Chamar Ciro Gomes de coronel é puro preconceito contra o nordeste

Ciro Gomes é um coronel moderno?

A ascensão de Ciro Gomes como candidato presidenciável no campo da centro-esquerda nas últimas eleições tem gerado diversas polêmicas. Entre elas, a utilização do termo “coronelismo” para caracterizar criticamente a força política da família Ferreira Gomes no Ceará nas últimas décadas.

O conceito de coronelismo foi consagrado na obra “Coronelismo, Enxada e Voto” de Victor Nunes Leal, publicada em 1948. De maneira geral, esse termo caracteriza a estrutura política da República Velha (1889-1930), marcada pela hegemonia das oligarquias dos donos de terra e do título de “coronel”, obtido em alguns casos pelos mais proeminentes latifundiários. Na verdade, o termo é mais informal do que um título oficial, mas condensa um efetivo poder social de classe.

No primeiro período republicano do Brasil, apesar da abolição do voto censitário pela Constituição de 1891, os setores oligárquicos continuaram protagonizando a política devido à proibição do voto de mulheres e dos analfabetos. Mas, além disso, no campo, o poder dos fazendeiros consistia no controle direto das eleições através do “voto de cabresto”. A população, submetida ao jugo do coronel, devia votar conforme a sua vontade, pois o voto não era secreto. A propriedade da terra e a miséria rural criavam uma situação de poder tradicional pré-capitalista e hereditário, a isso se dá o nome de coronelismo:

Dentro da esfera própria de influência, o “coronel” como que resume em sua pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais. (…) Essa ascendência resulta muito naturalmente da sua qualidade de proprietário rural. A massa humana que tira a subsistência das suas terras vive no mais lamentável estado de pobreza, ignorância e abandono. Diante dela, o “coronel” é rico. (…) É, pois, para o próprio “coronel” que o roceiro apela nos momentos de apertura, comprando fiado em seu armazém para pagar a colheita, ou pedindo dinheiro, nas mesmas condições, para outras necessidades. (…) Completamente analfabeto, ou quase, sem assistência médica, não lendo jornais nem revistas, nas quais se limita a ver as figuras, o trabalhador rural, a não ser em casos esporádicos, tem o patrão na conta de benfeitor. E é dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece. Em sua situação, seria ilusório pretender que esse novo pária tivesse consciência do seu direito a uma vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico é o que presenciamos: no plano político, ele luta com o “coronel” e pelo “coronel”. Aí estão os votos de cabresto, que resultam, em grande parte, da nossa organização econômica rural.”[1]

O fim da República Velha se dá com a Revolução de 1930 liderada por Getúlio Vargas contra o poder das oligarquias até então dominantes, São Paulo e Minas Gerais. A Revolução de Getúlio é tida como o início do período que se convencionou chamar “nacional-desenvolvimentismo”, e foi aprofundada de forma mais organizada por Juscelino Kubistchek e durou aproximadamente até a década de 1980. Basicamente, pode-se dizer que o desenvolvimentismo se caracterizou por um projeto nacional de desenvolvimento cujo objetivo central era a industrialização, e tem como consequências a urbanização e o crescimento de uma grande massa de trabalhadores urbanos. A configuração de poder se altera profundamente com a presença do sindicalismo e de sua representação política organizada em torno do trabalhismo, do populismo e do corporativismo estatal.

Assim sendo, é possível dizer que as estruturas de poder calcadas na propriedade da terra, e no domínio político rural tradicional, opõem-se frontalmente ao projeto político nacional-desenvolvimentista baseado na indústria e nos trabalhadores urbanos. Ciro Gomes defende abertamente a formulação de um projeto nacional de desenvolvimento, com amplo planejamento estatal em busca de industrialização e ampliação dos direitos dos trabalhadores.

Porém, seus críticos à esquerda o acusam de ser um representante do “coronelismo” do Nordeste, e isso supostamente se daria porque sua família ocupa diversos cargos políticos no Estado do Ceará. Ciro foi Governador, seu irmão Cid Gomes também, e seu outro irmão Ivo Gomes é Prefeito de Sobral, cidade de origem e reduto eleitoral dos Ferreira Gomes. Além disso, o Governador até 2022, Camilo Santana, foi eleito com o apoio de Ciro, bem como o Prefeito de Fortaleza até 2020, Roberto Cláudio.

Segundo essa crítica, o poder “tradicional” dos irmãos Ferreira Gomes remontaria ao pai deles, José Euclides Ferreira Gomes, que foi Prefeito de Sobral na passagem dos anos 1970/80. No entanto, as contradições conceituais logo ficam evidentes. José Euclides era um funcionário público e não proprietário de terras, ou de meios de comunicações ou qualquer capital econômico que lhe desse a proeminência social característica do coronelismo. Para julgar com honestidade se seria possível caracterizar Ciro Gomes como representante de um suposto “coronelismo moderno”, é preciso analisar sua trajetória e as propostas políticas defendidas por ele.

