Ciro Gomes e o populismo

Ciro Gomes em debate na UNE
Ciro Gomes em debate na UNE
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A confusão conceitual nos discursos políticos cotidianos acarreta a perda de significado histórico de conceitos importantes da ciência política como o populismo. Esse é o caso das acusações feitas contra Ciro Gomes de ser populista e autoritário, sem levar em conta as especificidades teóricas necessárias para a utilização desses termos.

O fim da República Velha com a Revolução de 1930 marca a crise do coronelismo (conceito discutido em texto anterior), ou seja, do poder político derivado da relação entre a miséria do povo e a opulência dos latifundiários do mundo rural. O período desenvolvimentista que veio em seguida gerou uma profunda urbanização e desarticulação do poder tradicional. Um dos novos pilares do poder político passa a ser a massa de trabalhadores urbanos que já não podem ser controlados na base da coerção direta apenas, mas numa nova forma de hegemonia política em geral chamada de populismo.

O conceito de populismo pode ser resumido como o estabelecimento de uma relação direta do líder político com a população, sem a mediação das instituições representativas tradicionais como os partidos, e focada na defesa de interesses difusos do “povo” como unidade abstrata. De fato, a hegemonia política movida por meio da abstração totalizante do “povo” através de um líder carismático pode, inclusive, obscurecer as divisões de classe da sociedade. Mas as principais críticas vulgares ao populismo são no sentido de apontar a manipulação da massa pobre e ignorante que não consegue se organizar por si própria, pois o sentido da prática populista é justamente mobilizar os setores subalternos da sociedade.

Ora, se as classes baixas não conseguem se organizar por que dominadas são, não é razoável supor que os sistemas representativos tradicionais serão capazes de incorporar as demandas reais dessas classes. O poder político das classes dominantes, portanto, baseia-se numa forma específica de interpelação da população também como “povo” em abstrato, mas, ao contrário do populismo, o seu sentido é o de neutralizá-lo e não incorporá-lo através de suas demandas. Dessa forma, o populismo aparece como a forma da luta política de setores sociais dominados em busca de hegemonia contra um bloco de poder, e que, para tanto, devem buscar a articulação de seu discurso enquanto povo, como explica Ernesto Laclau:

“O populismo não é, em consequência, expressão do atraso ideológico de uma classe dominada mas, ao contrário, uma expressão do momento em que o poder articulatório desta classe se impõe hegemonicamente sobre o resto da sociedade. Este é o primeiro momento da dialética entre povo e classes: As classes não podem afirmar sua hegemonia sem articular o povo a seu discurso; e a forma específica dessa articulação, no caso de uma classe que, para afirmar sua hegemonia, tem de entrar em confronto com o bloco de poder em seu conjunto, será o populismo.”[1]

Não por acaso, o fenômeno do populismo aparece na América Latina em confronto justamente com o coronelismo oligárquico internamente e o imperialismo externamente, ou seja, contra o “bloco no poder”. Getúlio Vargas deu início, no Brasil, ao paradigma político que se baseava na relação carismática direta do líder com as massas. Não obstante fosse necessária muita habilidade nas negociações com os setores econômicos e militares, a questão central do populismo é justamente a “popularidade” do Presidente da República, a qual permitia que ele centralizasse as decisões e mantivesse um equilíbrio social-militar relativamente duradouro. No limite, o populismo é menos uma manipulação do que uma inédita e efetiva participação popular na política.

Primeiro de Maio de 1943: Getúlio assinou a CLT perante 40 mil pessoas no Estádio São Januário no Rio de Janeiro.
Getúlio Vargas no Primeiro de Maio, dia do trabalhador.

Por outro lado, Getúlio Vargas foi uma figura extremamente autoritária. Sua revolução foi um golpe de força de oligarquias dissidentes em aliança com o tenentismo que ascendeu como setor médio na década de 20, e governou pelos primeiros 15 anos sem democracia, mas o contexto mundial nos anos 30 foi de centralização e concentração do poder político.

É nessa época que ascendem ao poder os fascistas Mussolini na Itália e Hitler na Alemanha. Na União Soviética, o recrudescimento repressivo se dá justamente na década de 30 com os grandes expurgos de Stálin. Até mesmo nos EUA a centralização é evidente com o presidente Franklin D. Roosevelt, que governa com punhos de ferro por 12 anos, ou seja, por três mandatos consecutivos, pois à época não existia limites para reeleição. Além disso, foi Roosevelt que consolidou o FBI como instituição central de controle social nos EUA sob o comando de J. Edgar Hoover, sem deixar nada a desejar à Gestapo ou à KGB, como polícia política que perseguiu desde grupos radicais como o Partido dos Panteras Negras, lideranças como Malcolm-X e Martin Luther King, até meros artistas e cineastas de esquerda como Dalton Trumbo.

