Considerações para compreender a conjuntura argentina: a lição de Cristina Kirchner e o futuro governo de reconstrução nacional

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REUTERS/Marcos Brindicci/File Photo
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“Na ação política, a escala de valores de todo peronista é a seguinte: primeiro a pátria, depois o movimento, e depois os homens”

(Juan Domingo Perón, “Vinte Verdades Peronistas”, nº 8, 17/10/1950)

Alberto Fernández foi chefe de gabinete de Néstor Kirchner durante todo o seu mandato, de 2003 a 2007. Continuou na função durante o mandato de Cristina Fernández de Kirchner (CFK) até 2008, quando renunciou ao cargo por divergências em relação à política de tarifas para a exportação de produtos agropecuários. O episódio, conhecido como “Resolução 125” ou “conflito com o campo”, motivou um lockout patronal e desencadeou a pior crise de governabilidade dos 12 anos de governos kirchneristas.

O primeiro mandato de CFK (2007-2010) marcou um período em que os desafios macroeconômicos da Argentina passaram a ser de ordem mais estrutural do que o plano de retomada do crescimento e reestruturação da dívida soberana que caracterizou o governo de Néstor Kirchner. Durante esse período, a exacerbação do conflito distributivo aumentou consideravelmente, e as deficiências estruturais do setor produtivo se tornaram mais evidentes.[1] O consenso construído durante o primeiro governo kirchnerista entrou em processo de desgaste, com o distanciamento tanto do setor do radicalismo que o apoiava, representado pelo vice-presidente Julio Cobos, como de parte do peronismo.

Alberto Fernández pertence ao grupo dos peronistas que se afastaram do kirchnerismo e passaram a fazer oposição a CFK nessa época, criticando, por exemplo, a lei de regulação dos meios audiovisuais em 2009 e a frustrada tentativa de reforma judicial em 2013. Desde então, ele atuou no espaço Frente Renovador como conselheiro político de Sergio Massa, que também deixou o governo em 2009, e depois de Florencio Randazzo, ex-ministro de CFK que se afastou do kirchnerismo após ter sua candidatura presidencial preterida a favor de Daniel Scioli em 2015.

Durante o governo de Mauricio Macri, no entanto, Alberto Fernández e CFK reataram o diálogo. Partindo do diagnóstico comum de que o governo macrista representa um retrocesso profundo para o desenvolvimento nacional, ambos foram se reaproximando progressivamente, a ponto de ele se transformar num dos principais articuladores de CFK entre os governadores peronistas. O anúncio de sua candidatura à presidência, no entanto, surpreendeu todo o ambiente político argentino. Como é comum ao estilo de CFK, o plano era desconhecido até pelos mais próximos. Nem mesmo a inteligência argentina, colocada à sua caça diuturnamente pelo governo, detectou a movimentação.

O anúncio da chapa Fernández-Fernández (FF), como tem se notabilizado na Argentina, já foi aclamado favoravelmente por setores importantes da base do peronismo, como as centrais sindicais CGT e CTA e dirigentes sindicalistas como Hugo Moyano. Com isso, tende-se à reconstrução da base política e social mais ampla que caracterizou o primeiro governo kirchnerista. Esse fator é fundamental para garantir a governabilidade necessária para um governo de reconstrução nacional a partir do duro cenário macroeconômico e social deixado pelo governo de Mauricio Macri.

A chapa FF constitui, portanto, uma grande iniciativa de CFK para unificar o peronismo. Embora a ex-presidenta contasse com a maior intenção de votos isolada de todos os políticos argentinos, ela sabia que os índices de rejeição a seu nome também seriam altos. O ódio irracional que uma disputa entre CFK e Mauricio Macri desencadearia na eleição causaria um efeito tóxico na sociedade, fazendo com que a discussão não girasse em torno de projetos de país, mas sim de quem teria os maiores índices de rejeição. Neste cenário, uma derrota em outubro não poderia ser descartada. Mesmo que ganhasse a eleição, as condições de governabilidade não seriam as melhores sem um amplo apoio de governadores, sindicatos e movimentos sociais ligados ao peronismo.

Com a decisão de CFK, o elemento que provoca o antagonismo de muitos setores da classe média se dissolve. Além disso, fica desmantelado o espetáculo judicial ao qual o governo de Mauricio Macri a submeteu por meio de sua ingerência sobre um setor do judiciário. O candidato presidencial surge como alguém sobre o qual não pesam denúncias nem operações de inteligência, obrigando o macrismo a discutir políticas, resultados concretos e projetos de país na campanha.

Com esse movimento de xadrez, a candidatura de Sergio Massa fica virtualmente anulada, salvo que ele decida competir com a chapa FF por dentro do Partido Justicialista (peronista) nas primárias, que são obrigatórias na Argentina. Já a candidatura de Roberto Lavagna adquire um caráter diferente, marcadamente antiperonista. Isso dividirá o eleitorado antiperonista entre Mauricio Macri e Roberto Lavagna, beneficiando, sem dúvidas, o peronismo.

É importante destacar que Alberto Fernández não pode ser considerado, de forma alguma, um “poste” de CFK. Pelo contrário, ele é um peronista que, embora tenha sido ministro de Néstor Kirchner e CFK no primeiro momento, afastou-se do governo e passou a ser um grande crítico de ambos. O espaço político de sua atuação, embora também peronista, era totalmente independente do kirchnerismo – o que no Brasil seria o equivalente a um partido político separado. Esse fato mostra a grandeza política de CFK ao convidá-lo para integrar a chapa, colocando os interesses da nação sobre suas ambições pessoais e as de seus aliados mais próximos.

No governo, CFK será presidenta do Senado, atuando como articuladora política tanto dentro do Congresso como perante a sociedade, sindicatos e movimentos sociais. Além disso, é esperável que ela tenha grande protagonismo na condução da política internacional. Com longa experiência no assunto, não surpreenderia que ela liderasse as negociações com os credores internacionais no que, provavelmente, será uma nova reestruturação da dívida argentina, que aumentou de 40 por centro do PIB (US$ 181,6 bi) em 2010 para 94,6 por cento do PIB (US$ 307,6 bi) em 2018.

Com base nessas considerações, é impossível olhar para a situação argentina e não traçar paralelismos com o que aconteceu no Brasil na eleição de 2018. Em vez de apostar na ampliação da base com uma chapa liderada por alguém capaz de unir a sociedade em torno de um projeto de país, Lula preferiu apostar numa campanha personalista até o último minuto. Por mais injusta que tenha sido sua condenação, a lei era clara do que tangia a seu impedimento. Escolheu então um “poste” de seu próprio nicho político, sabotando ativamente a candidatura de Ciro Gomes, seu antigo aliado, único nome do nacionalismo brasileiro que reunia condições efetivas de ganhar a eleição no segundo turno. O Brasil hoje paga as consequências daquela decisão. Tivesse o Brasil uma CFK em seu lugar, é provável que hoje tivéssemos um governo de reconstrução nacional, e não de absoluta desintegração nas mãos do neoliberalismo obscurantista de Bolsonaro.

[1] Vide também Kulfas, Matías (2016). Los tres kirchnerismos. Una historia de la economía argentina, 2003-2015. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores.