Autoritarismo de Bolsonaro é grave sintoma dos nossos tempos

Autoritarismo de Bolsonaro é grave sintoma dos nossos tempos
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Há pelo menos dois aspectos interdependentes do lamentável rompante autoritário do presidente Jair Bolsonaro ontem pra se prestar atenção e que me motivam a escrever depois de alguns meses quieto. Pra mim ele é sintomático de toda uma era, e embora por razões bem óbvias tenha adquirido proporções bem maiores agora, não se restringe apenas à direita paranoica que hoje se vê muito bem representada no Planalto.

Primeiro o que é mais transparente. Especialmente no 2º país mais letal da América Latina para jornalistas – só o México é pior que o Brasil – e o 102º entre 180 num ranking mundial de liberdade de imprensa, não se atiça a turba contra dois jornalistas tão explicitamente sem esperar que o pior aconteça. A correspondente da GloboNews em Washington Raquel Krähenbühl publicou recentemente o print de uma ameaça que recebeu inbox pelo Twitter: a foto de uma arma apontada pra ela com a legenda “o povo brasileiro já não aguenta mais tanta mentira que vocês espalhas (sic) ao redor do mundo. Esta (sic) chegando a hora de termos aqui uma guerra entre JORNALISTAS ABUTRES X POVO. A mídia é o maior inimigo do Brasil”.

O presidente Jair Bolsonaro aprendeu que uma das maneiras mais fáceis de fazer a corrupção desaparecer é minando os meios que a evidenciam. Não foram poucos os que minimizaram o apreço do Bolsonaro pelo regime militar no Brasil e por outros similares na América do Sul. Mas com os militares o Bolsonaro aprendeu que, se ninguém fala sobre corrupção, ela não existe. E aí décadas depois de um regime assim você pode repetir sandices como, por exemplo, que na época da ditadura não havia corrupção. Claro, você manda fechar o poder que fiscaliza o executivo, aparelha o judiciário e manda sumir com quem fala a respeito disso nos meios de comunicação ou tribunas. Aí não tem corrupção mesmo.

Na campanha eleitoral, como se sabe, o Bolsonaro quase não falou sobre o tema. Tudo muito vago. Não apresentou proposta alguma pra criação de mecanismos de combate às causas e efeitos da corrupção, com exceção do apoio às chamadas 10 Medidas. O ministro Moro hoje discorda do juiz Moro e já entende que o caixa 2 não é crime tão grave assim. E agora que surgem indícios muito consistentes de mau uso do dinheiro público na campanha do partido que o elegeu, de envolvimento do filho com a milícia e da retenção dos salários de assessores, o Bolsonaro aposta alto tanto na adesão – explícita ou não – dos brasileiros à sua simpatia pelo autoritarismo quanto, e principalmente, na divisão de uma sociedade polarizada pra permanecer sempre em campanha, mesmo quase um semestre depois de eleito.

Esse fator é importante pra entender o segundo aspecto, antes que ele se perca de vista. Embora fã incondicional dos regimes que prenderam, torturaram e assassinaram jornalistas na América, hoje o presidente Bolsonaro não tem à sua disposição o mesmo engajamento das forças armadas pra esse propósito. E pra falar bem a verdade ele nem precisa. Tudo que precisa fazer é, como eu disse, apostar na divisão da sociedade brasileira e, ainda, explorar como nunca o que nós podemos chamar simpaticamente aqui de “morte do argumento”.

Não é de hoje que as ciências humanas debatem o papel do “eu” na produção do conhecimento. Por exemplo, no século XIX a dita Escola Metódica, liderada pelo alemão Leopold Von Ranke, reivindicava pra si o papel de libertar a história das mãos dos românticos que, como Jules Michelet e Thomas Carlyle, argumentava-se, contaminavam a verdade com excesso de paixões políticas. A ideia era apagar o eu rumo à produção de um conhecimento neutro e objetivo. Narrar os fatos como eles realmente aconteceram, dizia-se.

