Governo de rendição: o Brasil e a estratégia de desarmamento industrial

O que vivemos hoje no Brasil certamente não é um evento isolado de todos os demais: i) uma desindustrialização prematura fruto de três décadas de política econômicas neoliberais que buscam mais preservar a credibilidade do "mercado" do que criar empregos de qualidade; ii) o ataque do judiciário aos setores da construção civil, indústria naval, petroquímica etc.; iii) a entrega deliberada de setores estratégicos da economia, como a empresa brasileira Embraer para a norte-americana Boeing; iv) a desistência de fato do programa espacial brasileiro, entregando a Base de Lançamentos de Alcântara aos EUA em troca de um punhado de dólares; v) as menores taxas históricas de investimento...
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Antes do fim da Segunda Guerra Mundial, enquanto já se encaminhava a derrota alemã, veio a público uma iniciativa do então Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Morgenthau Jr., patrocinada pelo presidente Franklin D. Roosevelt, que estava em negociação com o governo britânico de Winston Churchill.

A proposta, chamada de “Plano Morgenthau”, consistia num conjunto de medidas a serem adotadas contra a Alemanha após sua rendição no conflito. O vazamento das discussões, contudo, colocou o governo norte-americano na defensiva, levando o presidente a negar a veracidade do Plano.

A verdade é que se tratava de um projeto tenebroso, não apenas para a Alemanha e os alemães, mas para toda a Europa continental. O que o Plano visava realizar era simples: impedir que a Alemanha se reerguesse e acumulasse forças para lançar uma nova guerra sobre os Aliados, e punir o país pela destruição que fora causada.

Sendo esse o horizonte do governo norte-americano, restava responder: como inviabilizar o progresso de um país inteiro? Ou melhor, como arrebatar de um país com enorme potencial suas possibilidades de desenvolvimento?

Diversos fatores foram elencados, como a desmilitarização e o desmembramento territorial, principalmente onde a geografia oferecesse suas riquezas físicas. Todos, no entanto, secundários. Todos recursos meramente formais.

Que diferença fundamental haveria entre isso e as limitações impostas à Alemanha após o fim da Primeira Guerra Mundial com o Tratado de Versalhes?

Não passou despercebido à Morgenthau Jr. que o núcleo de seu Plano teria que ser a regressão produtiva da economia alemã. Desde que a Alemanha fosse privada de sua estrutura industrial, seria incapaz de acumular recursos suficientes fosse para montar um exército, fosse para desafiar a liderança de um mundo conduzido por seus inimigos.

Estava decidido, portanto, que a Alemanha seria submetida a um radical processo de desindustrialização. O país inteiro seria ruralizado, enquanto seus soldados derrotados serviriam em regimes de trabalho forçado (como de fato ocorreu, até 1947) onde tivessem sido aprisionados.  Não havendo mão-de-obra nem indústria, a Alemanha voltaria a ser o país agrícola dos tempos anteriores a Bismarck.

O Plano Marshall e os rumos do Plano Morgenthau

O que os norte-americanos não perceberam é que a economia alemã, maior potência industrial e comercial do continente Europeu, possuía fortes vínculos com suas economias vizinhas. Os países do leste europeu eram tradicionais vendedores de alimentos, por exemplo, aos compradores alemães, que exportavam suas manufaturas e suas máquinas para a periferia europeia.

A ruralização da Alemanha não apenas agravaria a crise humanitária naquele país, ocasionando possivelmente uma onda migratória num país extremamente populoso, como desorganizaria toda a economia de seus vizinhos.

A fragilidade econômica e social resultante de um processo como esse certamente não beneficiava os Estados Unidos. Atendia, porém, aos anseios da União Soviética, preparada como estava para estender sua influência Europa adentro.

O ano de 1947 foi decisivo para a reversão dessa política aterrorizante que foi o Plano Morgenthau. Entraria em vigor o Plano Marshall.

Poucos se debruçaram com tanto sucesso sobre as políticas de desenvolvimento econômico postas em prática após a Segunda Guerra como o economista norueguês Erik S. Reinert. De acordo com ele:

“Hoje, os políticos abusam do conceito de Plano Marshall, usando-o para descrever qualquer grande transferência de recursos para os países pobres. No entanto, precisamos enfatizar que o cerne do Plano Marshall era a reindustrialização; demanda e oferta de capital, per se, eram secundárias à estratégia principal: desenvolver a vida industrial de uma nação.”

O Plano Marshall, que enterrou o Plano Morgenthau em razão da necessidade de fortalecer os territórios vulneráveis da Europa para evitar uma enorme “sovietização” do continente, atacou o programa de ruralização da Alemanha com um complexo arranjo de iniciativas a favor da reindustrialização alemã, exatamente o que antes se desejava impossibilitar.

