Periferias Extremas: a relevância atual da teoria da dependência

Um aspecto importante da teoria da dependência é que ela rejeita a ideia de que a globalização é inevitável e amplamente benéfica. Seja definido em termos sociais, culturais, econômicos, financeiros ou espaciais,
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Ingrid Kvangraven, Farwa Sial e Carolina Alves exploram a relevância da teoria da dependência atualmente.

Por que alguns países são ricos e outros pobres? Por que é difícil – aparentemente impossível – que os países pobres alcancem os ricos? O que é específico para os países em desenvolvimento e sua posição no sistema global que dificulta o desenvolvimento econômico? Essas questões estão no núcleo de uma abordagem do desenvolvimento que passou a ser conhecida como teoria da dependência.

A teoria da dependência é uma família de teorias que tentam explicar o desenvolvimento desigual ao redor do mundo. Há muita discordância na tradição da teoria da dependência em relação a por que a desigualdade entre países parece estar aumentando, abrangendo desde a maneira como o capitalismo se espalhou para a periferia, até a dependência tecnológica e financeira.

Embora a teoria da dependência já tenha sido considerada um campo acadêmico sério, a análise dentro da tradição diminuiu no final da década de 1970 e tem estado inativa desde então, pelo menos no Ocidente.

Ceticismo acadêmico
A crítica da teoria da dependência pode ser resumida em três pontos:

  • propriedade da produção;
  • a visão centro-periferia; e
  • desenvolvimento nos países em desenvolvimento.

Propriedade da produção

O foco da teoria da dependência na extração de riqueza e recursos pelos países desenvolvidos (o centro) nos países em desenvolvimento (periferia) tem sido criticado por deixar escapar o contexto mais amplo de como o trabalho é uma fonte de exploração globalmente, e como e onde os lucros são reinvestidos. O argumento é contra o foco na extração feita por corporações multinacionais – que fazem parte do centro.

Os críticos afirmam que a ênfase da análise deveria estar em como os países em desenvolvimento falham em se beneficiar: da relação entre aqueles que possuem os meios de produção e aqueles que não possuem; e de variações nos incentivos fornecidos por diferentes ambientes econômicos[1].

A visão centro-periferia

O ambicioso objetivo da teoria da dependência de descrever o capitalismo mundial em termos binários de centro e periferia tem sido criticado por estar desatualizado. Por exemplo, o que dizer dos padrões de vida do Reino Unido caindo para níveis sem precedentes?

Desenvolvimento nos países em desenvolvimento

A teoria da dependência inicialmente não explorou as razões pelas quais alguns países em desenvolvimento conseguiram se desenvolver. Amsden[2] argumenta, com base nos desenvolvimentistas bem-sucedidos, como Coréia do Sul e Taiwan, que um aumento nas capacidades industriais dos países em desenvolvimento pode levar a um forte crescimento econômico, mesmo que não estejam nos níveis dos países desenvolvidos.

Contra-crítica e relevância

Relações de produção. A análise das formações de classe e das relações de produção varia entre as diferentes teorias da dependência. Dentro da tradição, existem embates a respeito de se examinar primeiro as relações de produção em localidades específicas antes de passar para uma análise baseada no comércio internacional. O foco no comércio levantou muitas questões, incluindo:

  • como a extração do excedente ocorre por meio de relações comerciais e de investimento entre países ricos e pobres;
  • como as empresas multinacionais tomam decisões de investir em países em desenvolvimento ou de repatriar lucros; e
  •  a mão-de-obra barata nos países pobres é a fonte da troca desigual?

Embora as respostas a essas perguntas variem internamente na tradição da teoria da dependência, a análise da interação entre uma organização específica da produção econômica e as relações de produção está no núcleo da maioria das teorias da dependência.

O sistema centro-periferia binário está obsoleto? O fato de haver uma crescente pobreza em países centrais, como o Reino Unido, não abala o chamado sistema binário de centro e periferia. Os teóricos da dependência não dividiram o mundo por resultados como a pobreza, mas pelas causas do subdesenvolvimento, como baixa produtividade, ambientes econômicos extrativos, estruturas coloniais e dependência tecnológica. As restrições financeiras, tecnológicas e econômicas que o Reino Unido enfrenta são muito menos severas do que as do Malawi ou Peru ou de outros países periféricos, apesar do fato de a pobreza no Reino Unido estar aumentando. Ver o mundo através da lente centro-periferia destaca a persistência de assimetrias geográficas que outras perspectivas podem ignorar.

E os desenvolvimentistas de sucesso? Vamos tomar a Coréia do Sul como exemplo. O governo coreano administrou o comércio da economia em grande parte seguindo as prescrições de políticas dos teóricos da dependência. Isso incluiu a instalação de barreiras comerciais para proteger a indústria local e a promoção de exportações. A Coréia também teve apoio único dos EUA durante a Guerra Fria, o que ajudou a aliviar as restrições financeiras que muitas economias periféricas enfrentam.

Mas para entender totalmente o desenvolvimento da economia coreana, a tradição da dependência nos leva de volta ao desenvolvimento histórico das estruturas de produção capitalistas, que lançaram as bases para a indústria que mais tarde emergiu como parte do estado desenvolvimentista. Sob a colonização japonesa, os empresários coreanos “não estavam tão subordinados à estrutura política quanto incorporados a ela”[3]. Isso está em completa contradição com a forma como o capitalismo se desenvolveu em outras economias periféricas – moldando a indústria local de  maneira muito mais extrativa.

