O que de fato está por trás do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os EUA?

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No dia 18 de março de 2019, o Presidente da República Jair Bolsonaro assinou um acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os Estados Unidos. Esse acordo que ainda precisa ser ratificado pelo congresso brasileiro está sendo vendido pelo governo e pela grande mídia como a grande esperança para o setor espacial brasileiro e mais ainda para a base de Alcântara. O ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, foi a uma comissão do congresso para debater sobre esse acordo e o argumento utilizado para convencer os senadores que o acordo é benéfico ao país foi apenas de ordem financeira, não apresentou nenhum plano do governo para o desenvolvimento da base e menos ainda para o setor como um todo. E além disso, ao defender o acordo utilizando o argumento financeiro, apresentou dados mentirosos e escadalosamente distantes da realidade. Disse que o Brasil tendo 1% do mercado de lançamentos de satélites geraria ao país ganhos financeiros da ordem de US$ 3,5 bilhões porque, segundo ele, o segmento de lançamentos comerciais de satélites no mundo é de US$ 350 bilhões. Porém, a realidade é que o segmento de lançamentos de satélites em 2017 gerou apenas US$ 4,6 bilhões no mundo, segundo relatório elaborado pela consultoria Bryce Space and Technology. E assim, 1% do mercado de lançamentos de satélites gera, atualmente, entre US$ 50 milhões a US$ 80 milhões apenas, muito distante dos US$ 3,5 bilhões que o ministro apresentou na comissão do senado brasileiro.

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Ao contrário da retórica utilizada pelo ministro de que teremos uma grande mudança no patamar tecnológico do setor espacial brasileiro com a abertura da base de Alcântara para países estrangeiros lançarem seus foguetes daqui, a realidade nos mostra que a renda gerada apenas com o “aluguel” de um centro de lançamento não traz nem desenvolvimento e nem mudança de patamar tecnológico para um país ou para uma região. Peguemos o exemplo do centro de lançamento de satélites em Kourou na nossa vizinha Guiana Francesa. A Guiana Francesa é um território ultramarino da França e por ter uma localização melhor do que qualquer lugar da Europa para lançamentos de satélites foi escolhida para ter o principal centro de lançamentos de satélites da ESA, Agência Espacial Europeia. Em 2014, no auge da liderança da Arianespace, que é a principal empresa de veículos lançadores de satélites da Europa, o centro de Kourou chegou a liderar o segmento de lançamento de satélites comerciais no planeta. A Guiana Francesa virou uma potência na área ou teve alguma mudança de patamar tecnológico no setor ou, mais ainda, a renda gerada pelos lançamentos fez a Guiana Francesa se tornar desenvolvida? Não, a Guiana Francesa continua sendo uma das regiões mais pobres da América do Sul, mesmo tendo apenas cerca de 300 mil habitantes. O PIB da Guiana Francesa é de menos de US$ 5 bilhões e o centro de Kourou é responsável por menos de 15% do PIB, ou seja, menos de US$ 750 milhões, lembrando que o centro de Kourou é um dos centros de lançamentos mais utilizados no planeta, fazendo aproximadamente 25% de todos os lançamentos comerciais e praticamente 100% dos lançamentos da ESA. Nelson de Sá, colunista da Folha de SP, revelou informações importantes vindas de dois sites de informação estadunidenses, informações essas que destroem ainda mais a retórica dos membros do governo Bolsonaro em relação aos benefícios financeiros da abertura da base de Alcântara e a real intenção por trás do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas dos EUA com o Brasil. Essas informações vocês poderão ler nos parágrafos abaixo.

