A histórica entrevista de Silvio Almeida no Roda Viva

A histórica entrevista de Silvio Almeida no Roda Viva tamires sampaio racismo estrutural
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Eu recebi com muita felicidade o convite para escrever a já tradicional resenha do Portal Disparada sobre o Roda Viva que teve na noite de hoje como convidado especial o Professor Dr. Silvio Luiz de Almeida. Este que eu tive a honra de ter sido meu orientador do mestrado na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O programa Roda Viva há muito tempo é criticado pela mudança de formato, por edições vergonhosas, chapa branca, e até mesmo pela descaracterização do papel ao qual o programa se propunha em sua origem, mas esta edição foi um ponto fora da curva. No marco dos 190 anos de Luis Gama, o maior advogado da história de nosso país, tivemos o presidente do Instituto que carrega seu nome no meio da roda viva dando uma verdadeira Aula Magna sobre nossa história, nossa vida em sociedade e sobre democracia.

Silvio começa citando o filósofo e ativista dos Direitos Humanos Cornel West para destacar que diante do momento de crise que estamos vivendo, em que os sistemas políticos e econômicos estão eclodindo, não existe resposta para sua superação sem a compreensão do racismo como elemento complexo que é, e como tal não pode ser compreendido sem a análise da política, do sistema econômico, jurídico e da ideologia dominante.

Diante da crise do coronavírus, a maior pandemia dos últimos 100 anos, o mundo está desolado. Há um medo profundo sobre qual será o nosso futuro e estamos no Brasil diante da liderança de um presidente sem a capacidade de diálogo e que reforça uma política eugenista, violenta e autoritária. E esta prática de Bolsonaro é chancelada pelo racismo que possibilita a destruição de uma parcela da sociedade baseado em sua raça e classe social, que no Brasil são praticamente sinônimos.

Ao citar o filósofo Achille Mbembe autor do conceito que está sendo tão falado diante desse momento de pandemia que é a necropolítica, Silvio nos ensina como o neoliberalismo faz com que haja uma mudança nos parâmetros de sociabilidade, pois produzir a morte passa a ser necessário em nome de uma economia que se pauta pela exclusão. E a raça é o elemento fundamental para naturalizar essas violências.

O racismo é um elemento que se não for combatido compromete a democracia e interfere na política econômica, social e no combate a violência, já que o imaginário social sobre o lugar do negro na sociedade autoriza a destruição de direitos, o aumento da desigualdade e a produção da morte.

Por isso, Silvio destaca que ser antirracista é incompatível com a defesa de políticas de austeridade e com o Estado mínimo diante desse momento de pandemia em que as pessoas precisam da proteção do Estado. E por isso é também incompatível com o ataque e o desmonte do SUS, que é responsável no Brasil por salvar milhares de vidas todos os dias.

Esta foi uma noite histórica para milhões de brasileiros que não se veem representados há muitos anos e puderam assistir um homem negro falar em rede nacional denunciando o genocídio da população negra, falando sobre a centralidade do movimento negro na história de nosso país e sobre como a produção de conhecimento da periferia deve ser valorizada. Todas as perguntas que foram feitas, mesmo as que tentavam pregar uma armadilha, foram respondidas com uma maestria digna o intelectual orgânico que Silvio é. E a cada resposta dada, a cada conhecimento transmitido, milhares de jovens negras e negros, puderam se reconhecer nessa figura potente e perceberem a potência em si.

Silvio escancarou a hipocrisia dos que choram por estátuas de escravocratas que estão sendo derrubadas, mas não choram e nem se revoltam com a morte de um jovem negro que é assassinado no Brasil há cada 23 minutos. E também ao perguntar como sobre como ousam falar em meritocracia em um país em que um menino de 14 anos é assassinado pela polícia dentro de casa tentando estudar.

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E ao falar sobre o racismo estrutural, Silvio nos ensinou que o racismo não é um problema individual, que não está ligado necessariamente a uma intencionalidade, que o racismo determina as relações sociais e a atuação das instituições e que por isso é reflexo de ações já naturalizadas. E por isso não podemos cair nas armadilhas dos que tentam individualizar o racismo ou o tornar uma “pauta identitária”.

Não existe palavras pra descrever a emoção que foi ouvir Silvio em rede nacional falando sobre o movimento negro como a solidariedade das favelas, as escolas de samba, os terreiros das religiões de matriz africana. Sobre como as mulheres negras desenvolveram tecnologias de resistência e de manutenção da vida nas comunidades, sobre como a luta antirracista é indissociável da luta por igualdade de gênero, e sobre como o movimento negro, por ser o negro em movimento, está diretamente relacionado ao momento histórico em que ele vive e sempre apresentou um projeto para o país.

