A Economia Política do Coronavírus

O que está acontecendo com a economia mundial?

À parte a tragédia italiana, quanto mais o coronavírus alcança e se espalha em outros países, mais tomamos conhecimento de sua baixa taxa de fatalidade. Mesmo que não haja consenso estabelecido em torno de um índice, e sabendo que provavelmente os números das gripes mais comuns serão superados, tudo indica que não estamos diante de nenhuma média assustadora.

Ou, no mínimo, diante de nenhuma média que por si só seria capaz de derrubar a economia internacional.

Antes da pandemia

A crise financeira de 2008, que resultou na Grande Recessão, foi fruto de uma bolha especulativa sem precedentes nas últimas décadas. Seu ponto de partida foram os empréstimos subprime nos Estados Unidos. Quando uma conjunção de fatores lançou ao espaço sideral as inadimplências no setor imobiliário, paralisando subitamente o frenesi da construção civil, as bolsas de valores desabaram no planeta inteiro.

De repente, a torneira do crédito cessou. A oferta foi inviabilizada. Empresas demitiram em massa. O consumo parou. O comércio internacional entrou em queda livre.

Para salvar a economia de uma queda do produto da ordem de 4,5%, os bancos centrais injetaram liquidez nos mercados. Em todos os países desenvolvidos, o Estado foi ao socorro dos negócios too big to fail (grandes demais para quebrar), aqueles cujo fechamento de portas mais repercutiriam sobre outras empresas e empregos.

A década de 2010 foi a década do quantitative easing. Nada mais do que bancos centrais emitindo moeda e comprando títulos no mercado financeiro e de capitais, em especial títulos da dívida pública dos governos, para estimular a retomada do consumo através de novos e repetitivos empréstimos.

Tamanha foi o efeito da queda de 4,5% que novas injeções de liquidez se realizaram nos EUA, na China e na Europa e no Japão. Através da política monetária, os bancos centrais jogaram os juros para baixo, visando sustentar a produção.

Ao contrário do que diziam os manuais de economia, não houve inflação. Foi uma década de deflação. Mesmo no Brasil nós recentemente assistimos a queda dos juros e da taxa de inflação simultaneamente.

Por que houve deflação, mesmo com as enormes injeções de liquidez e taxas de juros próximas de zero (em alguns casos, mesmo negativas)? Segundo os teóricos quantitativos da moeda, a insistente emissão monetária não levaria os índices inflacionários às alturas?

Ocorre que não houve consumo proporcional à oferta. Antes de 2008, a economia mundial já caminhava para um cenário de superprodução, como ocorre ciclicamente. A década entre 2001 e 2010 foi uma década de crescentes gastos bélicos para a utilização na fracassada guerra às drogas e no combate ao terrorismo. Iraque e Afeganistão foram invadidos pelos Estados Unidos. Seus aliados europeus participaram dos esforços.

A livre jogatina nos mercados financeiros antes do crash funcionou paralelamente como uma torneira de crédito para as atividades produtivas. Depois da quebra, o auxílio dos bancos centrais ao grande capital e os abomináveis programas de austeridade fiscal (majoritariamente sobre as camadas sociais mais necessitadas) resultaram num capitalismo de crescente desigualdade.

Não havia espaço para o crescimento do consumo acompanhar o crescimento da produção. Em nível nacional é verdade que o consumo de alta renda, quando há suficiente estratificação social, pode evitar uma armadilha de subconsumo. Em nível regional ou global, no entanto, é absolutamente inviável esperar que a economia mundial continue crescendo quando a grande maioria da população é incapaz de manter um padrão de consumo sustentável.

Essa nova arrancada do capitalismo global, iniciada em 2009, e baseada em crédito fácil, juros baixos, mão-de-obra precarizada e baixa regulamentação financeira (mais rígida que antes de 2008, mas muito longe de ser restritiva aos movimentos de capitais), apresentou sinais de esgotamento no final da década.

A China, que em 2010 cresceu mais de 10% do PIB, em 2019 cresceu cerca de 6%. A Alemanha, economia mais importante da Europa, viu seu crescimento desacelerar da casa dos 2% para a casa dos 0% ao longo da década. Após uma fraca década, o Japão viu o PIB do último trimestre de 2019 recuar 6,3%. A maior economia da América Latina e uma das mais relevantes economias “emergentes”, a do Brasil, dispensa comentários.

