Por que não devemos demonizar a Vale?

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Após dois meses do rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale, que causou a morte de 216 pessoas e o desaparecimento de 88, nos resta a pergunta: o que de fato causou o desastre?

Este desastre, ocorrido três anos após o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, segue quebrando tristes recordes como a mais longa operação de buscas registrada na história de Minas Gerais, além de causar a contaminação de trechos no Velho Chico. Por outro lado, os questionamentos acerca da culpabilidade da Vale são realizados de forma a não se compreender as reais razões que levaram ao colapso da Barragem 1 e os atuais problemas com barragens desativadas da companhia.

Ao culpabilizar somente peritos e engenheiros, meros funcionários da empresa, também há um desvio da real responsabilidade da Vale, que é uma empresa multinacional dominada por investidores estrangeiros. Por isto, é preciso uma análise do que é a Vale e quem são os controladores da companhia.

Segundo o organograma fornecido no website da Vale, a companhia possui a seguinte composição acionária: 46,6% das ações ordinárias pertencem a investidores estrangeiros, 14,4% a investidores brasileiros, 21% à Litela (sendo que 10,1% das ações estão atreladas ao acordo de acionistas), 6,3% ao BNDESpar (sendo que 2,3% das ações estão atreladas ao acordo de acionistas), 5,7% ao Bradespar (sendo que 4,2% das ações estão atreladas ao acordo de acionistas) e a 5,6% a Mitsui&Co (sendo que 3,6% das ações estão atreladas ao acordo de acionistas). Além disso, o Governo Federal possui 12 golden shares que dão o direito de intervir na empresa em situações especiais.

A partir de sua composição acionária, pode-se perceber que o Estado possui poder decisório sobre a Vale somente através da participação do BNDESpar – subsidiária do BNDES, que é uma empresa pública – e das 12 golden shares que fazem parte do pacote de privatização da empresa que ocorreu em 1997. Estas ações preferenciais permitem o veto em algumas decisões da sociedade, como alteração da denominação social, mudança da sede social, alteração no objeto social com relação à exploração de jazidas minerais, modificações dos direitos atribuídos às espécies e classes de emissão da Vale, liquidação da empresa, qualquer alienação ou encerramento das atividades ligadas à exploração de minério de ferro (jazidas, ferrovias, portos e terminais marítimos).

A maior parte das ações da companhia, entretanto, pertence a investidores estrangeiros e a fundos de pensão, pois a Litela é composta por quatro fundos de pensão (Previ, Petros, Funcep e Fundação Cesp) e tem por objetivo participar em outras sociedades. A Litela participa na Vale através da subsidiária chamada Litel que tem por principal atividade econômica a participação na empresa de mineração.

Ressalta-se também a participação do Grupo Mitsui&Co, um gigante conglomerado japonês (classificado como sogo shosha) que atua em diversos setores, como mineração, químicos, têxtil, finanças, logística e energia e possui participação em diversas empresas brasileiras atuantes no setor de energia.

Empresas como a Vale, que possuem uma participação acionária pautada na atuação de investidores no mercado de capitais, tornam-se dependentes destes acionistas nas decisões tomadas dentro do conselho de administração (eleitos pelos acionistas) e também para se financiar. Logo, esta participação acionária, composta principalmente por investidores e empresas, nacionais e estrangeiros, que procuram tão somente a distribuição de dividendos, acaba por deixar em segundo plano o interesse público envolvido na atividade econômica exercida. Isto pode causar tanto desastres como os que ocorreram nos últimos três anos, como também na perpetuação de um país com uma economia pautada na exportação de commodities.

A Vale do Rio do Doce nasceu de um esforço estatal cujo objetivo era causar a industrialização do país, através da criação de indústrias de base que fornecessem o material para o desenvolvimento de indústrias de capital nacional. Todo esse esforço para construção de uma indústria de mineração forte e eminentemente brasileira se esvaiu na década de 1990, com dois atos do governo alinhado à ideologia proveniente do Consenso de Washington que se instalou no país.

O primeiro ato foi a Emenda Constitucional nº 13 de 1995 que teve por fulcro permitir a entrada de empresas estrangeiras e multinacionais em setores estratégicos, como a mineração. A Emenda revogou o artigo 171 da Constituição Federal que distinguia a empresa nacional da empresa de capital nacional e concedia benefícios e privilégios às últimas caso desenvolvessem atividades econômicas estratégicas à defesa nacional ou imprescindíveis ao País. Esta revogação também foi estendida ao artigo 176, que autorizava a lavra, a mineração e o aproveitamento do potencial hidráulico somente às empresas de capital nacional.

O segundo ato foi a escandalosa privatização da Vale em 1997, vendida ao Consórcio Brasil, liderado pela CSN. A União vendeu o controle da empresa (41,73% das ações ordinárias) por R$ 3,3 bilhões, valor que segue controvertido, pois somente as reservas da empresa valiam mais de R$ 100 bilhões à época.

Assim, entregamos nossos setores estratégicos a empresas e investidores que possuem o compromisso só com seus acionistas, sob a justificativa de que o montante arrecadado pela venda da nossa Vale seria usado no abatimento da Dívida Pública externa, tal como estava na cartilha do FMI. Contudo, isto não se mostrou verdadeiro porque o total arrecado com o Programa Nacional de Desestatização no período FHC foi de US$ 50,9 bilhões, enquanto a Dívida Pública interna aumentou R$ 561,408 bilhões no mesmo período (a Dívida Pública externa no mesmo período passou de US$ 94.526 milhões para US$ 121.122 milhões).

Para além de ações de controle e regulação do Estado sobre a Vale do Rio Doce e demais empresas no setor de mineração, há uma patente necessidade de fortalecer instituições financeiras como BNDES como alternativa de financiamento, além de regular o próprio mercado de capitais que é, no limite, o agente controlador e tomador de decisões dentro de empresas como a Vale. Ademais, nós, enquanto Povo, temos o dever de retomar as razões da privatização da Vale e suas consequências após 22 anos, para não cairmos em fantasias de “faxina na máquina pública”, que na realidade são o mesmo plano econômico que levou à perda de nossos setores estratégicos.

Por Debora Cunha