Novo marco regulatório do saneamento: mitos e verdades

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Para quem não é da área e não conseguiu acompanhar o tema do saneamento básico nos últimos 13 anos, segue uma tentativa de, mais do que opinar sobre a situação, elucidar as principais polêmicas.

O Saneamento no Brasil “começa” no período militar no inicio da década de 1970. Até então não havia uma politica centralizada de saneamento e os municípios se organizavam isoladamente e sem diretrizes federais ou estaduais. As autarquias e departamentos próprios nas prefeituras eram responsáveis pela execução.

Em 1971 surge, então, o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA). Sendo breve, foi responsável por criar as companhias estaduais de saneamento (SABESP, CEDAE, CASAN, CORSAN, COPASA, EMBASA etc.). E foi a primeira vez que se falou em “universalizar o acesso” a água potável e esgoto tratado.

O PLANASA foi bem sucedido até certa ponto. Criou as principais escolas de engenharia sanitária, que existem até hoje, e portanto criou a própria engenharia sanitária. Um engenheiro especialista em projetos, obras e operação de sistemas de saneamento.

Além disso, o PLANASA permitiu que a política estadual de saneamento pudesse ser implementada com o auxílio do “subsídio cruzado”. Basicamente, isso significa que uma grande empresa consegue absorver os prejuízos de sistemas deficitários (municípios com pouca viabilidade econômica) com o lucro dos sistemas superavitários.

Para se ter um parâmetro, imagine que o saneamento é mais viável quanto maior for a concentração de pessoas. Grosseiramente falando, o custo de passar o tubo na rua é um só, logo quanto mais pessoas usufruírem desta infraestrutura, mais “em conta” o custo.

Em 2007 foi sancionada a Lei 11.445/2007, que instituiu a Política Nacional de Saneamento Básico. É o atual Marco Regulatório do Saneamento. Foi histórico por vários motivos:

– Definiu que Saneamento Básico são 4 serviços: abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, manejo de águas pluviais (drenagem urbana) e coleta, tratamento de resíduos sólidos urbanos e serviços de limpeza urbana no geral. (Pouca gente sabe que saneamento é tudo isso!)

– Estabeleceu alguns instrumentos importantes: o conselho de saneamento, a regulação dos serviços, os planos (municipal, estadual e nacional de saneamento), a regulação dos serviços e uma série de coisas “básicas”.

– E o que talvez seja o mais importante, definiu que a titularidade dos serviços é do município. Ou seja, o município decide – pode delegá-lo a uma empresa publica, privada ou prestar ele mesmo o serviço. Nesta situação o município poderia firmar contrato de programa com a empresa estadual sem licitação. Porém também poderia conceder os serviços para uma empresa privada via licitação.

Esse conjunto de coisas mexeu com o setor. O Plano Nacional de Saneamento fixou prazo para a universalização de cada serviço, com meta especifica por região. Muitos recursos para o setor foram disponibilizados, porém a execução dos mesmos ficou aquém da expectativa, principalmente pelo apagão de projetos de engenharia entre 1990 a 2007. Ou seja, tinha dinheiro mas não tinha projeto para fazer as obras.

O marco atual não é ruim. É relativamente recente e a maioria dos seus instrumentos não foram totalmente efetivados.

Portanto, quando você ouve falar que 100 milhões de pessoas não têm esgoto e 35 milhões ainda não têm água, porque o Estado falhou, eu tenho que dizer que isso é falacioso. Mas explicarei melhor depois.

Passados pouco mais de 10 anos da criação do Plano Nacional de Saneamento Básico, já no governo Temer, surgiu a Medida Provisória (MP) que tinha o intuito de abrir o setor à iniciativa privada. A exposição de motivos da MP era explícita em seus termos e a principal mudança era a obrigatoriedade de licitar os serviços de saneamento e não mais permitir o contrato de programa com empresas públicas sem licitação. Essa situação colocou em alerta a maioria das empresas estatais. Surgiu o risco de real de perderem os contratos, pois as empresas privadas poderiam entrar isoladamente em certos sistemas, sem ter que assumir os municípios não rentáveis. O que se chamou de “ficar com o filé e deixar o osso para o Estado”.

A MP caducou por vários motivos. O principal foi o fato de que mudança de lei via MP não se justificava, devendo portanto o governo lançar projeto de lei próprio para modificar o marco do saneamento, e assim aconteceu.

O Senador Tasso Jereissati então preparou Projeto de Lei (PL) para rever o marco mantendo basicamente todo o texto da MP e tentando mitigar os principais pontos polêmicos. Mandou o projeto pra Câmara dos Deputados e a casa evoluiu para um projeto mais consensual. A versão que está no Senado hoje, está tentando juntar as principais demandas.

As companhias estaduais poderão prorrogar sem licitação seus contratos, desde que comprovem sustentabilidade financeira e as condições para a universalização dos serviços até 2033. A questão dos municípios rentáveis e não rentáveis, supostamente foi resolvida com a instituição da prestação regionalizada. Algo que é muito lógico do ponto de vista ambiental e de engenharia, pois emprega o compartilhamento de recursos naturais e financeiros para servir às populações dos municípios. Porém, difícil de gerir na prática.

Outras questões:

– O novo marco não privatiza a água. A água é recurso natural com valor econômico (previsto na política de recursos hídricos), porém é raro os estados efetuarem a “cobrança” pela água outorgada (que é pagar pelo direito de retirar a água), e ainda assim, mesmo nestes casos a água “não tem dono”. No Brasil, a água é de domínio do Estado e todo uso é uma “outorga” do direito de uso. Pra mudar isso, seria necessário alterar a lei 9.433 / 1997.

