O fechamento do consulado chinês em Houston e as tensões entre a China e os EUA

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Nos últimos dias, os Estados Unidos da América estabeleceram prazo de 72 horas para o fechamento do consulado da China em Houston. O secretário de Estado estadunidense, Mike Pompeo, afirmou que o consulado se tratava de um “um centro de espionagem e roubo de propriedade intelectual”, com a suposição de que hackers chineses estariam tentando roubar dados sobre a produção de vacinas da Covid-19. Pompeo seguiu a narrativa inspirada nos tempos da Guerra Fria, afirmando que a “China comunista” é cada vez “mais autoritária” e “agressiva”, avessa ao “mundo livre”. Disse ainda que Pequim rompeu os compromissos internacionais envolvendo a autonomia de Hong Kong, o Mar da China Meridional e o freio ao roubo de propriedade intelectual. Em resposta, o porta-voz da diplomacia chinesa, Wang Wenbin, classificou a ação como “ultrajante e injustificada”. Em seguida, o Ministério das Relações Exteriores da China retaliou a medida, ordenando o fechamento do consulado estadunidense na cidade de Chengdu.

Para compreender as razões desses acontecimentos, cabe contextualizarmos seu desenrolar num contexto mais amplo.

Primeiro, desde a eleição de Trump, em 2016, os Estados Unidos têm ensejado esforços para alterar o padrão das relações comerciais bilaterais com a China. A um só tempo, Trump reforça a retórica anti-chinesa voltada à sua base eleitoral mais conservadora sob a bandeira do America First, enquanto amplia o protecionismo da economia e dá respostas aos incríveis déficits comerciais dos Estados Unidos com o país asiático. O déficit comercial bilateral anual caiu pela primeira vez em tempos recentes no ano de 2019, chegando a US$ 345,6 bilhões, ante os US$ 418,9 bilhões de 2018. O ano 2020 corrobora a tendência, apontando perspectivas para nova redução: entre janeiro e maio, o déficit com a China ficou em US$ 103,3 bilhões, bem abaixo dos US$ 136,4 bilhões do mesmo período do ano passado. No entanto, a redução do déficit, decorrente das sucessivas ondas de sanções inerentes à guerra comercial, tem um custo evidente: a corrente de comércio bilateral foi reduzida em mais de US$ 100 bilhões em 2019.

Segundo, as rusgas diplomática têm sido recorrentes. Em 2018, por exemplo, Meng Wanzhou, chefe de operações financeiras da Huawei e filha do fundador da companhia, foi presa em Vancouver, no Canadá, acusada de violar as sanções impostas por Washington ao Irã. Na sequência, a China respondeu efetuando a prisão de três cidadãos canadenses, em nítida retaliação. São recorrentes também as denúncias por parte de Washington de suposta espionagem executada por hackers chineses. Obviamente, não é novidade que os serviços de inteligência sejam ativos dentre os mecanismos de política exterior das potências mundiais, e as revelações de Snowden em 2013 apenas redimensionaram tais práticas com as novas tecnologias da informação. Este ano, aliás, as tensões se aprofundaram em razão da pandemia, tendo em vista que o presidente Trump aproveitou a ocasião para desfechar todo tipo de discurso anti-chinês

A questão de fundo que dá sentido às batalhas tarifárias e rusgas diplomáticas é outra, entretanto. Os déficits comerciais estadunidenses revelam a perda de competitividade diante do ascendente dragão asiático. Não por acaso, o epicentro do imbróglio é justamente a questão tecnológica ligada à infraestrutura de comunicação 5G. Tal tecnologia pode ser até 100 vezes mais rápida, com cobertura muito mais extensa que a geração anterior, do 4G. Mais importante: a assim chamada Indústria 4.0, baseada na robótica, na Internet das Coisas, na Inteligência Artificial, nos carros autônomos, dentre outros, tem o 5G no seu núcleo.

Em outras palavras, os setores vinculados ao conjunto da produção industrial, do e-commerce, da prestação de serviços virtuais e de governança eletrônica terão como base operacional a infraestrutura de comunicação informacional 5G. Detalhe, os Estados Unidos não tem nenhuma empresa na vanguarda competitiva desse segmento, e a Huawei domina mais de ¼ desse mercado, despontando na liderança junto da Nokia e da Ericsson. É por isso que a Casa Branca tem atuado tanto para que sua rede seja construída por uma empresa nacional – embora se afirme que o 5Ge da AT&T seja o “4.5G” do Brasil. Ademais, o governo estadunidense tem pressionado países aliados a não adotarem o 5G da Huawei. Nesse sentido, recentemente o Reino Unido anunciou a proibição da compra de componentes da Huawei a partir de 2021, e o Brasil adiou o leilão vinculado à implementação da infraestrutura de 5G no país para o próximo ano.

É sabido que, historicamente, prepondera nas relações internacionais um entrelaçamento entre suas dimensões geoeconômica e geopolítica, entre capacidade produtivo-tecnológica e projeção global de poder, entre competição corporativa e interestatal. Dito isso, é evidente que Washington percebe a China como um poder desafiante num contexto de clara transição nas configurações de poder globais. Os dados acerca do ritmo irrefreável da modernização chinesa e a forma assertiva com a qual o país oriental tem se projetado, com destaque para o ambicioso projeto da Nova Rota da Seda, apontam nitidamente para um contexto de mudanças.

Em suma, se é possível dizer que esse litígio em torno do fechamento dos consulados repete um padrão que tem se tornado recorrente nas relações bilaterais Estados Unidos-China, também é necessário sentenciar que o desfecho das disputas sino-estadunidenses precisa ser analisado com cuidado, afinal será decisivo para a definição dos rumos da nova ordem global em gestação. E é importante lembrar, como disse o pensador: “o velho mundo está morrendo, o novo tarda em aparecer, e é nessa meia luz em que surgem os monstros”.

Por Diego Pautasso e Tiago Soares Nogara

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