O bolsonarismo é efetivamente um populismo

MOYSÉS PINTO NETO O bolsonarismo é efetivamente um populismo bolsonaro lula lulismo
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É impressionante como o bolsonarismo é efetivamente um populismo.  Não só o significante “aqui é Bolsonaro” quer dizer muitas coisas ao mesmo tempo, criando uma cadeia de equivalências entre diferentes, como Laclau descreve, como também a luta contra as elites é reescrita quase inteiramente em termos culturais (*).

Sob certo sentido, Bolsonaro se apropriou de uma parte do sonho de Lula que era se comunicar com o “povão” a partir do discurso do auto-interesse. Lula sempre quis juntar o potencial crítico da classe média de esquerda, com seus intelectuais e lideranças sociais, ao interesse direto, imediato, do povo. Por isso, nunca fez discurso a la left/influencer de Youtube, tipo “vamos construir o socialismo a partir da luta de classes no Brasil” etc. Seu discurso era: “quero um povo que coma três refeições por dia”.

Bolsonaro também conseguiu se conectar profundamente ao imaginário social, mas sob um viés hipercapitalista e violento.

De um lado, o cidadão de bem que trabalha, paga seus impostos e quer empreender e ganhar dinheiro, mais ou menos como Lula descreve o sujeito que “quer comer seu churrasco e tomar sua cerveja aos domingos” em uma versão mais ambiciosa. Só que, no caso do PT, o discurso estrutural atrapalhava, tornava isso demasiado abstrato e por vezes caía em censuras morais — por exemplo, a de questionar se comer carne é legal ou se o comportamento do tiozão é adequado. Com Bolsonaro, a cola é automática.

De outro lado, Bolsonaro cola o discurso de que existe uma máquina gigante estatal brasileira que parasita os empreendedores (ele jamais se dirige aos seus como “trabalhadores”) e sustenta os vagabundos, impedindo que o nosso self-made man se realize. Assim, é preciso descer a porrada em todo mundo que vai contra a ordem e deixar que os mais fortes prevaleçam. Só que a ordem se torna um conceito confuso, porque ela não tem a ver com a lei (a lei também está a serviço dos vagabundos), mas com um tipo de “lei natural” que coloca a vontade individual, inclusive com o uso da força, como elemento estruturador de uma utopia do cada-um-por-si e sobreviva-o-mais-forte.

Mas falta um elemento aqui, que é definir como ‘vagabundo’ não apenas os criminosos e esquerdistas — o que daria um público pequeno para alçar voo. É preciso definir como vagabunda toda elite cultural, todos aqueles que têm discurso articulado minimamente coerente e desafiam o rebolation argumentativo do bolsonarismo (e olavismo).
Acontece que no mesmo ato em que, populisticamente, o bolsonarismo define como inimiga a elite cultural, ele perde quase todo quadro possível para governar.

O deserto do ministério é um exemplo disso.

Bolsonaro não encontrou UM mísero nome disposto a colaborar com seu projeto educacional, por exemplo. Os  últimos dias mostraram o novo ex-Ministro da Educação dizendo ter pós-doutorado (nem existe isso) sem ter completado doutorado (gente: doutorado sem tese é como você ir às aulas de uma disciplina e não fazer a prova. Pior até) — e, cavocando um pouco mais, aparecem até plágios no Mestrado.

Não há UM ministro que possa ser tido como referência intelectual em NADA (**).

Já sabemos que Paulo Guedes, o último símbolo “técnico” do governo, é um zé ninguém no mundo da economia: ele é um coach do mercado financeiro, tido como “gênio” pelos administradores de fundos simplesmente porque é mais um igual a eles. Comparado a um Pérsio Arida, Bresser-Pereira ou Marcos Lisboa, é ninguém.

O governo é uma completa NULIDADE em termos de competência: os caras não encontraram um mísero nome disposto a defender o governo e hoje já foram completamente abandonados por praticamente todos os nomes que circulam na esfera pública, seguindo agarrados apenas a um guru (Olavo), seus discípulos na web e três ou quatro jornalistas que não têm bala na agulha para alçar voo mais alto (Constantino, Garcia, Fiúza e Augusto Nunes).

Em princípio, isso não seria problema ao bolsonarismo, pois ele se define justamente como o governo do “homem comum”, do sujeito simples que está junto ao povo contra todos os intelectuais. Juntam-se a ele pessoas simples com baixa informação e ressentidos que fracassaram no circuito escolar (como Weintraub). O fundo do populismo (“a elite são os sofisticados, não os ricos”) segue a todo vapor.

Mas será que em condições como as nossas eles conseguirão superar a suprema fragilidade do populismo, que é exatamente se conectar mais aos afetos e com isso produzir frustração quando a realidade começa a pedir a conta?
Não conseguir colocar QUALQUER nome decente em Ministérios-chave como Saúde e Educação, deixar a cargo de charlatões Economia ou Ciência e Tecnologia e colocar inimigos das próprias pastas em Meio Ambiente, Direitos Humanos e Relações Internacionais pode cobrar o preço no “Real”, quando efetivamente um sistema e uma coordenação são necessários. Os militares estão quebrando o galho, mas já estão mostrando, como no caso da Saúde, que não seguram a barra sozinhos.

Até quando a bolha bolsonarista seguirá inflada nos seus 30% diante do despedaçamento da realidade — com a inflação de mortos pela pandemia ou a quebra da economia — e totalmente concentrada na simulação de realidade fabricada com memes e mentiras no WhatsApp?

A ver. O Brasil hoje é um exercício de delírio situado.

Por Moysés Pinto Neto, Doutor em Filosofia pela PUC-RS e professor na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).

(*) O guedismo também é um populismo. O populismo-coach: você também pode ser rico, os bancos e o Estado são ladrões. Vem pro mercado de ações conosco e aprenda a se tornar milionário.

(**) Teresa Cristina, da Agricultura, e Tarsicio, da infraestrutura, são as exceções, o “peixe fora d’água”.