O portal estadunidense de notícia The Verge explicou porque, mesmo a base de Alcântara estando a apenas 2 graus do equador e sendo o centro de lançamento mais perto dessa linha, o que daria algumas vantagens como 30% de economia no combustível por dar um boost na velocidade devido a rotação da Terra e facilidade de lançamento para órbita equatorial, as grandes empresas americanas como a SpaceX (que lidera o mercado de lançamento comerciais), a United Launch Alliance e a Blue Origin não se interessaram pela base de Alcântara. Primeiro, devido ao alto grau de investimento que essas empresas seriam obrigadas a fazer para que o nosso centro de lançamento tenha condições de efetuar lançamentos de seus foguetes que são bem maiores do que a estrutura atual da base suporta. Segundo, o envio dos veículos lançadores dos EUA para o Brasil adicionaria uma camada extra de tempo e dinheiro que faz ser mais vantajoso lançar a partir do próprio EUA. Com a tecnologia da SpaceX de reutilização do veículo lançador, essa empresa tem ainda menos motivo para lançar daqui de Alcântara. O portal ainda cita que as únicas empresas interessadas seriam startups estadunidenses que constroem pequenos foguetes para lançamento de nano satélites e que não conseguem lançar do próprio EUA por causa do tamanho do foguete, por não ter estrutura para esse tipo de foguete. O problema é que o Brasil já está em vias de ter seu próprio veículo lançador de nano e micro satélites, que é o Veículo Lançador de Microssatélite (VLM), e não teria lógica a gente abrir mão das nossas únicas vantagens, a posição geográfica e a estrutura para esse tipo de veículo lançador, para deixar essas empresas estrangeiras lançarem seus foguetes da mesma categoria daqui, uma vez que são nossas concorrentes nesse mercado que tem perspectiva de sextuplicar nos próximos 4 anos. O passo seguinte ao VLM é o desenvolvimento de veículos lançadores de satélites de maior porte, a chamada família VLX cujos dois primeiros lançadores de satélites já estão nomeados: o Áquila I e o Áquila II e já estão em desenvolvimento. Todos esses veículos lançadores fazem parte do Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE). O sucesso da família VLX depende primeiramente do sucesso do VLM.

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O jornal e website estadunidense The Hill, que é um jornal de política muito lido pelos membros do congresso estadunidense e formador de opinião desses membros, descreve o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas do Brasil com os EUA como uma “ação contra a China” que visa dificultar a capacidade do Brasil de colaborar com a China, como já vem sendo feito, por exemplo, com satélites através do exitoso Programa CBERS. O último parágrafo da notícia do The Hill mostra exatamente o pensamento estadunidense em relação a esse acordo que visa apenas nos subordinar aos interesses americanos: é Doutrina Monroe na veia. Diz o parágrafo: “Historicamente, a América Latina tem sido uma região de batalha onde os contendores da guerra fria competem pela supremacia comercial e ideológica. Independentemente de haver ou não uma nova guerra fria entre os EUA e a China, os formuladores de políticas dos EUA precisam fortalecer parcerias não apenas com países próximos à China, mas também com pessoas próximas de casa. O acordo entre os EUA e o Brasil é um bom primeiro passo para promover uma cooperação mais profunda e combater as ambições da China na região.” Depois desse último parágrafo fica mais fácil de entender qual as reais intenções dos EUA em querer assinar esse Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com o Brasil. A intenção é a mesma desde sempre, atrasar ou até impedir o desenvolvimento brasileiro em Veículos Lançadores de Satélites que, aliás, já é informação conhecida por todos que se interessam pela área desde as revelações pelo Wikileaks das conversas diplomáticas entre a embaixada dos EUA com o governo da Ucrânia, ou até mesmo muito antes disso, para quem conhece todos os embargos feitos por aquele país quando nós tentamos comprar alguma tecnologia sensível para usar em algum produto nacional.

Os EUA já assinaram acordos de Salvaguardas Tecnológicas no setor espacial com países como a Índia e a Nova Zelândia, mas com regras diferentes em relação ao acordo brasileiro. Por exemplo, diferentemente do acordo com o Brasil, o acordo com a Índia não tem nenhuma menção em relação a impedir acordos comerciais ou de cooperação tecnológicas com países não signatários do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, conhecido como MTCR. Outra diferença importante é que o acordo dos EUA com a Índia é para lançar apenas satélites estadunidenses a partir de foguetes indianos, até porque a Índia já possui veículos lançadores de diferentes tipos e para diferentes finalidades. Portanto, não serão lançados foguetes estadunidenses a partir da Índia. A Nova Zelândia é um país minúsculo, não tem programa espacial próprio como o Brasil, e assinou o acordo com os EUA para uma subsidiária de uma empresa estadunidense, a Rocket Lab, poder lançar veículos lançadores de micro e nano satélites a partir daquele país. Não é o caso do Brasil que, como já vimos, tem um programa espacial que já está desenvolvendo veículos lançadores de satélites de diferentes tamanhos.