Ciro ajudou a fundar o PSDB, que no Ceará representava setores intelectuais e empresariais urbanos, e, nas eleições presidenciais de 1989, primeira eleição direta pós-Ditadura, Ciro apoiou Mário Covas do PSDB no primeiro turno e Lula do PT no segundo turno contra Collor.  Já em 1988 é eleito Prefeito de Fortaleza. Tem uma passagem de muito sucesso pela capital cearense, tendo sido considerado pelo instituto de pesquisa da Folha de São Paulo o prefeito mais popular do Brasil. Em seguida, em 1990, ganha a eleição para o Governo do Estado contra Paulo Lustosa do PFL (herdeiro da ARENA da Ditadura e atual DEM), sendo o primeiro governador eleito pelo PSDB, e novamente é considerado o governador mais popular do Brasil.

No governo do Ceará, Ciro colocou em prática medidas modernizantes para o Estado como, por exemplo, investimentos profundos na educação pública: atualmente, o Ceará é o Estado brasileiro com o melhor desempenho no Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico (IDEB), tendo 77 das 100 melhores escolas do Brasil. Além de diversas outras medidas, como o saneamento fiscal do Estado sem cortes de salários e sem nenhum dia de greve do funcionalismo. Ademais, Ciro foi o primeiro e único Governador (e Prefeito de capital também) a dar paridade total de gênero a seu secretariado de primeiro escalão.

Em 1995, após ter sido Ministro da Fazenda de Itamar Franco e ajudar a implementar o Plano Real, Ciro rompe com seu partido, o PSDB, que foi vitorioso na eleição presidencial, e se recusa a continuar Ministro por discordar da política econômica conservadora realizada pelo Presidente recém-eleito Fernando Henrique Cardoso. Em seguida, parte para uma jornada de estudos em Harvard com o filósofo Roberto Mangabeira Unger, arriscando colocar em risco sua carreira política ao se ausentar do País e da vida pública. Ciro volta ao Brasil dois anos depois para concorrer à Presidência da República em 1998 contra seus ex-aliados tucanos que, segundo ele, aderiram completamente ao neoliberalismo e abandonaram o programa social-democrata do início do partido.

Ciro Gomes e Leonel Brizola

As três candidaturas de Ciro à Presidência foram marcadas por um programa claramente desenvolvimentista, focado na industrialização, ampliação dos direitos sociais, distribuição de renda e modernização da educação pública. Leonel Brizola do PDT foi um dos maiores entusiastas da candidatura de Ciro, apoiando-o em 2002. Brizola se aproximou de Ciro pela afinidade histórica com a tradição nacional-desenvolvimentista e trabalhista representada por Getúlio Vargas e João Goulart: na campanha de 2002 a coligação de Ciro com o PDT de Brizola chamava-se “Frente Trabalhista”.

Pode-se concordar ou não com o projeto que Ciro Gomes apresenta como alternativa para o Brasil, no entanto, é preciso analisar corretamente o significado de sua biografia, sua participação como gestor público, e as ideias que defende, para julgá-lo pelo que realmente é, ainda que para se opor, mas não com base em preconceitos e conceitos sociológicos usados de forma distorcida como meros adjetivos não-históricos.

O programa que Ciro defende é focado no desenvolvimento industrial e nos direitos sociais em oposição à dominação financeira. A coerência desse discurso é em alguma medida comprovada pelos avanços modernizantes e a consequente hegemonia de seu grupo político no Ceará. Hegemonia essa, sempre conquistada através do sistema eleitoral pós-redemocratização, com grande popularidade em estratos urbanos e organizados da sociedade cearense. O coronelismo continua existindo no interior do Brasil ou mesmo nas regiões pobres das grandes cidades, mas sua característica é a opulência do poder econômico sobre uma população que não tem sequer o que comer.

Ciro Gomes e sua família não são proprietários de terras, não possuem meios de comunicação que possam usar para manipular a opinião pública regional a seu favor, e muito menos tem poder de coerção sobre o sistema eleitoral como na época histórica do coronelismo. Dessa forma, colocar o rótulo de “coronel” em Ciro Gomes é apenas uma adjetivação vazia de conteúdo histórico e analítico.

Na verdade, é bem possível que esse tipo de acusação seja expressão dos próprios preconceitos de setores da esquerda em relação ao surgimento de uma liderança desenvolvimentista bastante popular em sua região e que apresente um claro Projeto Nacional para o Brasil, algo que tanto tem faltado ao campo político progressista brasileiro.

Curiosamente outros adversários como o PSDB paulista, que governa o Estado há quase três décadas, não são chamados de oligarquia, tampouco o ex-Governador de Minas Gerais, Aécio Neves, nunca foi chamado de coronel, apesar das inúmeras denúncias de censura à imprensa local e realização de obras públicas em propriedades particulares de sua família.

Na esquerda brasileira, o campo político que historicamente combate o preconceito e a opressão, permanece a discriminação com os nordestinos através de estereótipos anacrônicos baseados em uma visão liberal da política.

Referências

Referências
1 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 45-47.
Sair da versão mobile