A economia dos EUA vinha em boa trajetória e era o último reduto de otimismo dos mercados para que prosseguisse a normalidade, juntamente com a China. O sonho de qualquer investidor era ver um acordo comercial entre os dois países, neutralizando a guerra comercial iniciada desde a chegada de Donald Trump à Casa Branca.

Ocorre que a produção industrial americana foi próxima de zero em 2019, inclusive registrando uma queda sobre os índices anteriores. A produção industrial alemã, por sua vez, foi negativa.

O índice de endividamento das empresas nos EUA é muito alto e, apesar dos empregos precários, a política econômica de Donald Trump perseguiu a manutenção do pleno emprego nos últimos três anos.

A taxa de lucro nos EUA, na Europa e em vários lugares do mundo chegou ao fim da década esperneando para sobreviver. Os mercados sufocavam cada vez mais os governos para cortarem em programas sociais, privatizarem seus ativos mais lucrativos e concederem vantagens e mais vantagens fiscais e regulatórias para os investidores. A margem de manobra do capitalismo se estreitou radicalmente nos últimos anos.

A queda dos preços do petróleo não passou de um sinal, expressado através de um desacordo produtivo entre Rússia e Arábia Saudita (dois dos maiores produtores do mundo), da queda da lucratividade do capital. A manutenção dos preços do setor energético, ou sua escalada, seriam impensáveis no contexto atual.

Os ativos financeiros precisavam urgentemente de uma correção. Nesse quadro geral de esgotamento de um ciclo de crescimento capitalista, sobrepôs-se o impacto do coronavírus.

A economia do coronavírus

A crise do coronavírus é, em primeiro lugar, uma crise de oferta e não de demanda. O choque de oferta é, possivelmente, sem precedentes no capitalismo contemporâneo, com a exceção da Grande Depressão de 1929.

O estudo de Gourinchas (2020) que já circula e fundamenta uma série de análises sobre os impactos econômicos do coronavírus aponta as seguintes tendências: o resultado das medidas de distanciamento social, quarentena etc., durante um mês, deve diminuir em 50% o nível de atividade econômica e mais 25% caso se estenda por mais dois meses.

A partir da interrupção inicial das atividades, desencadeia-se uma espiral de queda da demanda e da oferta simultaneamente. Inicialmente um choque da oferta, o problema se torna um choque de demanda, visto que a maioria dos negócios depende de liquidez: pequenas e médias empresas necessitam de dinheiro em caixa para sobreviver, enquanto famílias precisam de dinheiro no bolso para gastar.

Estima-se que a queda do produto, em função desse conjunto de fatores, deve ser cerca de 10% no ano de 2020.

Isso é mais que o dobro da queda proporcionada pela crise financeira em 2008/2009. Algumas análises apontam a plausibilidade de uma eventual queda anual no volume de 15%.

A enorme retração da produção industrial chinesa, que despencou 13,5% nos dois primeiros meses deste ano, alimenta as projeções mais pessimistas. Por outro lado, o rápido êxito da China em conter o coronavírus acena para o lado dos mais otimistas.

Poucos países no mundo, atualmente, possuem espaço para dobrar a aposta na política monetária. Pressionar para baixo as taxas de juros é uma alternativa para os países cujas taxas são historicamente altas, mas para os países desenvolvidos, dos quais as exportações dos países mais pobres dependem, operam com taxas baixas há mais de dez anos.

Chegou o tempo da política fiscal. A sobrevivência das empresas não depende de problemas típicos de financiamento, mas da disponibilidade de caixa. A injeção de liquidez será importante nos países que ainda possuem margem de manobra para este tipo de política, mas é a transferência fiscal que parece surgir no centro das soluções da crise do coronavírus.

Famílias inteiras simplesmente foram impossibilitadas de ir até seus locais de trabalho e se locomover até seus costumeiros estabelecimentos de consumo, leia-se: ganhar e gastar suas rendas.