O que está gerando polêmica é que municípios serão obrigados fazer concorrência para conceder os serviços de saneamento. Porém as companhias estaduais que “estão funcionando” terão a oportunidade de manter os seus contratos (via prorrogação) ou até mesmo disputar com outras empresas a licitação.

É retórica falar em privatização da água. O que pode vir a acontecer é a maior participação da iniciativa privada no setor. Porém, são concessões, quem é “dono” do serviço é o município e como todo serviço público, tem as suas instâncias de controle social e pressão popular.

A Lei das Água (9433/2007) é bem clara sobre a prioridade do uso dos recursos hídricos por humanos e para dessedentação animal. Portanto nenhuma empresa poderá “controlar” a água.

Ainda há muito debate sobre a questão das tarifas (a ANA agora centralizará a diretriz de regulação, que antes era municipal/estadual). Mas, é remota qualquer chance de “privatização” nos termos que a internet está dizendo.

Dito tudo isto, um resumo do meu ponto de vista:

– Não estamos em níveis “medievais” de saneamento porque o atual Marco Regulatório é ruim. Os valores investidos em infraestrutura nos últimos 50 anos escancaram o fato de que o saneamento não é prioridade de gastos.

– Há excelentes empresas de saneamento no Brasil, públicas e privadas. Não há um dado objetivo que estabeleça que as empresas públicas são ruins e que as privadas são boas. Alguns municípios com prestação privada têm índices de perdas de água igual ou maior do que sistemas públicos. Portanto, é falacioso dizer que a iniciativa privada poderia representar uma salvação. Ainda será preciso muito planejamento e investimento estatal para resolver a questão do saneamento e as modificações legislativas não mudam drasticamente isso.

Portanto, não acho que seria necessário mudar o marco regulatório, mas tampouco acho que a mudança piora o que estava aí. Considerando que neste momento o “projeto dominante” é de inclinação privatista, o movimento soa natural. E considerando todos os ajustes, me parece bem preservado o essencial da lei do saneamento. O tempo dirá se valeu a pena!

Por Vinicius Ragghianti

Engenheiro Sanitarista e Ambiental
Presidente da ACESA – Associação catarinense de Engenheiros Sanitaristas e Ambientais

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  1. Parabéns pelo texto. Contudo, caso o município não queira prorrogar o contrato e partir para a municipalização do serviço, isso será possível com o novo marco?

  2. O município terá de concorrer com multinacionais para fazer um serviço , ofertar água, o que ele já faz , e isso é bom ? A tarifa será decidida na instância federal ? Que absurdo . na minha cidade a agua é gerida por uma autarquia Municipal . e como um preço nacional vai contemplar as diferenças de renda regionais? Ridículo

  3. Interessante a ressalva final sobre o projeto dominante privatista. É exatamente isso que me faz desconfiar dos motivos pelos quais esse projeto foi desengavetado depois das negociações com o centrão. 🧐

  4. Sérgio, o municipio poderá fazer a prestação do serviço via departamento/autarquia. Terá que apresentar viabilidade financeira para a meta de universalizar em 2033 (uma meta ousada que até os privados terão dificuldades)

    Vasni, os municipios que já tem contrato de programa com alguam empresa estatal poderão prorrogar seus contratos por 30 anos. E as tarifas continuam sendo regionais, oq vai haver agora é um orgão central que apoia a regulação (Algo que não existia e que deixava muitas regiões do brasil sem “norte” e sujeita a varios abusos)

  5. Sempre com um posicionamento claro, o Eng Vinicius nos traz a realidade e um questionamento plausível. Sempre é bom escutar um Técnico da área que domina o assunto. Parabéns pelo artigo e pela clareza dos fatos relatados.

  6. ”É retórica falar em privatização da água. O que pode vir a acontecer é a maior participação da iniciativa privada no setor.” Mais isso é exatamente privatizar o abastecimento de água!!!

  7. O texto é bastante informativo mas peca muito na conclusão. Pelas próprias informações que o autor traz é visível que o PL abre um grande precedente para a privatização do serviço de saneamento. O setor privado em um sistema capitalismo tem poder suficiente para corromper licitações ao seu favor. É transformar a água no serviço de transporte da maioria das cidades: licitações que sempre são vencidas pelas mesmas empresas capitalistas de forma pouco transparente. A solução é derrotar qualquer tentativa de mercantilização da água e todos os serviços relacionado a ela e lutar pelos recursos públicos necessários. Sabemos que esse é o jeito mais difícil e longo, mas não existe atalho possíveis. Não existe “caminho natural” na política, apenas disputa.

  8. Eu gostei muito do texto. Parabenizo o autor pelo caráter informativo e também por suas conclusões não-ideológicas e equilibradas. Que se propaguem esses impulsos racionais pautados na cidadania, democracia e valores humanos.

  9. Eu gostaria de saber se, na prática, o subsídio cruzado é uma medida que realmente traz resultados significativos. E se já houve exemplos onde isso ocorreu.

  10. Interessante isso: quem é “dono” do serviço é o município e como todo serviço público, tem as suas instâncias de controle social e pressão popular.””
    No meu municipio em MG, a pressao popular funciona assim: Ö que vou ganhar pra apoiar o prefeito (padrinho de meus filhos), os vereadores (padrinho de casamento de meu irmao), e como vou lidar com as pressoes dos fazendeiros que me empregam 3 meses do ano na epoca da “panha”de cafe?
    Isso de pressao popular e uma balela.
    O meu intestino me pergunta:”Quanto esse engenheiro ganhou pra escrever isso?”
    No Brasil ninguem sai defendendo nada sem ganhar alguma coisa.

  11. “O tempo dirá se valeu a pena” esse é o problema, se depois for constatado que nao vale a pena não poderemos voltar atrás e quem vai sofrer com isso são justamente as pessoas que ja estao sofrendo agora.

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