Subdesenvolvimento, você voltou!

Subdesenvolvimento, você voltou
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Prezado subdesenvolvimento,

Até que enfim, você voltou!

Antes, na sua versão digestiva da estétyca da fome, você era um “emergente” ou “em desenvolvimento”.

Escondida sob as justaposições da cidadania e do consumo, aproveitando-se da retórica base versus  superestrutura, na qual a segunda prevaleceria sobre a primeira, você mostra que nos países vulneráveis à recolonização, tal fronteira é perfumaria.

Você se mostrou bem mais forte, apontando para o fato de que resolver o problema da fome, sem a organização da pólis, sem um debate mais aprofundado sobre planejamento e integração nacional, a assistência social é condicionada pelo crédito e as taxas de juros do sistema financeiro. Que os seus pais, oligarcas mazombes, de frente para Miami e de costas até mesmo para o agronegócio tupiniquim, questionam a própria medida de assistência social. Dizem que no Brasil existem “direitos demais e poucos deveres”.

O velho Getúlio, seu bom inimigo, viveu enquanto pôde. Mesmo assassinado, FHC queria colocar mais uns dois palmos de chão em seu algoz. Lula no início também o queria. Depois da experiência da prisão, passou a te entender melhor. O tiro de 1954 no peito que foi uma ação drástica e duradoura de proteção social não resistiu à Ponte para o Futuro, um retorno mais explícito da boa e velha estétyca da fome. De 2002 a 2016, tentamos te digerir aos poucos. Mal sabem eles que você não sai na urina e não há bexiga e fígado que te aguente! Você não é cachaça, você é a 51 vendida como coisa boa nos Estados Unidos como a salvação dos problemas.

Leonel Brizola saberia te ver. Saberia que você “vem de longe”. Você é um projeto, uma grande narrativa. Você é quem produz analfabetos, que questiona o custo de boas escolas públicas e projetos, como ousou fazer o seu “capitão” dos anos 90 ao questionar os CIEPs.

Você, prezado subdesenvolvimento, descoberto em 1950 pelos intelectuais da Comissão Política e Econômica da América Latina, é a face oculta da história do povo brasileiro, hoje confuso e abalado pelo golpe de 2016 e que deixou uma elite progressista ilustrada abismada com a sua capacidade em trair alianças e trazer os seus capitães de volta ao jogo da demarcação ultraliberal radical. Assim como a face de Janus, seu outro lado nada mais é que a recomposição colonialista. Antes Portugal, antes Inglaterra, hoje mais uma vez, você nos faz até mesmo nos curvar à Amérikka, depois de um tempo de relativa trégua e diplomacia contestatória.

Subdesenvolvimento, você voltou

Não se pode dizer, no entanto, que nós não te enfrentamos, na medida em que você ousou nos extinguir como Nação.  Nem mesmo a ditadura queria conviver com muitas mazelas suas e resolveu ao menos consolidar um parque robusto no Sudeste. No entanto, os generais pouco sairam do script da excepcionalidade industrial nas regiões mais ricas, provocando imensas ondas migratórias de nosso povo no sentido norte-sul, cujo objetivo maior seria escapar de sua principal arma:  a fome. Aliás, a própria ditadura em muito beneficiou destas contradições, criando uma polaridade interna que você amava. De um lado, teríamos os límpidos paulistas e suas complexas cadeias produtivas. Do outro lado, o atraso nordestino, sem cultura e que se curvaria por um prato de comida e baixos salários do outro lado do país. Os retirantes curvariam-se propriamente ao sonho de fazer parte desse bolsão de consumo de São Paulo. Seria esse o comportamento geral aceitável, como diria Gonzaguinha, “tudo vai bem, tudo legal”…

É deste bolsão que surge um primeiro presidente eleito após a ditadura disposto a combater sua arma favorita de forma um pouco mais sistemática. Aliás, ele é seu filho oriundo da onda migratória. Ele é a fome. Ao mesmo tempo, é a modernidade possível das massas fabris dos anos 1980. A eleição de Lula e os programas de luta contra a fome tinham você como inimigo principal. Você foi derrotado de forma acachapante, deixando até mesmo a elite brasileira envergonhada com tanto descaso. Afinal, com pouquíssimos recursos era possível combater você e sua mais horripilante face. Lula compõe o hall dos lídereres que minimamente te contestaram e ousaram criar uma outra modernidade nessa terra.

Da miséria passamos para uma discussão civilizatória sobre a pobreza e a desigualdade. Foi uma importante vitória. Aos que fazem tábula rasa e acham isso pouca coisa, ambos sabemos que o povo saiu mais forte, mais alimentado, pôde usufruir de bens que antes não faziam parte do seu cotidiano. Veja o que significou para a China, por exemplo, dar esse salto de qualidade e te expulsar de vez do país mais populoso da Ásia. O mundo todo mudou porque conseguimos vencer sua versão chinesa.

As famílias puderam ter bens que você, subdesenvolvimento, sempre lutou para que não as tivesse. Afora isso, nós também combatemos nesse período, sob a liderança de outro nordestino, uma fração da elite indignada com tamanho descaso com sua região, uma vez que foi combatida uma indústria que te retroalimentava:  a indústria da seca.

