Por que a campanha de Martha Rocha ficou marcada pra morrer… na praia?

Vamos ao que interessa: Crivella chegou ao segundo turno. Um recado trágico das urnas cariocas. E por que Martha Rocha não o ultrapassou?
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Marcelo Crivella é, talvez indiscutivelmente, o pior prefeito que o Rio de Janeiro já sofreu. Sim, os que votaram nele podem discordar. Tudo bem, podemos discordar sem discutir. Vamos ao que interessa: Crivella chegou ao segundo turno. Um recado trágico das urnas cariocas. E por que Martha Rocha não o ultrapassou?

Façamos um retrospecto. Quem primeiro estragou as chances quase certas de tirar o Crivella do horizonte foi o PSOL. Era claro, desde 2018, que Freixo deveria disputar. O PSOL tem a maior bancada da esquerda no Estado; tem recall; Freixo foi, nas últimas duas eleições, o segundo prefeitável mais votado na capital; e fez isso sem depender de coligações abusivas pra ganhar o eleitor. O básico já tinha. Outros partidos com possíveis afinidades ideológicas, como o PDT, deveriam entender esse equilíbrio de forças locais, e reforçar a candidatura de Freixo, o que até ‘desradicalizaria’ a sua figura. Seria talvez uma concertação improvável, pela própria dinâmica interna de ambos os partidos. Tampouco foi o caminho que o PSOL tomou, em respeito a suas divisões e correntes. A aguerrida deputada Renata Souza pega o bastão psolista na disputa.

Freixo venceria o Eduardo Paes neste ano? Acredito que não, ninguém venceria (nem vencerá), por isso o ganho político não se limita a essa questão. A realidade é outra. Vamos ao Plano B: uma candidatura de centro-esquerda ganhar corpo, desmontar Crivella, numa só pancada, e as forças antagônicas que ele representa (o bolsopentecostalismo). O ganho de momentum para esse feito não seria desprezível.

Alguém com mais estrutura por trás preencheria esse vácuo de esquerda/centro-esquerda? Restou aos trabalhistas voltarem a buscar um protagonismo na cidade. As chances eram reais. Infelizmente, uma série de erros estratégicos na campanha os colocou mais longe do páreo.
Começou errando no logotipo da campanha, um distintivo policial. Uma carteirada no eleitor. Erro feio. Entende-se o apelo que figuras de autoridade têm recebido ultimamente, desde que houve também uma intervenção militar bufônica no Rio, ainda na época de Temer. Nada disso gerou satisfação, e muito menos resultados à população. Witzel, o juiz que mandava atirar na cabecinha, foi um grande fiasco no governo estadual, e hoje se defende de um impeachment. Traumas que vêm desgastando esse tipo de representação. Há também uma percepção subestimada entre os políticos, principalmente os de nicho conservador, da rejeição à polícia numa cidade tão violenta, mesmo que algumas pesquisas recentes a atestem. Sim, Martha Rocha poderia e deveria se apresentar como é, delegada, ainda se ganha voto e respeito, mas ele não se generaliza. Essa imagem precisa de contrapeso, e não de ênfase. Você deve levantar pontos fortes, como suavizar os fracos.

Não foi um erro apenas em relação à população em geral, mas à própria posição que o partido pretendia ocupar. Se é pra ser de centro-esquerda, não pode gerar uma rejeição incontornável a muitos eleitores desse espectro político, ainda mais se depende de voto útil no campo. Mirou o centro político, como se pudesse prescindir dessa outra parcela ideológica importante, mesmo que esteja em baixa (e nem tanto, já que o ‘extremista’ PSOL anda muito melhor que o PDT em termos de voto local faz um bom tempo). O centro é mais volúvel e dividido, em fidelidade política e representação populacional, do que se pensa. Martha Rocha precisava de cada eleitor, e, pra atrair voto útil da esquerda, precisaria ter se apresentado a ela melhor do que fez. O logotipo de distintivo policial, a carteirada, foi apenas um dado mais visível dessa insensibilidade. O papel dela, como Chefe da Polícia Civil, na repressão às Jornadas de Julho, por exemplo, foi amplamente espalhado nos meios de esquerda, sem resposta adequada.

Outro ponto ignorado, que também significava abarcar o imaginário do eleitor à esquerda: Crivella nacionalizou cada vez mais intensamente a campanha, transformando sua candidatura numa questão de honra pros bolsonaristas (e os bolsopentecostais). Aleluia aqui, Bolsonaro acolá, como se não tivesse contas a prestar pela gestão catastrófica. E por que não derreteu como Russomano, em São Paulo, que tentou essa via logo no início? Por tantas razões: Crivella possui a máquina da capital fluminense na mão (olá, Guardiões…); não é uma criatura midiática ao vento, fez carreira política significativa ao longo dos anos; assegura uma fidelidade sócio-religiosa forte entre evangélicos, que somam cerca de 30% da população; Bolsonaro não brigou com a vacina comprada pelo Rio, mas por SP; e, não menos importante, RJ é o berço do bolsonarismo, onde ainda goza de adesão acrítica.

Mais uma vez, a esquerda carioca também não viu de Martha Rocha uma resposta explícita a esse apoio do Presidente. Benedita nem sequer precisava, é do PT (e por isso mesmo cresceu no final, do eleitor reativo). Martha não nacionalizou a campanha, manteve-se propositiva, OK, pois estava dando certo, mas não soube escalar no discurso do Crivella quando foi necessário. Isso a ajudaria na migração de votos à esquerda pra ela. Poderia ter desidratado naturalmente Benedita, se fosse menos fechada, e ao menos ganhado a confiança do campo, mantendo um centro que já repudiava Bolsonaro e Crivella. Poderia até mesmo reunir votos de antibolsonaristas à direita, liberais, e que ela não convencia, por outras razões. Infelizmente, a virada de estratégia não foi percebida no tempo certo. Campanha curta se perde numa curva mal feita e freadas fora de hora.

Nada do que se chama a atenção aqui garantiria um segundo turno, é apenas o mínimo que deveria ter sido olhado. Falhando ao mínimo, a derrocada é quase certa. Um melhor desempenho, daria ao próprio PDT um espaço maior no vácuo que se formou com a saída de Freixo. A marquetagem, no geral, foi muito bem formatada, Martha Rocha apresentou-se condignamente. Há muito tempo os pedetistas não mostravam capacidade de estruturar campanhas competitivas no Rio, seja por falta de dinheiro, seja por ter perdido o bonde das mudanças comunicacionais, e da própria linguagem política. Essa campanha de 2020 foi um salto à frente, qualitativo. Infelizmente, apesar das virtudes, errou em pontos críticos, táticos e estratégicos, e o partido ainda tem muito chão pra se viabilizar como protagonista. E não foi culpa do PT.