Juscelino Kubistchek foi o segundo e talvez o mais bem sucedido presidente do período que chamamos nacional-desenvolvimentismo. No entanto, Juscelino chegou ao poder eleito, e governou com imensas dificuldades, com duas tentativas de golpe militares, hostilidades diplomáticas e econômicas dos EUA, um Congresso com poderosa oposição liderada por Carlos Lacerda e a UDN, mas com carisma, popularidade e habilidade iguais, ou superiores, às de Getúlio. Ele também pode ser caracterizado como populista por articular forças nacional-populares em franca oposição a interesses dominantes do imperialismo e por interpelar, de forma magistral, diretamente o povo, além de ter conduzido um governo definitivamente democrático.

Assim sendo, o autoritarismo é uma categoria conceitual mais ampla, que pode ser aplicada a diversos períodos da história do Brasil. Em relação ao coronelismo seria correto dizer que é um sistema político indiscutivelmente autoritário, já que o próprio sistema eleitoral está baseado no poder coercivo que os fazendeiros-coronéis detinham sobre as populações submetidas à miséria rural na passagem do século XIX para o XX. Mas a análise do populismo é mais complexa nesse sentido.

Se por um lado Getúlio foi um líder ao mesmo tempo carismático e autoritário, que atendia aos anseios de suas bases populares, mas que perseguia seus opositores, Juscelino era um democrata até as últimas consequências. Conciliador por excelência, JK procurava obter os resultados de que necessitava sempre através do diálogo com a oposição. Mas até Getúlio governou com democracia em sua segunda presidência, de 1951 a 1954, e não chegou a terminar seu mandato, pois se suicidou durante a tentativa de golpe que sofreu.

Juscelino Kubitschek na construção de Brasília.
Juscelino na campanha presidencial.

Dessa forma, o autoritarismo não pode ser tido como uma constante nem do populismo e nem do desenvolvimentismo. Efetivamente, o que botou fim à política populista foi a Ditadura Militar com o Golpe de 1964, mas que continuou na maior parte do tempo com uma política desenvolvimentista autoritária e concentradora de renda.

Essa tipologia conceitual, quase weberiana, de “tipos ideais”, como “populista autoritário x populista democrático” ambos em oposição ao “coronelismo autoritário”, não pode ser tida como absoluta. Serve apenas para balizar tendências e características decisivas da origem e sentido dos fluxos de poder. O próprio conceito de autoritarismo é bastante equívoco quando se pensa no funcionamento do que chamamos de Estado Democrático de Direito que na prática está mais para Estado de Exceção Permanente.

A própria forma estatal é caracterizada pela violência, seja para garantir privilégios de grupos dominantes, ou para garantir o funcionamento das trocas de mercadoria e da propriedade privada. O poder de polícia, ou o “monopólio da violência legítima”, para utilizar outra fórmula weberiana, é a expressão do autoritarismo inerente do Estado capitalista. O governante, no capitalismo, não tem a faculdade de escolher se haverá violência estatal ou não, ele pode mediar conflitos e procurar formas mais ou menos democráticas de resolução, mas não poderá extinguir essa estrutura basilar do modo de produção.

As polêmicas sobre Ciro Gomes a que me referi no início são perpassadas pelo uso vulgar e até flagrantemente errôneo dos conceitos da ciência política descritos. Sua forma de atuar muito franca e combativa (às vezes pouco educada) nos embates públicos não é suficiente para ser chamado de autoritário por seus adversários à esquerda, tampouco suas administrações como Prefeito ou Governador destoam da forma geral do Estado brasileiro, a não ser positivamente com medidas modernizantes como investimentos massivos em educação e no estabelecimento de maior equilíbrio de gênero nas nomeações no alto escalão, fato raro até para os governos “de esquerda”. Já pelo flanco à direita, o ex-Ministro da Fazenda é apontado como “populista”, por suas posições que melhor devem ser caracterizadas por “desenvolvimentistas” ou “trabalhistas”. Ciro defende abertamente a formulação de um projeto nacional de desenvolvimento, com amplo planejamento estatal e privado em busca de industrialização, e da ampliação dos direitos sociais.

Lula e Ciro na campanha presidencial de 1998.

Ciro Gomes com Leonel Brizola e Oscar Niemeyer [ao centro].
O termo usado como acusação, na verdade, apenas indica sua popularidade e influência na política regional, não só do Ceará, mas do Nordeste, bem como pela implementação de políticas sociais de distribuição de renda, vistas pejorativamente como “populistas” no sentido de agradar e manipular as massas. No entanto, o sentido mais adequado para a caracterização de Ciro como nacional-populista é justamente o de articulador de um projeto e um discurso para interpelar o povo, em oposição rebelde ao bloco de poder hegemônico liderado pela aliança do rentismo brasileiro e estrangeiro.

Referências

Referências
1 LACLAU, Ernesto. Política e Ideologia na Teoria Marxista: Capitalismo, Fascismo e Populismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 201.