Boulos quer ser o Pablo Iglesias (Podemos) e Tsipras (Syriza) do Brasil

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Guilherme Boulos representa a chegada do populismo no PSOL como repetição periférica de Pablo Iglesias do Podemos espanhol e Aléxis Tsipras do Syriza na Grécia.

Boulos é um professor e psicanalista de classe média alta, filho de médicos, que desde muito cedo caiu de cabeça na militância política mais apaixonada ao ir morar em ocupações de luta por moradia. Rapidamente ele se tornou um líder natural do MTST e ganhou notoriedade após a “Revolução Colorida” ou “Primavera Brasileira” de Junho de 2013 e os movimentos subsequentes de desestabilização do governo Dilma como o “Não Vai Ter Copa”.

Assim como Pablo Iglesias, o professor universitário espanhol líder do Podemos, e Aléxis Tsipras, o engenheiro e urbanista grego líder do Syriza, Boulos não é um “homem do povo” mas é dedicado a ele.

O Podemos e o Syriza são movimentos frentistas que reuniram diversos setores da esquerda de seus países que não suportavam mais a esquerda submissa ao Banco Central Europeu (controlado pela Alemanha) e gestora do neoliberalismo. Seu método de organização e sua linguagem tem sido caracterizados pelo conceito de populismo por diversos pensadores importantes como a belga Chantal Mouffe, uma das referências nesse assunto ao lado de seu falecido companheiro argentino, Ernesto Laclau.

Vale a pena uma conceituação do assunto. Segundo Laclau, o populismo não é uma forma de “enganar o povo” como comumente é usado, principalmente no Brasil hegemonizado pelo pensamento uspiano. O populismo é, na verdade, a expressão da organização do povo, da participação efetiva das classes subalternas na política, disputando a hegemonia com as oligarquias da classe dominante:

“O populismo não é, em consequência, expressão do atraso ideológico de uma classe dominada mas, ao contrário, uma expressão do momento em que o poder articulatório desta classe se impõe hegemonicamente sobre o resto da sociedade. Este é o primeiro momento da dialética entre povo e classes: As classes não podem afirmar sua hegemonia sem articular o povo a seu discurso; e a forma específica dessa articulação, no caso de uma classe que, para afirmar sua hegemonia, tem de entrar em confronto com o bloco de poder em seu conjunto, será o populismo.” (LACLAU, Ernesto. Política e Ideologia na Teoria Marxista: Capitalismo, Fascismo e Populismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 201.)

Diversas outras obras de Laclau podem ser citadas, principalmente A Razão Populista que trata inclusive das dimensões psicanalíticas do populismo, ou seja, dos impulsos libidinais que movimentam a política. Inclusive vale a pena ler as críticas de Vladimir Safatle à tese populista de Laclau em O Circuito dos Afetos ou mesmo de Slavoj Zizek em Em defesa das causas perdidas. Mas quero chamar atenção de aspectos menos teóricos e mais “empíricos” trazidos por Chantal Mouffe em Por Um Populismo de Esquerda.

A teórica belga traz as experiências de Jeremy Corbyn na tentativa de disputar o controle do Partido Trabalhista inglês, de Pablo Iglesias e do Podemos de chegar ao poder sem se submeter, ou pelo menos negociando em melhores termos, ao PSOE; e do Syriza de tentar governar uma pequenina república da União Europeia sem soberania monetária.

Mouffe aponta que o populismo de direita está mais adiantado na Europa, mas que a esquerda começa a acordar para essa estratégia no sentido de superar o que ela chama de “pós-política”, momento histórico no qual a esquerda inteira (PSOE na Espanha, Partido Socialista na França, Partido Trabalhista na Inglaterra, Social Democracia na Alemanha, etc.) se submeteram ao neoliberalismo e abandonaram os interesses concretos, e os métodos discursivos, do povo para aplicar ajustes fiscais e manter a estabilidade do Euro dominado pelo neoimperialismo financista da Alemanha.

Os alemães, altamente industrializados, submetem toda a Europa ao ajuste fiscal (Estado de ‘consolidação’ orçamentária na explicação de Wolfgang Streeck em Tempo Comprado). A submissão da esquerda à essa hegemonia alemã e neoliberal é que permitiu que fosse a direita que galvanizasse as insatisfações e os interesses concretos da classe trabalhadora, utilizando seus discursos xenófobos, racistas, machistas e homofóbicos, para mobilizar o “homem comum”.

