O que está acontecendo com as democracias liberais?

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Capitalismo e democracia nunca foram sinônimos. É importante notar que a experiência de sufrágio universal só foi incorporada ao sistema político dos países ricos no início do século XX. Em países periféricos, como o Brasil, a experiência de participação popular e democrática veio muito depois. A primeira eleição democrática no Brasil ocorreu em 1945 e a primeira eleição com a participação da maioria da população só ocorreu em 1989. Portanto, a experiência democrática universal e a participação popular são questões recentes na história da humanidade e mais recentes ainda em países periféricos, que ainda lutam para estabelecer suas instituições.

O sistema capitalista sempre foi marcado pela disparidade entre quem tem dinheiro e meios para produzir e quem não tem e precisa vender a força de trabalho para que possa sobreviver. A consolidação das democracias liberais no mundo desenvolvido conseguiu operar um tipo de regulação política do capitalismo, proporcionando o fortalecimento das instituições democráticas ao mesmo tempo que permitia uma melhora de vida nas camadas mais pobres destas sociedades, muito devido à diminuição das desigualdades e fortalecimento de instituições públicas. A confiança na democracia como instrumento da melhora de vida das pessoas se consolidou. Nessa mesma época, vimos um aumento expressivo da força dos sindicatos em proporcionar melhores condições de vidas a seus representados. Este foi o auge da socialdemocracia europeia e esse modelo de sociedade inspirou o mundo todo, inclusive o Brasil. A defesa da democracia parece ter virado uma unanimidade no mundo, mas essa unanimidade ruiu.

Estamos assistindo a implosão deste modelo de sociedade que visa a garantia de direitos individuais e participação democrática universal. A chegada ao poder de demagogos como Orbán, Trump, Bolsonaro, Duterte, Boris Johnson e vários outros, é um sintoma e nos mostra que as democracias liberais, até então entendidas como consolidadas em uma grande parte do mundo, vivem um de seus piores momentos. É possível tirar ensinamentos desta crise? Muitos olham para os aspectos institucionais da crise, sobre como lideranças políticas autoritárias estão cada vez mais avançando sobre as instituições feitas para preservar a democracia ou sobre como o poder constitucional vem se enfraquecendo. Entretanto, estes se esquecem de olhar para o principal aspecto da crise atual: o aspecto econômico.

As democracias liberais conseguiram se fortalecer, pelo menos nos países centrais, na segunda metade do século XX pois permitiram maior espaço de mudança nas políticas econômicas destes países em vistas da diminuição das desigualdades econômicas e aumento da renda média e poder de compra de uma grande parcela da população. O sentimento da população era de que as suas escolhas democráticas faziam diferença e que era possível mudar as coisas por meio da política. Por este mesmo motivo, muito foi feito para impedir o avanço da democracia em países periféricos. O caso da América Latina e o “surto” de ditaduras militares na segunda metade do século XX é exemplar. Hoje, temos uma consolidação democrática, mas temos um engessamento econômico que aponta para uma concentração de renda nunca antes vista na humanidade. O sentimento hoje é o de que a política não resolve mais nada importante e que tudo está dominado para que não haja mudanças. O pior deste sentimento é que, na grande maioria dos casos, ele é verdadeiro. O quadro atual das democracias liberais é o de “mudar para que tudo permaneça igual”. As democracias liberais conseguiram ampliar a garantia de direitos políticos, mas não mexeram em quase nada no que diz respeito à democratização da economia. O poder econômico continua na mão de poucos que ditam as regras no jogo do capitalismo mundial, o que faz com que as mudanças políticas sejam cada vez mais difíceis.
Esse engessamento político foi levado a cabo, também, pelos grandes partidos da socialdemocracia europeia e da esquerda no mundo periférico. A falta de democracia econômica e a não melhora (ou insuficiente) da vida dos trabalhadores fez com que toda a política partidária, tanto da direita como da esquerda, fosse enquadrada dentro do que se convencionou chamar de “sistema”. Isso fez com que a possibilidade de um populismo autoritário de direita encontrasse terreno fértil. Enquanto a esquerda não conseguia avançar em torno de propostas de democratização da economia, a direita conseguiu fixar sua mensagem de crítica sistêmica com figuras populares. Por isso vemos a ascensão de lideranças da extrema-direita mundo afora. A insatisfação popular foi canalizada para figuras políticas autoritárias que buscam representar a mudança sem necessariamente mudar nada. É a tentativa de manter a insatisfação contra a política dentro dos marcos atuais da exploração.

A tarefa colocada hoje para as forças progressistas é buscar tentativas de aliar a forma mais rica de democracia política com uma forma igualmente rica de democracia econômica. A experiência histórica nos mostra que a primeira não pode caminha separada da segunda. A concentração do poder econômico na mão de uma classe cada vez mais fechada de ricos vai minando aos poucos qualquer tentativa de democracia política estável. Aos poucos, o mundo vai escancarando o fim das ilusões democráticas anteriores e o caminho a seguir pode ser perigoso. Se os progressistas do mundo não pensarem em formas de avançar sobre a democratização da economia, saídas autoritárias serão cada vez mais presentes.

Por fim, no caso brasileiro, penso que essa tarefa é ainda maior. Nos países centrais, o trabalho pode ser focado mais na distribuição e democratização em cima de uma riqueza que já está dada e é alta; não há a necessidade de um projeto de desenvolvimento em países que já são desenvolvidos. No Brasil, a tarefa é ainda maior, pois nos exige entender que temos uma dupla tarefa: desenvolver a economia ao mesmo tempo que a democratizamos. Por isso é necessário pensarmos em um desenvolvimentismo democratizante, que alie o que temos de melhor para aumentar nossa riqueza ao mesmo tempo que fazemos isso de uma forma que uma parcela cada vez maior da população participe desse desenvolvimento de forma ativa, tomando para si o protagonismo no processo de desenvolvimento.