Industrialização como guerra e desindustrialização como rendição

Sabemos que o Plano Marshall foi direcionado não apenas para a Alemanha, mas para o conjunto dos países europeus que os EUA pretendiam manter fora da zona de influência da URSS.

Como explica Reinert, seu país, a Noruega, que hoje é exemplo de desenvolvimento e bem-estar para o mundo todo, também foi afetado pelo panorama industrializante do pós-guerra.

Ao contrário dos preceitos liberais que se agarram ao livre mercado, na Noruega, até 1956, era proibido importar roupas! Até 1960, era proibido também importar automóveis para uso particular.

No Brasil, o processo de substituição de importações até hoje é diagnosticado pelos arautos do mercado como um mau exemplo de modelo econômico. Para eles, a economia brasileira herdou da substituição de importações suas características de economia “fechada”, que são incapazes de desenvolver um país.

Não compreendem que não existe desenvolvimento sem indústria, e que a história da industrialização não começou com o livre-comércio britânico do século XIX. Pelo contrário, a industrialização britânica é um ato histórico de agressiva rebeldia e combate ao grilhões da idílica vida rural e do espontaneísmo do mercado.

O Rei Eduardo III, no século XIV, endividou a Inglaterra para conduzir todos os esforços necessários para destruir a indústria têxtil de Flandres, seu grande concorrente.

Esse caso histórico de desindustrialização foi alcançado pelas armas inglesas na batalha de Cansand, em 1337. Os tecelões de Flandres mudaram-se em larga escala para a Inglaterra, que internalizou a indústria de tecidos.

No século XVI, Elisabeth I racionalizou tanto o apoio da Coroa ao desenvolvimento de indústrias estreitamente vinculadas à guerra – a indústria de armamentos e a indústria naval -, como o apoio da Coroa à pirataria que saqueava riquezas rivais em todos os mares.

Quando ocorreu a “Revolução Industrial” do século XVIII, os britânicos já contabilizavam o quinto século de violentas lutas pela internalização industrial: o poder de produzir, em seu próprio território, os bens que necessitavam para gerar mais riqueza, mais bem-estar e mais força para subjugar os adversários. Um verdadeiro esforço secular de armamento industrial.

Desarmamento industrial do Brasil

Já mencionamos cinco países onde as forças nacionais foram às vias de fato contra seus rivais para garantir a soberania de suas indústrias: Holanda, Grã-Bretanha, Estados Unidos, União Soviética e Alemanha.

A Holanda nasceu em luta contra a Espanha. Sua projeção industrial e comercial foi fruto das necessidades dos 80 anos de guerra pela independência contra a Espanha dos Habsburgo entre 1568 e 1648.

A indústria britânica resultou de cinco séculos de lutas contra potências agressoras estrangeiras, assim como de invasões a países vizinhos para forçar-lhes a desindustrialização e de pirataria nos mares para saquear riquezas de seus concorrentes.

A supremacia industrial dos EUA é consequência da defesa de sua soberania contra uma metrópole colonial capitalista sem precedentes na história: a Grã-Bretanha. Se a independência foi alcançada em 1776, não podemos esquecer a constante ameaça sofrida pelos norte-americanos: em 1812 os britânicos invadiram e atearam fogo a Washington D.C., incendiando inclusive o Capitólio e a própria Casa Branca. Sem internalizar a produção de bens necessários para a vida nacional – a indústria – os EUA jamais teriam sido a potência que se tornaram.

A URSS, cuja industrialização acelerada, capaz de alçar um país que vivia sob os resquícios do feudalismo e da servidão à posição de potência militar e espacial num curto período de décadas, ocorreu diante da necessidade de proteger a revolução de 1917 contra agressões das potências anticomunistas.

Não foi diferente com a Alemanha que, como vimos, foi submetida temporariamente a uma intensa desindustrialização no pós-guerra.

O que vivemos hoje no Brasil certamente não é um evento isolado de todos os demais: i) uma desindustrialização prematura fruto de três décadas de política econômicas neoliberais que buscam mais preservar a credibilidade do “mercado” do que criar empregos de qualidade; ii) o ataque do judiciário aos setores da construção civil, indústria naval, petroquímica etc.; iii) a entrega deliberada de setores estratégicos da economia, como a empresa brasileira Embraer para a norte-americana Boeing; iv) a desistência de fato do programa espacial brasileiro, entregando a Base de Lançamentos de Alcântara aos EUA em troca de um punhado de dólares; v) as menores taxas históricas de investimento…

Tal como devastado numa guerra, o Brasil parece aderir a termos de rendição incondicionais. Enquanto isso, o governo agita a bandeira branca e nossos liberais aplaudem o desarmamento industrial como mensageiro da paz.

Aos que acreditam, contudo, que a vocação agrícola é permanente e que o futuro está posto, basta lembrar da reação do marechal Foch diante da assinatura do Tratado de Versalhes: “Isso não é paz. É um armistício de vinte anos.”