Aliás, é bom lembrar que Mouffe e Laclau avisaram ainda nos anos 1980 em Hegemonia e Estratégia Socialista que as pautas identitárias pós-Maio de 1968 não poderiam ser ignoradas. O identitarismo da extrema-direita voltou com tudo a partir das crises do neoliberalismo com as vitórias de Trump, Boris Johnson, Viktor Orbán, e Bolsonaro. Todos esses chegaram ao poder como representantes discursivos do “homem comum”, pobre, trabalhador, desempregado e com seus direitos sociais sendo paulatinamente retirados. Ou seja, esses líderes carismáticos riscaram uma linha no chão e criaram uma fronteira política entre nós (o povo liderado por reacionários identificados com o “homem comum”) e eles (as oligarquias do globalismo financista progressista)!

Desse modo, as questões de identidade precisam ser incorporadas no discurso populista de esquerda para unificar os interesses econômicos ao combate às violências sociais de outros tipos, no entanto, sem degenerar naquilo que Nancy Fraser tem chamado de “neoliberalismo progressista”. É preciso, portanto, criar uma nova fronteira política! Nós (o povo e seus líderes de esquerda em diálogo tolerante com a cultura popular) e eles (as oligarquias financeiras e seus representantes, inclusive identitários e neoliberais-progressistas!). Aliás, nesse sentido, deve ser exaltada a iniciativa de criação da Frente Nacional Antirracista, cujo lema é “sem preto, não tem desenvolvimento”.

Ok, feita a digressão teórica, voltamos a Boulos. O radical professor, filho de médicos, e líder dos sem-teto, entrou para o PSOL às vésperas de 2018 para ser candidato a presidente, e teve um desempenho pífio. Mesmo assim, Boulos se consolidou como quadro “popular” do partido, apesar da ausência de votos entre os pobres. Ele buscou se “popularizar” dando boa noite ao ex-presidente Lula durante os debates na televisão. Porém, o lulismo é um fenômeno populista que não pode ser capitalizado por Boulos apenas no oportunismo discursivo.

O lulismo depende tanto da incrível e irreprodutível capacidade discursiva do presidente-operário como do orçamento público, ou seja, do que Lula realmente entregou para as camadas paupérrimas da população. O lulismo hoje está sendo surrupiado não pelo “boulismo” de classe média, mas pelo bolsonarismo, do “Lula de direita”, o homem comum que chegou ao poder “lutando contra as oligarquias” e entregando direitos sociais concretos para o povo, ainda que muito pequenos, como o auxílio emergencial durante a pandemia de covid-19.

Pois bem, o que resta a Boulos? Ser um “populista de classe média”, assim como seus correlatos europeus, principalmente na Espanha e Grécia? Na minha opinião, Corbyn não poderia ser comparado com Boulos, por se tratar de um quadro realmente ligado à classe operária inglesa, que tentou, sem sucesso, recuperar o velho trabalhismo que foi dizimado durante as greves de mineiros reprimidas nos anos 1980 pela Dama de Ferro, Margaret Thatcher, e enterrado pelo trabalhista neoliberal Tony Blair. Já Iglesias e Tsipras são bastante parecidos com Boulos. Jovens de classe média desiludidos com a esquerda neoliberal. Porém, com uma pequena diferença, eles são residentes da Europa, no centro do capitalismo, e Boulos, mora no Campo Limpo em São Paulo no Brasil, a periferia subdesenvolvida.

Boulos lidera os sem-teto, mas o “populismo” do PSOL tem um teto bastante baixo, a classe média cosmopolita das grandes cidades. O desempenho de Boulos na eleição municipal de 2020 em São Paulo mostrou o crescimento dele no eleitorado petista de classe média. O povo pobre petista do fundão da Zona Sul votou em Jilmar Tatto, ou em Bruno Covas com apoio de Marta Suplicy, essa sim, uma líder populista paulistana pelo que entregou para as periferias da capital paulista.

Pois bem. É bastante duro para Boulos conseguir furar esse teto de classe média em um partido dominado por interesses corporativos e identitários como o PSOL. Lula já o convidou para se filiar ao PT, mas apesar de querer ser o herdeiro do populismo lulista, Boulos não pretende se submeter a ser um poste de Lula como o uspiano Fernando Haddad.

Por outro lado, Ciro Gomes, esse também, um líder populista de verdade do Ceará, onde o povo pobre dá hegemonia a seu grupo político há três décadas, vem buscando criar uma nova fronteira política. Mas a risca que Ciro vem tentando fazer no chão não é balizada por interesses corporativos ou identitários, e sim pelas questões centrais do povo brasileiro, a indústria, o emprego, os direitos sociais, e a soberania nacional. E é bom que se faça justiça a Ciro, sem nunca negar a importância das questões de identidade e do combate às opressões. Seu discurso é claro e cristalino: “O problema do Brasil é a desigualdade. E a desigualdade tem classe, gênero, cor e orientação sexual.”. Mesmo assim, Ciro vive sendo caluniado e sua carteirinha de esquerda sendo cassada, mas seu movimento cresce cada vez mais fora do Ceará, e sua turma boa o defende apaixonadamente. Diga-se também, o PDT e o movimento trabalhista brasileiro são, por exemplo, pioneiros da luta contra o racismo, com Brizola, Darcy Ribeiro, Caó, Abdias do Nascimento, etc, portanto, nada mais natural do que retomar essas bandeiras no Projeto Nacional liderado por Ciro.