Do manifesto de fundação do Movimento Negro Unificado em 78 ao manifesto da Coalisão Negra por Direitos agora em 2020, os negros em movimento sempre denunciaram as violências que os cercam, mas apresentando propostas para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, e essa formulação precisa deixar de ser silenciada, essas propostas precisam ecoar. E por isso é necessário o fortalecimento de pessoas negras que tenham uma agenda política que represente um projeto político antirracista produzido por todos os setores da sociedade, pois sem isso não há democracia.

Ao citar Milton Santos, Lélia Gonzales e Kabengele Munanga, Silvio demonstra que o conhecimento que ele nos passou esta noite é construído há muitos anos, e é reflexo da luta e das formulações de nossos antepassados e ancestrais. Ao evocar o Funk, o Samba, a solidariedade das Favelas e os Terreiros, ele demonstra que esse projeto de sociedade é intelectual, mas é também popular, está nas formulações mais complexas da academia e também na produção cultural da periferia.

Silvio finaliza o Roda Viva falando sobre o futuro, e nos faz um chamado, sobre a necessidade de construir alternativas a esse sistema econômico que sobrevive da desigualdade, da violência e da degradação das relações de trabalho. “Nós temos que criar condições para que as pessoas que venham depois de nós tenham um mundo melhor”, disse, e é esse o espirito de todo o negro em movimento, pois somos hoje o resultado da luta de nossos antepassados. Nossos ancestrais sangraram para que hoje a gente tenha a possibilidade de ocupar espaços que nos foram historicamente negados. E assim continua sendo a vida de nós negros em movimento.

O filósofo e jurista Silvio Almeida se consolidou como um dos maiores intelectuais da atualidade. Impossível reproduzir em poucas palavras tudo o que foi dito e por isso quem não assistiu assista e quem assistiu assista de novo por que esse Roda Viva é daquelas aulas que precisamos assistir várias vezes para realmente absorver o que foi dito. Este com certeza irá entrar pra história como um dos mais importantes debates que ocorreram em rede aberta e nacional em nosso país.

E assim como o Silvio, termino essa resenha saudando meus ancestrais e minha orixá. Epahey Yansã!

Por Tamires Sampaio, advogada e mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Militante da Coordenação de Entidades Negras (CONEN), diretora do Instituto Lula e pré-candidata a vereadora em São Paulo pelo PT.

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  1. Excelentes destaques Tamires, concordo com você. Sílvio Almeida foi ótimo. Continuemos nossas lutas. Como disse Joseph Ki-Zerbo, “Se deitamos, estamos mortos”.

  2. É importante destacar também a invisibilidade absoluta do elemento indígena e de seus descendentes (caboclos e cafuzos), ausentes das estatísticas acadêmicas e oficiais – nas quais figuram como sendo ‘pardos’. Caracterizados durante muito tempo como ‘paraíbas’, ‘baianos’ ou simplesmente ‘nordestinos’ e ‘nortistas’, ou meros ‘capiaus, ‘caipiras’ ou ‘sertanejos’, quando chegam ao Sul e Sudeste do país, não lhes é dada sequer a possibilidade de pertencimento étnico. Sua invisibilidade – enquanto etnia própria – é absoluta. O elemento étnico indígena só é reconhecido como minoria, quando presente no que resta de suas regiões de origem. Eram cerca de 8 milhões de indivíduos na época da chegada dos colonizadores. Parte foi dizimada, mas uma parcela grande se miscigenou à força, em geral.

  3. Tamires muito obrigado pela sua dedicação e empenho, de fato a participação do Dr Sílvio Almeida foi Punjante, inspirador e de arrepiar, ler essa tua contribuição foi de fato uma forma de expansão do Roda Viva… Muito obrigado
    Isac do Kariri cearense

  4. Salve. Assisti extasiado este histórico Roda Viva. Luis Gama com certeza sentiu-se representado na pessoa do professor Silvio Almeida. Contudo, se há de fato interesse em buscar soluções conjuntas ao Racismo Estrutural, a começar pelos meios de comunicação e empresariado em geral, em termos equitativos quantas negras e negros, e demais grupos étnicos, tidos como minoria, tem na produção de conteúdo, grade, programas diários e semanais da TV Cultura, Univesptv, Cultura Educação, TV Rá Tim Bum, rádios Cultura AM e FM, apenas para citar?

  5. Mulhar, preta, criola, Ori feito por Mae beata de Yemanja, estou cansada de ver todos esses que se classificam de negros (do grego morto) falarem em nome de todos nos que vivemos baixo a opressao, da qual a chamada elite reconhece o papel dos pastores dos oprimidos (chamados negros unidos com titulos das instituicoes como Mackienze :().
    Basta de tanto falar de tanto escrever e desfazer o que as comunidades estam tentando fazer, apesar da elite e de sua “retinue”de negros vendedores de livros que nao temos dinheiro (pra comer) pra comprar.
    Bolsonaro e fruto de todos esses negros unidos tambem.

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