Foi por meio da Transposição do Rio São Francisco que capitais nordestinas não entraram em colapso hídrico. Foi com Ciro Gomes que muitos compatriotas nordestinos preferiam, mesmo com parcos recursos, tentar a vida em sua terrinha do que assumirem para si a aventura de viver como povo transplantado em São Paulo. Hoje, as duas principais lideranças que dedicaram suas vidas para combater você, cada um a sua maneira, estão num arranca rabo  entre si preocupante. No alto das suas propriedades de Higienópolis, do Belvedere e do Leblon, você morre de dar risada e se aproveita dessa divisão.

“Incluir o pobre no orçamento” como diria o ex-presidente Lula, foi uma “reforma espiritual inclusiva” importante.

Mas você é ardiloso como ninguém, malandrão como todo membro da elite espertalhona, anti-estatal por natureza. Sabe contornar a situação e provocar cizânias. Soube manter aqueles que queriam ver livres de você dentro de limites da “correlação de forças” para que você solicitasse asilo para seu principal patrocinador estrangeiro. Você durante todo esse tempo pautou uma transição “lenta, gradual e segura” para alimentar nossas esperanças nessa ordem. Só que você é parte fundamental de uma certa elite mais ligada à Beyoncé do que com Elis Regina.

Você disse que iria viajar para nunca mais voltar.

Pois bem, depois de longas férias você voltou!

E voltou com tudo, mostrando que nunca tinha desaparecido, mesmo tendo ficado tanto tempo sem ser citado nos livros de história, mesmo que o vocabulário político dominante tenha tentado criar maquiagens e eufemismos para te representar nas universidades. Você desviou o assunto, estabelecendo guerras culturais no seio do povo brasileiro. Estimulado pelo guru da Virginia, que mora a alguns quilômetros da Biblioteca da CIA, você incitou uma cruzada religiosa e de “luta pela representação” e a cultura. Nós que te combatíamos com afinco fomos amestrados a não misturar economia e cultura, a separar cidadania e consumo.

Deu no que deu.

Hoje, você produziu um genocídio tão igual quanto a Guerra do Paraguai, na qual compatriotas ex-escravos deram sua vida e sangue, lutaram por sua liberdade como indivíduos em defesa de um Brasil ainda em formação, escravocrata, escrotamente imperial. No entanto, desta vez seu estrago em um curto espaço de tempo já mostra que o coronavírus poderia ter sido uma pequena ferida contra nosso povo, caso tivéssemos um governo comprometido a te combater, caro subdesenvolvimento. O coronavirus tornou-se uma mácula que será lembrada como um dos piores momentos de nossa história. Ao invés de ter sido um momento que vigorasse o planejamento estatal, a direção política de alta qualidade e a consequente solidariedade advinda desta luta articulada, você, junto ao seu capitão de agora, doido com a destruição do Estado Nacional, quer fazer do Brasil uma quitanda à venda.

Afinal, entre a democratização da indústria e a possibilidade de fazer com que seus patrocinadores possam comprar seus enxovais de casamento na Flórida, não preciso nem dizer qual é a sua alternativa favorita. Sem sombra de dúvidas, o ano de 2020 é o pior dos últimos 30 anos.  É o período de maior ameaça à Carta Magna de 1988, ano em que também nasci.

Conseguimos desferir alguns golpes em alguns momentos específicos de nossa história contra você.Você nos deu breves tréguas quando resistimos e lutamos com amplitude. Porém, conseguimos avançar algumas trincheiras. Perdemos a luta dentro da lógica que você nos impôs. No entanto, você hoje tem uma desvantagem: o seu líder politico de ocasião. Apesar de fazer parte de toda a estrutura, você escolheu o pior dos piores para conduzir o seu retorno em definitivo. Cada dia que passa, mais as contradições se acirram, mais o povo vai percebendo nossa dependência, nossa incapacidade de produzir até mesmo máscaras contra o vírus maldito. Ao mesmo tempo, mais seu Presidente, o fiador do momento, vai se mostrando uma caricatura, um exímio incompetente e principal aliado. Você, ardiloso e malandro, conseguiu se esconder por trás da bandeira do Brasil e toda essa retórica desonrosa que vem promovendo com alguns de seus asseclas, formalmente comprometidos com o patriotismo que os americanos querem nos ensinar. O Brasil vai se tornar o primeiro caso onde um  governo imperial, cujo objetivo nada mais  é que a sua perpetuação,  ensina como defender nossa pátria.

Esperamos mais uma vez que os intelectuais brasileiros acordem para a realidade e vejam que sem modernidade é impossível te superar. Sem um complexo industrial de defesa e uma formação militar que esteja vinculada aos interesses cívicos, tampouco é possível sobreviver nesse mundo, onde os países centrais defendem seus interesses a despeito do resto.

É muito bom que você tenha deixado de se esconder. É preciso travar mais uma dura batalha contra você e seu mais novo capitão. Espero que você volte a ser objeto de estudo, pois é a nossa grande chaga. Quanto mais pessoas dispostas a pensar como você opera, mais fortes sairemos desta crise.

E espero que um dia, de uma vez por todas, você suma de vez da querida pátria.

Atenciosamente,

André Luan Nunes Macedo.

Candidato a Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Visiting Scholar pela Goldsmiths, University of London e pela University of Wisconsin-Madison. Duramente Englauberiado.

Agradeço a interlocução com o camarada Sérgio Rocha para escrever esta carta.