Mas, e aí, o que devemos fazer para não deixar a base de Alcântara inutilizada como está atualmente e desenvolver esse setor no Brasil? Ao contrário do pensamento neoliberal que predomina no país, já ganhando espaço dentro do alto comando da Forças Armadas Brasileiras, a realidade mostra que o setor espacial no mundo é altamente dependente do orçamento governamental. O Brasil vem patinando no setor desde os anos 90 devido ao sempre baixo orçamento governamental. Mesmo com os repasses tendo melhorado entre 2000 e 2009, o orçamento nunca foi suficiente para sustentar um programa espacial completo e, desde 2010, esse orçamento que sempre foi insuficiente vem sendo cortado ano após ano. Os cortes mais abruptos aconteceram com o Temer e tem continuado no governo do autorreferido patriota(sic) Jair Bolsonaro. Para se ter uma ideia, o orçamento do ano passado, 2018, foi de R$ 194 milhões e esse ano R$ 181 milhões (se convertermos isso para dólar dá vontade de chorar). Em 2009, o orçamento foi de R$ 415 milhões. Para piorar a situação, o setor espacial só voltou a ser prioridade para as forças armadas após o estabelecimento da Estratégia Nacional de Defesa, lançada em 2009. E esses cortes atrasam nosso desenvolvimento nesse setor porque projetos e programas ou demoram muito tempo para chegarem no produto final ou são cancelados por falta de verbas, como aconteceu por exemplo com o projeto brasileiro de Satélite de Reentrada Atmosférica, o SARA. Não existe nenhum país que hoje é potência nesse setor e que tenha um programa espacial completo, ou seja, que tenha um centro de lançamentos de veículos espaciais desenvolvido, seja capaz de construir esses veículos lançadores para várias finalidades e seja capaz de construir satélites de todos os tipos e tamanhos, que não tenha por trás o governo desse país garantindo um orçamento robusto para os projetos e programas desse setor. E o maior de todos os orçamentos de agência espacial é justamente o dos EUA, que para fora condena a intervenção estatal, mas que gasta na NASA US$ 20 bilhões por ano. Porém, a NASA não banca sozinha essa área. O orçamento do Pentágono para desenvolvimento espacial militar está na ordem de US$ 40 bilhões. Mas, os EUA são um ponto fora da curva. O orçamento deles é realmente muito superior aos de outros países que são desenvolvidos na área. Por isso, peguemos como exemplo a Índia. O orçamento da Agência Espacial Indiana, a ISRO, é de atualmente US$ 1,7 bilhão. Além da Índia, China e Russia também possuem programas espaciais avançados e o orçamento governamental robusto, de US$ 11 bilhões e US$ 3,2 bilhões respectivamente, é que sustenta o setor naqueles países. Se vocês procurarem a lista dos orçamentos dos países que estão desenvolvidos na área, não vai ter orçamento de agência espacial menor do que US$ 1,7 bilhão. Sem contar o orçamento militar desses países para o setor espacial que é muito maior.

Portanto, não faz sentido o Brasil assinar o acordo com as regras que estão escritas ali, pois não há transferência de tecnologia e ainda nos impede de assinar acordos comerciais ou de cooperação tecnologia com países que hoje já possuímos relação nesse setor, que é o caso da China. Além do mais, como foi mostrado, o real volume de dinheiro que esse acordo pode gerar não está nem perto do que foi divulgado pelo ministro Marcos Ponte. Serão ganhos irrisórios, para perdas incalculáveis.

Por Felipe Dias, editor do canal Progressista.