Essa posição dominou a historiografia por décadas, mas não sem resistências. Charles Beard, já nos anos 1930, lembra que o próprio Ranke, de origem aristocrata, não escapa a essa regra: como todo conservador de seu tempo, estava cansado da história fazendo propaganda desde a revolução francesa. Mas isso não o tornava imune às motivações políticas. Pelo contrário. Essa percepção algo durkheimiana da atividade intelectual foi levada às últimas consequências pelos partidários da virada linguística nas últimas décadas. E pra eles o pesquisador não é nada além do que o produto das suas próprias inscrições sociais, com a diferença de que agora elas são heterogêneas e às vezes até conflitantes. O historiador californiano Sandro Cohen chegou a perguntar “se ainda vale a pena escrever a história […] após 2500 anos de deformações produzidas pelos historiadores, […] os quais transformaram a ideia de pensar um acontecimento em um recurso para o controle do futuro”. E é aí que a própria noção de verdade torna-se não apenas relativizada como simplesmente perde o seu sentido.

Não restam dúvidas de que entender as motivações políticas e inscrições sociais daqueles que produzem conhecimento consiste num importante passo no processo de leitura. Convém saber que Ranke era um aristocrata com o saco cheio da história-propaganda sobre a revolução francesa? Sem dúvidas. Mas isso anula tudo que ele escreveu? Saber que Ranke era um aristocrata já é o suficiente pra que ele não seja lido nunca mais?

Pras duas últimas perguntas, há quem diga que sim. E arrisco dizer que, a cada dia que passa, mais pessoas dizem que sim. Richard Sennett se debruçou sobre esse fenômeno em “O Declínio do Homem Público”, que trata da crise da vida pública no advento da Modernidade. Pra ele, essa noção de que o que se diz em público trata-se apenas do desvendamento involuntário do que guarda na esfera privada cria um paradigma que simplesmente anula o argumento. Diante dele, diz Sennett, o que se diz importa muito menos do que quem diz.

Quando digo, no início desse texto, que esse é um fenômeno que ultrapassa as fronteiras guardadas pela direita mais paranoica, quero chamar atenção pro fato de que a esquerda tem utilizado muito desse expediente pra, por exemplo, interditar debates com o argumento da vivência. Esse argumento tem até um nome: lugar de fala. Ao contrário de muitos dos colegas, não o rejeito porque reconheço que minorias sociais estiveram excluídas da vida pública por incontáveis gerações na tradição ocidental e que não se pode considerar razoável que apenas um pequeno grupo elitizado de intelectuais comumente brancos fale por e sobre elas, por mais nobres que possam ser suas intenções.

Não é raro, no entanto, perceber o “lugar de fala” como uma espécie de carta especial utilizada pra anular o argumento de interlocutores sem vivência. Um tuíte com 6 mil likes pergunta o seguinte: “Ninguém discute engenharia com um engenheiro, nem medicina com um médico. Então por que achar que a gente conhece mais sobre racismo, machismo e homofobia do que negros, mulheres e LGBTs? Por que é tão fácil respeitar 5 anos de faculdade e tão difícil respeitar o conhecimento de uma vida inteira?”.

Mais uma vez, pra que fique claro dito de outra forma: não parece nada razoável que grupos minoritários vejam suas vidas governadas e lidas apenas por quem nunca viveu suas realidades. Mas tampouco seria razoável considerar que a vivência substitui a observação científica. Mesmo porque, assim como a observação científica não produz verdades absolutas sobre vivências, as vivências também não geram experiências idênticas. Por isso Pablo Ortellado acerta quando diz que personalidades públicas como Fernando Holiday curto-circuitam a noção de lugar de fala. Porque elas pegam carona no argumento da vivência pra invalidar os argumentos dos próprios movimentos identitários na construção de políticas públicas. E aí qual vivência é mais verdadeira?

A questão, portanto, não é “achar que a gente conhece mais sobre racismo, machismo e homofobia do que negros, mulheres e LGBTs”, mas perceber que vivência e observação científica na produção do conhecimento são elementos importantes na constituição da vida, mas distintos. Ambos têm sua importância, não são necessariamente conflitantes e podem ser considerados úteis pra elaboração de políticas públicas. E o termo “políticas públicas” eu não uso aqui de modo aleatório. É porque entendo que esse modo de ver o mundo é não apenas nocivo ao argumento, como também e sobretudo à própria vida pública, que por sua vez é mediada pela política. O que se tem são performances de valores a cada dia mais incapazes de encontrar conciliação. É por isso que a oposição não aceita que um de seus deputados sente pra negociar com políticos da base governista. É por isso que ela prefere que passe a reforma da previdência como está em vez de discuti-la ponto a ponto pra minimizar seu estrago. É mais fácil dizer que não tem déficit ou, no mínimo, um grave problema fiscal. Porque é como se estivesse em jogo uma disputa por coerência que não admite deslizes. Um passo fora e pronto, tal como Ranke “desmascarado”, seu eu já torna-se descartável.

