Ainda podemos salvar a Embraer

Ainda podemos salvar a Embraer
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No clássico “Viva o povo brasileiro” João Ubaldo Ribeiro mostra o deslumbramento histórico e mutante da elite brasileira, que vai passando da admiração embasbacada com as coisas e costumes de Lisboa, Londres, Paris, EUA, Japão. Hoje já vemos muito disso em relação a China.

Nos anos sessenta João Saldanha escrevia sobre a idéia de trazer árbitros de futebol ingleses para apitar jogos aqui indagando que “se todos os ingleses são tão honestos como a Scotland Yard ficou tão famosa?”. Era uma provocação irônica em cima do complexo de vira-latas.

Desde sempre o Brasil luta para superar esse sentimento de inferioridade em relação aos países ricos que campeia entre nossa elite (Darcy Ribeiro falava que no Brasil não temos elite na acepção do termo, mas apenas pessoas muito ricas).

Poucos exemplos na nossa história são tão contundentes em afirmar a capacidade e o talento dos brasileiros quanto a Embraer.

Desde sua fundação, no final dos anos 60, todos os produtos desenvolvidos pela Embraer são de excelência.

Do Bandeirante aos pressurizados turboélices Brasília, passando pelos jatos regionais ERJ até chegar nos E-Jets e E-Jets E2, os produtos de aviação comercial da Embraer foram ou são os melhores e mais avançados do mundo em suas categorias.

Poderíamos falar do avião agrícola Ipanema, do turboélice Xingu, do AMX (desenvolvido em pareceria com as italianas Alenia e Aermacchi), do treinador T-27 Tucano, do avião de ataque leve Super Tucano, de toda gama de jatos executivos Phenom, Legacy, Lineage e os novos Praetor ou do super cargueiro KC-390, mas o foco aqui é aviação comercial.

A Embraer é a grande empresa brasileira com a maior proporção de engenheiros em seu quadro de funcionários. Alcançou um padrão de excelência reconhecida mundialmente. Apesar disso esteve prestes a ver sua principal divisão, a de aviação comercial, ser entregue para a Boeing, que mesmo antes da pandemia atravessava a pior crise da indústria aeronáutica moderna.

Mesmo essa situação calamitosa da Boeing não foi suficiente para que o governo brasileiro, tão cheio de militares ocupando cargos de primeiro escalão, que imaginávamos possuir ao menos algum resquício de patriotismo autêntico (não confundir com patriotadas), impedisse essa entrega tão lesiva a qualquer projeto de país que busque fazer do Brasil algo mais do que uma grande fazenda e uma mina de extração de minérios para serem exportados brutos.

Seria o fim dos aviões comerciais da Embraer. A nova empresa já estava com o nome de Boeing Brasil.

O coronavirus agudizou a crise da Boeing, que se viu obrigada a desistir de comprar a divisão de aviação comercial da Embraer.

A aviação vive a maior crise da história. São dezenas de milhares de aviões no chão por conta da pandemia. Não sabemos quais companhias aéreas vão sobreviver quando o surto do novo coronavirus passar.

Levará, certamente, algum tempo até que a demanda pós-pandemia ocupe todas as aeronaves que estavam em operação antes da paralisação forçada. Por conta da disseminação desigual do vírus pelo mundo nem todos os países – ou mesmo regiões – vão retomar a normalidade simultaneamente. Isso impactará diretamente na aviação comercial.

Podemos inferir que a tendência é que a demanda por aviões menores, como os da Embraer, volte a normalidade antes dos aviões com grande capacidade de passageiros, pelo perfil das rotas em que podem ser empregados.

Isso coloca a Embraer numa posição “menos pior” do que suas concorrentes.

É hora do governo brasileiro não apenas injetar recursos na Embraer (além dos já anunciados U$ 1 bilhão pelo BNDES) como, também, ampliar suas encomendas de KC-390 e incentivar que companhias aéreas que vão receber ajuda financeira priorizem a compra de aviões da Embraer.

Todas as concorrentes da Embraer (principalmente Boeing e Airbus) estão recebendo socorros bilionários de seus governos

Agora já se comenta que os chineses da COMAC (estatal chinesa) assumiriam o negócio da divisão de aviação comercial da Embraer no lugar da Boeing. O vice-presidente Mourão falou disso no mesmo dia que a Boeing anunciou sua desistência!

Para os chineses seria o melhor negócio do mundo.

Ainda podemos salvar a Embraer

Diferente da centenária Boeing a COMAC é uma empresa nova, que tá tentando aprender a fabricar aviões comerciais confiáveis rapidamente. Desenvolveu um jato regional, o ARJ-21 para 70/105 passageiros, muito inferior aos E-Jets da Embraer, embora projetado depois desses.

Na verdade o ARJ-21 serviu (e ainda está servindo) mais como aprendizado para que a COMAC acumulasse alguma experiência no projeto e fabricação de jatos comerciais para que pudesse partir para seu grande objetivo: desenvolver e fabricar o C-919, concorrente direto dos Airbus A-320 e Boeing 737Max, maior nicho do mercado mundial.

A Embraer tem, portanto, muito mais expertise e tradição em projetar e fabricar aviões comerciais bem sucedidos do que a COMAC. Não tem nem como comparar.

A oportunidade agora seria de fazer uma parceria com a COMAC – nunca a simples venda da divisão de aviação comercial da Embraer – visando promover vendas casadas, transferir tecnologia da Embraer para os chineses, passar para eles a expertise de pós-venda global da Embraer (fundamental no mercado aeronáutico) e abrir a possibilidade dos E-Jets E2 abastecerem o mercado interno chinês nos seus nichos.

A Embraer já teve uma linha de montagem dos ERJ na China. Não é o caso agora. O governo brasileiro deve agir para manter as linhas de produção da aviação comercial em São José dos Campos. E fazer com que a Embraer continue sendo uma empresa brasileira.

No novo arranjo mundial que vai resultar de um mundo pós-pandemia a manutenção de uma empresa detentora de tecnologia de ponta como a Embraer vai ser ainda mais importante do que já era para o Brasil de antes da pandemia.

E nunca é demais lembrar que a Embraer foi fundada e desenvolvida graças a iniciativas e investimentos do governo e da Força Aérea Brasileira, além, é claro, do talento de seus funcionários.

Não pode ter seu destino traçado levando em conta apenas o interesse financeiro imediato de seus controladores de momento.