A economia capitalista encontra-se em vias de desmobilização. É o exato oposto de uma guerra, como já adiantou o historiador econômico Adam Tooze. Numa guerra, é imperativo mobilizar recursos. A crise do coronavírus exige uma ampla e quase indiscriminada desmobilização, restando de pé apenas os serviços mais essenciais.

É verdade que isso joga luz sobre um dos mitos da globalização: o consumismo não é essencial, e foi uma tragédia basear a felicidade humana na cultura do consumo. Uma série de traumas individuais e coletivos podem derivar desse choque.

No entanto, para evitar o colapso social, a transferência fiscal se faz urgente. Não apenas a vida imediata de indivíduos e famílias inteiras dependerá disso, mas também a sobrevida de suas atividades econômicas, que é importantíssima para uma futura retomada do progresso material.

É a ideia do Helicopter Money: dinheiro na conta das pessoas físicas e dinheiro na conta das pessoas jurídicas, diretamente depositado pelo governo, como forma de transferência fiscal.

Para isso, os Estados nacionais terão que se endividar. Alguns economistas dizem que há limites quantitativos para o endividamento, enquanto outros mostram que o limite para o endividamento é o próprio limite da soberania econômica. A primeira hipótese está cada vez menos em voga.

O ponto médio seria o caso do Brasil e da maioria dos países que emitem a própria moeda mas não emitem a moeda de reserva global (o dólar, aquela utilizada em praticamente todas as transações internacionais). Internamente, podemos nos endividar o quanto quisermos em moeda nacional e, nesse momento, é exatamente isso que precisamos (afinal, o governo não depositará dólares nas contas das pessoas). O limite se encontra justamente nas restrições externas, quando um descompasso de natureza cambial pode gerar desequilíbrios na economia nacional.

O Reino Unido já anunciou um pacote econômico de 15% do PIB. Arrisco dizer que, ao final da crise, será uma das economias mais bem reestruturadas. O governo arcará com 80% dos salários dos trabalhadores que ganham até £2.500.

No Brasil, as medidas anunciadas pela União até o momento são modestas. Alguns apontam que o pacote de recursos mobilizados pelo BNDES não ultrapassa 2,5% do PIB, um montante absolutamente insuficiente para o desafio vindouro.

Acredito que caberá ao Congresso Nacional assumir o protagonismo do programa econômico de crise. Estamos tratando de um evento que fez a OCDE cogitar a necessidade de um novo Plano Marshall, ou seja, não apenas um programa de recuperação, mas reconstrução da economia mundial.

Nesse momento, a soberania monetária é o item a fundamentar qualquer decisão. É verdade que há necessidade de coordenação global no enfrentamento da crise. Este seria o cenário mais benéfico.

No entanto, o colapso da economia mundial impõe uma realidade bem diferente. Países terão que formar consensos internamente, após uma década de divisão social e polarização político-ideológica decorrente da última grande crise.

Consensos internacionais dependem de uma correlação simplesmente inexistente na atualidade. Lá fora, o que vemos é a rivalidade geopolítica em ascensão, um mundo cada vez mais bipolar e disputado entre China e EUA.

Transpor tal rivalidade hegemônica para o âmbito interno não é pragmático. O Brasil precisa de acesso às linhas de swap do FED americano para não sofrer crises de liquidez e gastar as próprias reservas em dólar acumuladas em nosso Banco Central, mas precisa de acesso aos bens chineses, em especial aqueles empregáveis no setor hospitalar e de monitoramento territorial do vírus.

Devemos apostar na economia nacional, no mercado interno e na industrialização e na política fiscal. Mas precisamos de uma estratégia financeira externa sólida e o melhor que a tecnologia no estado da arte pode nos fornecer para atravessar esse grave período de crise sanitária.

Existe saída para a crise do coronavírus. Precisamos salvar vidas e reconstruir a economia brasileira, que há décadas sofre de políticas serviçais do capital estrangeiro e de uma elite especuladora e desinteressada em seu próprio povo. Superado o momento crítico da saúde que atinge os brasileiros e as brasileiras, deveremos aproveitar a desarticulação internacional da economia para dar ao país o status que ele merece de uma vez por todas.

Sair da versão mobile