mercado e, ao contrário do que eles dizem, não é automática, depende dos juros que o Estado paga e da confiança que o mercado tomador tem da saúde financeira e política do Estado.

Eles dizem que isso não importa porque se o mercado não quiser rolar a dívida o Estado emite e recompra os títulos.

Mas isso é um desastre porque desvaloriza na prática o valor da moeda como um todo e dos títulos que ainda não venceram nas mãos do mercado.

Para eles, contabilizar rolagem da dívida “está errado” porque se eu amortizei 100 com os 100 que eu peguei emprestado, não houve despesa.

Percebem o que some com isso?

Os juros.

E a estimativa de nossa necessidade anual de refinanciamento.

Eu poderia conceder a eles que não houve despesa “real”, mas a questão não é se a despesa é real ou não. A questão é que o tesouro precisa se endividar para pagar a dívida.

Eles agem como se não tivéssemos contraído mais dívida para ter receita para rolar essa dívida ou pago juros por isso. Acham que a capacidade de pagamento do Estado é infinita porque ele pode emitir moeda indefinidamente.

Mas moeda podemos emitir, riqueza real para lastreá-la, temos que produzir.

Quando se esconde as receitas e despesas financeiras do orçamento como querem os adoradores da dívida, o resultado é uma confusão para o público muito mais danosa, que é a ideia, repetida por Amoedo ontem na Globo News, de que “não gastamos nossos impostos com juros ano passado”, porque o gasto primário (com as despesas que são objeto primário do governo, saúde, educação, previdência…) levou toda nossa arrecadação e ainda faltou.

Isso sim, é um crime, crime que eles ajudam a perpetrar todo dia.

Ora, não só pagamos juros ano passado como tivemos que pegar dinheiro emprestado para pagar! Só um analfabeto econômico pode achar que isso pode continuar indefinidamente sem destruir completamente a capacidade de crescimento de um país.

O sofisma dos adoradores da dívida é o que a exposição do Orçamento da União impede: o caixa é único e a despesa é única. Hoje, metade da receita de nosso orçamento temos que pegar no mercado financeiro, a outra metade, em impostos.

É claro que para qualquer um que não seja um sofista há recursos de nossos impostos indo para pagar juros. E de nossos empréstimos também.

Porque mesmo que os recursos sejam carimbados, é nossa capacidade de financiar o desenvolvimento que hoje está indo para financiar pagamento de juros.

Se você ainda dá ouvidos a estas pessoas, se acha que eu, a Fattorelli, o Ciro e a própria União estamos simplesmente mentindo ou sendo estúpidos, e que a posição correta para a esquerda na forma de apresentar o orçamento é fazer coro com o mercado financeiro, recomendo alguma prudência. Ler a lei do orçamento pode bastar.

Se não bastar e quiser debater, debata. Só faça isso sem mentiras e com argumentos, para que eu não tenha que usar com você os adjetivos que editei neste artigo.

  1. Finalmente um pouco de bom senso nesta questão da divida. Já estava incomodado com economistas que respeito como Oreiro e Gala usando esse truque pra desmerecer a Fatorelli ou o Ciro.
    Engraçado que o argumento seguinte é de que a dívida do governo é o ativo de alguém e que eventual revisão deste assunto seria roubar esta pobre população credora do governo.
    Primeiro que ninguém está propondo simplesmente meter um calote da dívida. Segundo e mais importante é a graça de ver que quando é o dinheiro dos ricaços e classe média alta que engordaram com juros a 20% aa sem risco eles achavam normal. Mesmo isso sendo pago com o dinheiro suado do povo. Mas quando se aventa a possibilidade de perdas FUTURAS dessa massa de dinheiro juntando em fundos eles dizem que é roubo.
    Engraçado que o pensionista do INSS que contribuiu a vida inteira e agora vai ter sua pensao recalculada pra baixo pela reforma, esse aí não tem problema ser tungado. Mas se o pensionista do fundo de previdência privada tiver seus proventos futuros reduzidos mesmo após acumular com juros estratosféricos, aí nao pode de jeito nenhum. vai quebrar o sistema financeiro!
    Tem que ser muito fdp ou estar míope para além do próprio umbigo…

  2. Não sei se aqui seria o lugar adequado para perguntas, mas eu tenho uma dúvida com relação a esse processo de endividamento. Já procurei no Google, mas sou leigo e não consegui achar uma boa resposta. Eis minha pergunta:

    Os FED nos EUA estão há algum tempo emitindo moeda pra comprar ativos financeiros e manter os preços desses ativos valorizados. Pelo que consegui entender lendo sobre isso, esse tipo de operação tenderia a fazer o dólar desvalorizar, no entanto o volume de dólares não para de crescer e parece que os EUA podem fazer isso impunemente. Por acaso isso significa que existe o risco do dólar simplesmente entrar em colapso? Em outras palavras, é possível vermos o dólar perder valor abruptamente e o americano ter que enfrentar uma hiper inflação? Quais seriam as consequências para o sistema financeiro caso isso ocorresse? E para o Brasil?

    Abraços.

  3. Ótimo texto, muito didático. O sistema da dívida, na forma como ele funciona hoje, é extremamente concentrador de renda e atrapalha o Brasil. Por isso que é preciso fazer auditoria, ver o que está errado, corrigir, buscar um realismo fiscal e colocar as possibilidades de endividamento do país a serviço do nosso desenvolvimento. Não é pq estamos gastando mais do que arrecadamos com impostos, que o sistema da dívida, moldado na forma entreguista neoliberal, deixou de produzir seus efeitos perversos.

    Mas desde que o PT foi ao governo, problematizar a questão da dívida passou a atrapalhar o governismo e foi crescendo e se sofisticando uma corrente que passou a difamar o gráfico da pizza, quando ele representa exatamente o orçamento anual do país, que é outra coisa diferente de arrecadação de impostos. Hoje, até o Psol que exerceu um papel importante na busca por auditoria no passado, com sua submissão recente ao PT, também comprou o mesmo discurso liberal de difamar o debate da dívida. O engraçado é que, como apareceu no debate da Globonews, estão com o mesmo discurso do Amoedo.

  4. Olha, a maioria dos economistas “de mercado”, inclusive os ditos “de esquerda” possuem títulos da dívida pública (alguns já falaram isso publicamente), e alegam que os títulos da dívida interna estão pulverizados nas mãos da”população”, portanto seria impossível uma auditoria. É muita preguiça de pesquisar! Pois o trabalho incessante da ACD incomoda os preguiçosos…

  5. Seria mais transparente (e honesto) que fossem dados os nomes dos bois. Melhor ainda, indicando as fontes e links para as respectivas declarações. Não vi ninguém “defender uma explosão sem limites” da dívida interna através de um “déficit público descontrolado”.

  6. Eu estava preparando um longo texto de comentário. Mas vou dizer só uma coisa: PARABÉNS CASTAÑON! Essas coisas eu tenho repetido em grupos que participo e quando peço argumento contrário ao que de fato está no material da ACD, ficam no silêncio. Só falam generalidades como “o gráfico da pizza é falacioso” ou “nenhum economista sério acredita na ACD”, como se a ACD fosse uma espécie de entidade religiosa que emitisse simples opiniões sem fundamento em dados.

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