Brexit: entenda como a austeridade corroeu a União Europeia

O Brexit não foi a causa, mas a consequência da crise. Certamente, é responsável por transtornar a economia e a política do Reino Unido, levando a crise para fora dos limites dos distritos mais pobres, onde inicialmente se detinha.
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Desde o dia 23 de junho de 2016, data do referendo no Reino Unido acerca da permanência na União Europeia (UE), britânicos, outros europeus e analistas do mundo inteiro tateiam quase às cegas em busca de uma explicação para o resultado: 51,8% dos votos para a opção “Sair”, resultado que convencionou-se chamar de Brexit.

Diversas tentativas de esclarecimento foram levantadas. A questão da imigração, os custos anuais que o Reino Unido dispendia para fazer parte da UE, a restrição da autonomia nacional, entre outras.

É bem possível que diversos votos tenham sido orientados exclusivamente, na prática, pelo medo do “inimigo interno” (os imigrantes de religião muçulmana vindos do Oriente Médio, em sua maioria) motivado pela penetração do discurso de extrema direita.

Tampouco se pode dispensar a instigação por mais autonomia do Reino Unido frente à “Europa” e até mesmo o estímulo de cabeças-de-planilha que em meio à tantas variáveis econômicas enxergavam como prescindíveis os custos anuais do Reino para com a União.

Apesar de verdadeiras (como motivações), nenhuma dessas explicações possibilita um entendimento abrangente do resultado. Exponho brevemente algumas razões.

O terceiro caso mencionado (os custos da participação na União Europeia) não podem tidos como um fator isolado. Torna-se um argumento somente na medida em que o cotidiano da vida social britânica perde qualidade: precarização de empregos, endividamento das famílias, restrição dos espaços públicos, aumento da violência etc.

Sem isso, pouco apelo é transmitido pela afirmação de que fazer parte do mais poderoso bloco regional do planeta é “muito custoso”. Talvez afete alunos em faculdades de economia, mas não cola no imaginário popular.

O primeiro e o segundo casos, sobre a imigração e a autonomia, apontando para a restrição da imigração e para o distanciamento da União Europeia, podem ambos ser vistos pela ótica do nacionalismo de direita que cresceu mundo afora em reação ao prévio domínio da esquerda internacionalista.

O problema é que esse nacionalismo não é o único nacionalismo existente no Reino Unido. Basta observar o maior defensor do interesse nacional britânico no século XX, Winston Churchill, para ver que não havia conflito entre seu nacionalismo e seu europeísmo.

Churchill chegou mesmo a propor a união total entre Grã-Bretanha e França, o que seria para nós, em termos de rivalidade histórica, como se Brasil e Argentina unificassem suas respectivas seleções de futebol.

Há uma largo entendimento no Reino Unido no sentido de afirmar uma identidade europeia, ainda que no momento, em função do Brexit, pareça que o único nacionalismo britânico existente seja o que vê a ilha bem longe do continente.

O que levou, então, à exacerbação dessa reação nacionalista contra a União Europeia? O que potencializou o discurso nacionalista de direita, opondo britânicos contra imigrantes não europeus de origem muçulmana?

Para a realização de um discurso que mobilizou em seu léxico termos como soberania e autonomia, duas transformações foram necessárias.

Um estudo importantíssimo de cerca de 100 páginas sobre o impacto da austeridade econômica no resultado do referendo, publicado no fim de julho pelo economista Thiemo Fetzer, da Universidade de Warwick, apresentou evidências amplas de que o pano de fundo do Brexit foi a política econômica praticada pelo conservadorismo no governo desde 2010.

Vamos a alguns fatos:

  • os gastos governamentais per capita no sistema de proteção e assistência social declinaram em 16%;
  • em nível distrital, entre 2010 e 2015, a retração desses gastos por pessoa foi de 23.4%, em termos reais, afetando principalmente as áreas mais pobres;
  • dados mostram que o apoio ao Ukip (partido eurocético que trabalhou intensamente na campanha do “Sair” durante o referendo) cresceu exatamente nas áreas mais afetadas pelos cortes de gastos.

A primeira transformação necessária, portanto, foi a diminuição da qualidade de vida dos trabalhadores britânicos através de um assalto público ao sistema de bem-estar social praticado através da política de austeridade. Sem os cortes de gastos não haveria tamanho descontentamento com a classe política e a expressão popular obtida no resultado do referendo poderia ser diferente.

A segunda transformação, no entanto, também decorre da austeridade econômica.

Trata-se da imagem sobre a posição do Reino Unido na hierarquia europeia. Se, antes, o Reino era visto como um protagonista na política europeia, não há dúvidas que há anos esse papel passou para a Alemanha.

A revolta contra a classe política britânica, que pode ser vista como uma revolta contra o establishment político, mais fiel ao internacionalismo do mercado do que às condições de vida dos trabalhadores nacionais, voltou-se também contra a União Europeia ao identificar, com razão, a Alemanha de Angela Merkel como campeã do austericídio europeu.

Após 2008, quando começaram a pipocar crises na periferia europeia – a crise grega foi a mais dramática -, Merkel e seus amigos da banca financeira impuseram ajuste fiscal, privatizações, reformas trabalhistas e previdenciárias sem quaisquer limites aos pobres países sufocados pelo espalhamento da crise.

Nem o FMI concordava com o austericídio imposto pela Alemanha, por exemplo, sobre a Grécia. E tanto a Alemanha passou a ser identificada como líder da União Europeia, como a União Europeia passou a ser identificada com a política de austeridade.

Não é de se espantar que os trabalhadores britânicos tenham associado o ajuste fiscal local com o ajuste fiscal regional, e visto a União Europeia e os governos conservadores britânicos como praticantes da mesma receita destruidora da vida social.

Com novas evidências sobre a ligação entre austeridade e o resultado do referendo britânico, fica cada vez mais difícil isentar o neoliberalismo de responsabilidade pela ascensão da extrema direita mundo afora. O que talvez confunda muita gente é que essa fórmula tenha sido aplicada principalmente pela esquerda “progressista”.

No centro do capitalismo, a resposta está sendo foi dada. Novos governos de direita tem assumido, pelo menos em alguma medida, as demandas da classe trabalhadora. Com Trump, por exemplo, há a tentativa de reestabelecer fábricas nos Estados Unidos e devolver os empregos de norte-americanos que hoje estão no sudeste da Ásia.

Recentemente, até mesmo um editorial do Financial Times reconheceu a necessidade de ampliar a presença do Estado na economia e substituir o paradigma econômico atual por um cada vez mais conduzido pelas necessidades de quem trabalha.

Na periferia do capitalismo, como na Argentina e no Brasil, a esquerda progressista foi trocada por uma direita ainda mais neoliberal. Esse processo não pode ser entendido apenas em termos de economia nacional: as finanças globais, sentindo-se ameaçada pelo populismo nos países desenvolvidos, buscam extrair a máxima vantagem dos pontos mais frágeis do sistema: nós.

Para isso, aderem tanto ao bom-mocismo de Mauricio Macri (o João Doria argentino) quanto ao reacionarismo de Jair Bolsonaro, buscando sustentação para o seu projeto de radicalização da drenagem de recursos da periferia internacional. A receita é a mesma: ajuste fiscal, privatizações, reformas degradantes como a trabalhista e a previdenciária etc.

O Brexit não foi a causa, mas a consequência da crise. Certamente, é responsável por transtornar a economia e a política do Reino Unido, levando a crise para fora dos limites dos distritos mais pobres, onde inicialmente se detinha.