55 anos do golpe de 1964: o esmagamento do nacional-trabalhismo

João Goulart em Comício no Nordeste em 1964
João Goulart em Comício no Nordeste, no início de 1964
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Agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou e a reação por ele esperada não ocorreu. O gesto daquele que insistia em moralizar o cenário político nacional e que fora eleito “para varrer a corrupção e a bandalheira para longe do Brasil” foi aceito pelo Congresso, e seu retorno ao governo não foi possibilidade discutida. A comoção popular assistida quando do suicídio de Vargas, em 1954, não se repetiu como Quadros esperava ao divulgar um documento em ternos similares ao da carta testamentária de Vargas, na qual se dizia “vencido pela reação” e acusava “forças terríveis” de se levantarem contra ele.

O trabalhista João Goulart, do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), líder populista herdeiro de Vargas, de quem havia sido Ministro do Trabalho, era o vice e sua posse foi alvo de forte oposição militar e dos partidos conservadores.

De imediato, Ranieri Mazzili, Presidente da Câmara dos Deputados e sucessor constitucional na ausência do vice-presidente, foi empossado. Goulart estava em missão oficial na República Popular da China. Embora os ministros militares se insurgissem contra sua investidura à presidência, não havia o mesmo consenso no interior das Forças Armadas. Um conjunto amplo de organizações e forças políticas articularam-se para garantir a posse de Goulart.

De volta ao Brasil para assumir a Presidência após a renúncia de Jânio, Jango recebe o abraço de Leonel Brizola

Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, cunhado e correligionário de Goulart, mobilizando a Brigada Militar e com ocupação das estações de rádio em Porto Alegre, orquestrava a “campanha da legalidade”, que transmitia discursos incitando a população a garantir, ainda que com armas se fosse necessário, a posse de Goulart.

O Palácio Piratini, sede do Governo gaúcho, tornou-se palco da resistência pelo cumprimento da ordem constitucional. A campanha conquistou um elevado número de adeptos entre intelectuais, governadores de estado, estudantes, trabalhadores urbanos e rurais, entre outros. A campanha estendeu-se a todo país. O III Exército, o mais poderoso do Brasil, foi paralisado pela pressão popular e acabou por alinhar-se à defesa da legalidade. O movimento ganhou adesão de diversas outras forças militares dissidentes.

Brizola durante Campanha da Legalidade
Povo vai às ruas em defesa da legalidade
Povo vai às ruas em defesa da legalidade
Cartão postal feito pelo PDT-RS com Leonel Brizola durante a campanha da Legalidade em 1961
Cartão postal feito pelo PDT-RS, nos 50 anos da Campanha da Legalidade
Imagem de Leonel Brizola segurando arma durante a campanha da Legalidade usada em cartão postal
Campanha da Legalidade

A maioria do Congresso não acolheu o pedido dos ministros militares para que votassem o impedimento de Goulart. Conta Moniz Bandeira (2010, p. 126-127) que na época, “[…] havia, nos Estados Unidos duas políticas que se contrapunham: a do Pentágono, corroborada pela CIA, e a do Departamento de Estado, que espelhava a orientação da Casa Branca. Assim, conquanto elementos da CIA e do Pentágono estimulassem o golpe de Estado, a manifestarem que sua posse na presidência da República não agradaria aos Estados Unidos, os ministros militares receberam o informe de que o presidente John Kennedy suspenderia o apoio financeiros ao Brasil caso houvesse ruptura da legalidade”.

Já sem forças, aceitaram a investidura de Goulart baseada na emenda constitucional que estabelecia o parlamentarismo, transferindo os poderes do presidente para um primeiro-ministro. O deputado Tancredo Neves foi o incumbido de compor o primeiro gabinete parlamentar da República, seguido por Francisco Brochado Rocha e Hermes Lima.

Em fins de 1962, intensificou-se a campanha de Jango para o plebiscito que decidiria sobre o retorno do presidencialismo. Aproximadamente 9 dos 10 milhões de eleitores votaram pela vitória do presidencialismo, em janeiro de 1963. Com poderes definitivos, Goulart nomeou os ministros Francisco San Tiago Dantas na Fazenda, João Mangabeira no Interior e Justiça, Celso Furtado no Planejamento e Almino Afonso no Trabalho.

Celso Furtado, ainda antes do plesbicito, em setembro de 1962, foi procurado por Jango que lhe disse “Quero que você assuma o Ministério Extraordinário do Planejamento. Vamos ter que nos preparar para o plebiscito, que devolverá os poderes ao presidente, e quero me apresentar aos eleitores com um plano de governo nas mãos”.

Esse plano foi o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, considerado o primeiro instrumento de política econômica global dentre todos aqueles que já haviam sido formulados até então. Era a primeira vez que, no âmbito do poder público, formulava-se um diagnóstico amplo, detalhado e integrado das condições e fatores causadores dos desequilíbrios, estrangulamentos e possibilidades da economia do Brasil. Expressava a convergência das experiências práticas dos governos anteriores e dos debates técnicos e teóricos realizados pelos economistas brasileiros, especialmente no âmbito da CEPAL.

João Goulart na SUDENE, em Recife (sentado); à sua esquerda Celso Furtado
João Goulart na SUDENE, em Recife (sentado); à sua esquerda Celso Furtado

O governo de Jango pretendia implantar medidas nacionalistas, com maior atuação estatal na economia, com limitação da remessa de lucros ao exterior, com a estatização de alguns setores econômicos e expansão do monopólio da Petrobras. Ainda, o objetivo de Goulart era tornar o Estado um eixo de articulação entre a burguesia nacional e o movimento de trabalhadores com os intelectuais do governo e os setores nacionalistas das Forças Armadas.