Muitos teóricos da dependência certamente viram muito potencial na indústria devido ao maior escopo para aumentos de produtividade e desenvolvimento tecnológico. Mas eles também reconheceram que seria improvável que a fabricação de baixo valor agregado conduzisse ao desenvolvimento econômico. O que estamos vendo agora com a extensão das cadeias globais de valor para as economias em desenvolvimento, por exemplo, permitindo que os países em desenvolvimento produzam para grandes marcas de roupas, pode, portanto, não ser suficiente para lançar essas economias ao centro, como o desenvolvimento da indústria nos países do leste asiático o fez.

Análises atuais

Os países latino-americanos representam um exemplo explícito de posições dependentes nos mercados financeiros globais, com perdas visíveis em termos de competitividade, desindustrialização e dependência crescente de capital externo para evitar desastres cambiais.

A economia global contemporânea é marcada por um aumento substancial nos fluxos de capital transfronteiriços, que são altamente voláteis. Por isso, autores como Vernengo[4] argumentam que “a ‘nova’ dependência parece ser de natureza financeira”, embora a questão de um processo autônomo e dinâmico de inovação tecnológica ainda seja relevante.

Após o colapso em 1971 do sistema de relações monetárias baseado no ouro de Bretton Woods, Tavares[5] foi uma das poucas analistas da teoria da dependência a dar evidência para o “dinheiro internacional” e a “hegemonia do dólar”. Ou seja, ela destacou o fato de que os países em desenvolvimento no mundo todo estão sujeitos à dominação de uma única moeda. Com a liberalização do comércio e das finanças, a discussão sobre dependência financeira e os riscos da globalização financeira tornaram-se mais centrais.

No Brasil, por exemplo, as reformas de liberalização da década de 90, que acompanharam as mudanças na ordem monetária internacional pós-Bretton Woods, deram surgimento a um arranjo macroeconômico que se baseava na administração de taxas de câmbio, controle da inflação e um forte mercado de títulos do governo para garantir a estabilidade financeira. Para os teóricos da dependência, esse arranjo exigiu políticas econômicas do governo brasileiro que levaram não apenas a altas taxas de juros, mas também a influxos de capital voláteis e de curto prazo. A fraca posição do real no ranking mundial de moedas e a necessidade de manter a taxa de câmbio estável levaram a ataques especulativos de investidores estrangeiros que, por sua vez, ampliaram a vulnerabilidade e a volatilidade da economia.

Outros ainda apontam para os efeitos nocivos que o quantitative easing (QE) – a compra pelo Banco Central de títulos do governo ou outros ativos financeiros para injetar dinheiro na economia – teve em muitos países em desenvolvimento. Essencialmente, o QE incentiva fluxos financeiros para essas economias, enquanto elas são incentivadas a tomar empréstimos em moeda estrangeira. Embora isso signifique crédito abundante durante o surto, esses fluxos de capital tendem a deixar a dívida impagável quando os fluxos se revertem, pois essas economias possuem mercados financeiros limitados e subdesenvolvidos, e moedas fracas que não podem ser usadas como meio de pagamento ou de garantia.

Além da América Latina, Shie & Meer[6] analisam dois casos bem-sucedidos de industrialização de alta tecnologia no chamado Terceiro Mundo: Índia e Taiwan. Em seu trabalho, dados mostrando uma crescente lacuna de conhecimento entre esses dois países asiáticos em desenvolvimento e as economias ocidentais avançadas expõem como Taiwan e Índia dependem muito das transferências tecnológicas de países desenvolvidos. Eles concluem: “Nem mesmo Taiwan, e muito menos a Índia, conseguem acompanhar tecnologicamente as economias avançadas. Duvidamos que outros países em desenvolvimento possam escapar do destino cruel a que parecem condenados ”.

A dependência persiste

Um aspecto importante da teoria da dependência é que ela rejeita a ideia de que a globalização é inevitável e amplamente benéfica. Seja definido em termos sociais, culturais, econômicos, financeiros ou espaciais, ela oferece uma estrutura crítica para analisar os impactos da globalização. Ou seja, permite um engajamento estrutural com a desigualdade em nível global, enfatizando como os vínculos que são celebrados como fontes de riqueza nas narrativas mainstream da globalização são de natureza desigual. Igualmente importante, aborda explicitamente a subordinação, a recolonização e a necessidade de resistência e transformação.

Por Ingrid Kvangraven, Professora de Desenvolvimento Internacional na Universidade de York; Farwa Sial, Pesquisadora Visitante na Universidade de Manchester; e Carolina Alves, Pesquisadora (Joan Robinson Research Fellow) em Economia Heterodoxa na Universidade de Cambridge, Girton College.

Publicado originalmente em The Mint Magazine: https://www.themintmagazine.com/hardcore-peripheries.

Traduzido por Ricardo Begosso.

Referências

Referências
1 Brewer, Anthony. 1990. Marxist Theories of Imperialism – A Critical Survey. London & New York: Routledge
2 Amsden, Alice. 2001. The Rise of the Rest: Challenges to the West from Late-Industrializing Economies.  New York: Oxford University Press.
3 Eckert, Carter. 2014. Offspring of Empire: The Koch’ang Kims and the Colonial Origins of Korean Capitalism, 1876-1945. Seattle: University of Washington Press
4 Matias Vernengo. 2006. “Technology, Finance, and Dependency: Latin American Radical Political Economy in Retrospect,” Review of Radical Political Economics 38(4):551-568.
5 Tavares, Maria da Conceicao. 1985. “A retomada de hegemonia norte-americana,” Revista de Economia Politica 5(2): 5-15
6 Shie, Vincent H. an Craig D. Meer. 2010. “The Rise of Knowledge in Dependency Theory: The Experience of India and Taiwan,” Review of Radical Political Economics 42(1):81-89.