O que fez Bolsonaro foi pegar carona com esse paradigma e, claro, alçá-lo a patamares nunca vistos nesse país. Nenhum presidente do Brasil democrático, insisto, havia ameaçado abertamente fechar um jornal como Bolsonaro fez com a Folha e incitado seus seguidores mais fanáticos contra uma jornalista, com nome, foto, identidade, um áudio muito mal legendado e uma música dramática no fundo. Como resultado de uma grave crise política que atinge os meios de comunicação, o que quer Bolsonaro é simples: interditar o que dizem os jornais independentes pra que só ouçam os comunicadores que o adulam. Seu instrumento aqui não é institucional, mas moral. Anuncia um vício de origem na mensagem que, se não a faz desaparecer, mina sua credibilidade. Trata-se de um exercício claro de assassinato de reputação mesmo. E não tem outro nome pra isso.

Essa estratégia é especialmente problemática primeiro porque bolsonarismo resolveu pagar com dinheiro público os operadores dessa máquina de destruição de reputações que outrora operavam em blogs obscuros de direita e agora são validados pela presidência da república. E segundo porque a cada dia que passa os critérios pra assassinar a reputação de alguém estão se tornando mais elásticos. Contribuiu muito pra isso a dinâmica própria das redes sociais num contexto de grave crise das democracias e das instituições de mediação, em que qualquer acusação é elevada à condição de verdade. O subjetivismo radical – aquele que entende os sujeitos como meros reflexos das nossas inscrições sociais – também tem sua parcela de participação nisso, já que “todo homem”, “todo branco”, “toda mulher”, “todo negro”, “todo homossexual” e por aí vai. O que realmente aconteceu mesmo – ou algo próximo disso – não conta muito. Quando se tratam de acusações de violência contra minorias, comumente aqueles que se põem como guardiões do garantismo abandonam suas convicções pra aderir ao punitivismo, traço ambidestro do DNA brasileiro.

E aí vão sobrando poucos virtuosos dignos de ocupar o espaço público.

Tempos atrás fui convidado a escrever pra um grande portal brasileiro porque, segundo a editoria, eu poderia ter bons insights. Por causa das acusações que tinha sofrido antes ainda – e que sempre vêm à tona quando um volume razoável de pessoas se incomoda com o que eu escrevo ou, ainda, com o fato de eu escrever e ser lido – fui descartado. O caso ilustra bem meu argumento. De repente meus insights já não eram bons o suficiente ou eles estavam atrás de outra coisa? O que faz Bolsonaro é, noutra ponta e com outra dimensão – insisto –, mais ou menos o mesmo. Graças à “denúncia” contra a jornalista, lançou até a hashtag #EstadãoMente. Mas no que o Estadão mentiu? Flávio Bolsonaro não tem ligações com a milícia? O COAF não flagrou movimentações suspeitas na sua conta? Atirar no emissor das perguntas provou-se o modo mais eficaz de não precisar respondê-las.

Reconheço os esforços de quem está tentando distinguir, com razão, o que fazem com o jornalismo hoje os bolsonaristas e o que um dia já fez – e ainda faz – o petismo. Essas distinções são válidas e necessárias. Mas não se pode perder de vista que há um novo Terror em curso. Bem menos literal, é verdade. E com a diferença de que agora os jacobinos somos todos nós.

Ou melhor, pra não parecer um subjetivista radical, quase todos nós.

Em tempo: dentro dos limites de alcance desse perfil, minha solidariedade à Constança Rezende e ao seu pai, Chico Otávio. Picaretas se combatem com a realidade. E o bom jornalismo vai vencer mais uma vez.

Por Murilo Cleto