Um dos debates centrais que Ciro tem conseguido impor na agenda nacional é a questão do desenvolvimento e da industrialização. Os doentes infantis do esquerdismo praticam difamações risíveis do pensamento de Ciro e de sua prática como estadista de alto escalão do Brasil. Uma dessas acusações é a que Ciro conta com uma suposta boa vontade de uma inexistente “burguesia nacional desenvolvimentista”. Isso é puro papo furado. O que Ciro propõe é um Projeto Nacional, que unifique diversas forças políticas, inclusive de centro-direita, do Brasil profundo e real, que dependem do orçamento de um Estado forte, lideradas por ele como presidente da República, detentor dos instrumentos para negociar e impor esse Projeto às elites oligárquicas e imperialistas, como já foi feito no Brasil por Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.

Em um Projeto como esse até mesmo Boulos teria espaço, como representante de crucial pauta popular como a luta pela moradia. Ao contrário do que pensam alguns setores da direita, ou mesmo do cirismo, ou do que desejam seus aliados sectários, Boulos não é um esquerdista inconsequente. Pode até ter cometido graves erros na juventude como ajudar a direita a desestabilizar Dilma, que também não precisava dessa ajuda, tendo em vista a flagrante incompetência da ex-presidente. Mas o que Boulos busca é ser um ator relevante nacionalmente para impor uma agenda de “reformas radicais”, que nada mais são do que direitos sociais básicos como moradia universal.

Diante de tudo isso, é até meio ridículo as disputas travadas nas redes sociais por “intelectuais orgânicos” do PSOL, e do seu principal aliado eleitoral PCB, contra Ciro. Pois, Boulos e o ex-governador do Ceará se dão muito melhor do que supõe essa turma. Aliás, esse papo de “burguesia nacional” era coisa do PCB, diga-se. Essa conversa mole altamente utópica de esperar o apoio de uma “burguesia nacional progressista” foi teorizada na famosa Declaração Sobre a Política do PCB de março de 1958. A Carta de Março é um marco do pensamento comunista brasileiro, e não do pensamento populista e trabalhista encabeçado por Getúlio Vargas, Leonel Brizola, e agora Ciro Gomes. E ainda por cima, ficam caladinhos quando Boulos vai pedir benção ao capital financeiro igualzinho Lula fazia.

Do ponto de vista prático fica até difícil discutir essas questões. Pois o PCB virtualmente não existe mais. Enquanto Luís Carlos Prestes sentava na mesa com Getúlio Vargas e Adhemar de Barros para discutir o futuro do Brasil, alguém imagina que Edmilson Costa senta na mesa com Lula, Gleisi Hoffman, Jaques Wagner, e Haddad do PT, ou com Boulos e Ivan Valente (e seu proxy Juliano Medeiros) do PSOL, ou com Flávio Dino, Manuela D’Ávila e Luciana Santos do PCdoB? A tática ‘revolucionária’ do PCB, que já foi ficar à reboque do reformismo da burguesia nacional, transitou para a ‘resistência pacífica’ à Ditadura Militar, foi dissolvida por Roberto Freire na redemocratização. Após a “reorganização” de 1993-1996, basicamente a linha do PCB é ser linha auxiliar das linhas auxiliares do PT, sem nenhuma influência de massas ou institucional como no passado.

Por outro lado, a chegada do “populismo de classe média” de Boulos ao PSOL é positiva, apesar de insuficiente. Com certeza vai afastar cada vez mais as seitas identitárias e sectárias do comando do partido, ainda que dificilmente o futuro político desejado por Boulos seja possível submetido aos interesses dos caciques regionais do PSOL.

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Por fim, quero recomendar efusivamente o livro Por um Populismo de Esquerda de Chantal Mouffe. Apesar do cuidado de se ler o livro mais como um manifesto, do que como um tratado teórico, como são A Razão Populista; Política e Ideologia na Teoria Marxista: Capitalismo, fascismo e populismo; ou Hegemonia e Estratégia Socialista. Mas é um excelente texto introdutório ao tema, pois resume os conceitos principais e trata da conjuntura europeia dos últimos anos.

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