A situação do país era grave. Em 1962, a taxa de crescimento do PIB foi de 5,2% e a taxa de inflação naquele ano chegou a 51,3%. Mas a manutenção do crescimento observada nos anos anteriores e a estabilidade monetária não eram os únicos desafios a serem enfrentados. Naquela conjuntura, as mobilizações pelas Reformas de Base tornavam-se cada vez mais fortes, com inúmeros setores posicionando-se a favor de sua implementação. Como buscavam alterar as estruturas de dominação existentes no país, as reformas também incomodavam os setores conservadores de todas as classes sociais e das Forças Armadas.

As Reformas de Base consistiam em várias medidas, dentre elas as reformas bancária, tributária, do estatuto do capital estrangeiro, administrativa, eleitoral, universitária, urbana e, a com maior poder de mobilização dos setores populares, agrária. Sem as Reformas de Base, não haveriam novas condições institucionais para o desenvolvimento de outra etapa da economia brasileira. Assim, delas também dependia a resposta para crise. “Insisto em ressaltar que o êxito de todos esses esforços administrativos somente será atingido com a realização das reformas de base através das quais serão extintas, dentro do nacional, as profundas e intoleráveis desigualdades sociais”, afirmava Jango.

Nesse contexto, após a frustrada tentativa de implementação do Plano Trienal, a prioridade do governo passou definitivamente para as Reformas de Base. Jango parecia cansado das tentativas infrutíferas de buscar aceitação e credibilidade através de medidas restritivas, que demorariam para surtir efeitos positivos, mas que rapidamente o afastariam de sua base política.

A opção de Jango exaltou os ânimos e inflamou os setores golpistas, que, ganharam adesão de conservadores moderados e, notadamente, do governo norte-americano, que já vinha acompanhando receoso os acontecimentos no Brasil.

A saída foi ir às ruas em busca de um maior apoio popular. Em 13 de março de 1964 ocorreu, então, o chamado Comício da Central do Brasil, que reuniu cerca de 200 mil pessoas. No comício, Jango fez uma defesa inflamada de seu governo e das Reformas de Base, apontando-as como o início para mudanças sociais há muito ansiadas pela população.

O ambiente do comício foi tenso. Sem o apoio da polícia do governo do Estado da Guanabara, então comandado pelo oposicionista Carlos Lacerda, ao Exército coube fazer a segurança.

Comício Central do Brasil

“Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reinvindicações.

A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.

A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício”, discursou Jango.

Comício Central do Brasil

“Não há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo; não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas reivindicações.

Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria.

Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro”, continuou.

Comício Central do Brasil
Comício Central do Brasil

“O imortal e grande patriota Getúlio Vargas tombou, mas o povo continua a caminhada, guiado pelos seus ideais. E eu, particularmente, vivo hoje momento de profunda emoção ao poder dizer que, com este ato, soube interpretar o sentimento do povo brasileiro.

Alegra-me ver, também, o povo reunido para prestigiar medidas como esta, da maior significação para o desenvolvimento do país e que habilita o Brasil a aproveitar melhor as suas riquezas minerais, especialmente as riquezas criadas pelo monopólio do petróleo. O povo estará sempre presente nas ruas e nas praças públicas, para prestigiar um governo que pratica atos como estes, e também para mostrar às forças reacionárias que há de continuar a sua caminhada, no rumo da emancipação nacional”.

Jango no comício da Central, ao lado da primeira-dama Teresa Goulart, em 13 de março de 1964
Jango no comício da Central, ao lado da primeira-dama Teresa Goulart, em 13 de março de 1964

A reação conservadora foi rápida. Seis dias depois foi organizada a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Em 31 de março de 1964 foi deflagrado o golpe militar. Era o fim das esperanças em torno das Reformas de Base. Era o esmagamento da agenda nacional-trabalhista.

Marcha da Família com Deus Pela Liberdade 2
Marcha da Família com Deus Pela Liberdade
Marcha da Família com Deus Pela Liberdade 2
Marcha da Família com Deus Pela Liberdade
congresso cercado pelo golpe militar de 1964. Bolsonaro quer comemoração
Congresso Nacional cercado pelo golpe de 1964

A data do golpe é motivo de controvérsia. Há quem entenda que a rebelião militar foi desencadeada em 31 de março, mas que o golpe de Estado, como engenharia política, ocorreu em 1º de abril, quando Jango perde o controle do aparato militar.

Ainda antes dele deixar o país, Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, já havia declarado vaga a presidência da República.

João Goulart, então, viaja do Rio a Brasília no dia 1º de abril e, em seguida, para Porto Alegre, onde Brizola tentava organizar a resistência com apoio de oficiais legalistas. Jango, contudo, apesar da insistência de Brizola, desistiu de um confronto militar com os golpistas e seguiu para o exílio no Uruguai. Sem jamais ter conseguido retornar ao Brasil, Jango morre em 1976, no município argentino de Mercedes.

Enterro de Jango em São Borja, no Rio Grande do Sul

Seu corpo foi sepultado em sua cidade natal, São Borja, no Rio Grande do Sul e enterrado no mesmo cemitério onde Getúlio fora enterrado e, posteriormente, Brizola. O cortejo, apesar da censura imposta ao noticiário, foi acompanhado por aproximadamente 30 mil pessoas, dentre as quais antigos colaboradores de seu governo e políticos oposicionistas.

Enterro de Jango em São Borja, no Rio Grande do Sul
Enterro de Jango em São Borja, no Rio Grande do Sul
Sede nacional do PDT, que leva o nome de João Goulart, em luto pelos 55 anos do golpe.
Sede nacional do PDT, que leva o nome de João Goulart, em luto pelos 55 anos do golpe.