O governo federal colocou no ar a nova identidade estudantil. Será digital, um aplicativo que pode ser baixado pelo celular. A Globo fez questão de exibir a “novidade” comparando com a “antiga” carteirinha da UNE. A nova identidade estudantil, gratuita. A da UNE, 35 reais mais o frete.
Quando sai da presidência da UNE no final do século passado, deixei uma opinião escrita com meus dirigentes políticos. Defendia que a carteira estudantil fosse gratuita e universal. A ideia foi tratada como fora da realidade e excêntrica.
Na república estudantil onde morávamos em São Paulo, encontrei numa estante – certamente esquecido pelo proprietário do apartamento alugado – o livro “A Estrada do Futuro”, de Bill Gates. No livro, o bilionário contava como desbancou a IBM transformando o sistema operacional da Microsoft no padrão mundial.
Sua visão foi simples. Imaginou todos tendo um computador em casa, e usando seus softwares. Para a época, parecia fora da realidade. Ele buscou algo simples, capaz de fazer qualquer pessoa mexer num computador.
Sabia que seria pirateado? Claro, e talvez até desejasse isso. Quanto mais cópias espalhadas, melhor. Vislumbrou ser a ferramenta para uma mudança cultural profunda. Virar o padrão mundial era seu objetivo estratégico.
Se todos no mundo estivessem em plataformas de sua empresa, seu poder seria infinito.
A leitura mexeu com minha cabeça. A analogia com nossa carteirinha foi instantânea. Tínhamos o mais precioso, leis definindo que nossa carteira era o padrão, a chave para acessar um direito. E cobrávamos por ela?
Como seria se todos tivessem gratuitamente a carteira estudantil? A UNE teria os dados de milhões de estudantes brasileiros! Emails, telefones, perfil acadêmico e socioeconômico, conheceria suas preferências e uma série de informações ilimitadas! Poderia falar com todos com apenas um clique! Um comício para milhões com um simples aperto de botão!
Quem financiaria a carteira? Quem manteria a entidade? Qual o valor destes dados? A UNE iria vendê-los? Claro que não! Quanto vale um anúncio num portal acessado por milhares de universitários? Um portal com informações, serviços, grupos de estudo. Já imaginou cada estudante com seu email oficial [email protected] ?
Qual o poder de compras coletivas de milhares de universitários? Baixaria os preços? A UNE seria força política com um clique, pressão sobre o mercado com uma série de aplicações e possibilidades de receita inesgotáveis, com outro.
Hoje fiquei triste vendo a UNE ser atropelada por um governo de extrema-direita.
O “atropelamento” deveria servir de lição para todas as organizações populares. O mundo está mudando radicalmente. A mais radical revolução tecnológica de todos os tempos está alterando profundamente as relações sociais e as formas de poder e comunicação.
Como disse o visionário McLuhan, “o meio é a mensagem”. Os paradigmas estão desmoronando. E estamos só no começo.
Por Ricardo Cappelli