Coreia do Sul, Japão e as feridas abertas da colonização: mulheres de conforto, disputa comercial e realinhamento geopolítico

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Introdução

A II Guerra Mundial não acabou, pelo menos na Ásia Oriental. As feridas abertas pelo antigo imperialismo japonês ainda ecoam nas relações diplomáticas da região. As recentes disputas nipo-coreanas são apenas sua expressão mais recente. A efervescência dos clamores coreanos referentes à histórica questão das mulheres de conforto voltou à cena. Longe de contemporizar, os japoneses deram início à relevantes retaliações aos sul-coreanos no âmbito comercial, com evidentes reflexos nas relações políticas e estratégicas entre os dois países. Se não restam dúvidas quanto a resiliência das feridas abertas ao longo da colonização japonesa e do conjunto dos eventos da II Guerra Mundial, resta desvendar como tais litígios impactam a geopolítica da região

A ferida da Segunda Guerra Mundial

A Península Coreana foi ocupada e colonizada pelo Japão entre 1910 e 1945. Durante o conjunto deste período, não apenas o idioma coreano foi proibido, como também as pessoas tiveram de mudar seus nomes para versões japonesas, com a população submetida militarmente ao mesmo tempo em que assistia a um intenso processo de modernização das forças produtivas e da infraestrutura do país (VISENTINI, 2012). Posteriormente, diante dos esforços militares acirrados a partir de 1932, às vésperas da II Guerra Mundial, os japoneses valeram-se de mais de um milhão de coreanos para o alistamento compulsório ao exército japonês, e de milhares de mulheres para a execução de serviços sexuais aos seus soldados e dirigentes, as que ficaram conhecidas como mulheres de conforto. Mesmo com o fim da II Guerra Mundial, os bordéis militares não cessaram suas atividades no território japonês, servindo inclusive à parte dos soldados estadunidenses que viriam a ocupar o Japão no pós-1945. Ainda assim, em 1946 o general Douglas MacArthur ordenou o fim deste sistema, fechando de uma vez o conjunto dos bordéis.

As estimativas são extremamente discrepantes, mas em todo o caso corroboram as violações, apontando a utilização de um número que varia entre 20.000 e 410.000 mulheres enquanto escravas sexuais, em aproximadamente 125 bordéis. Conforme estimativa do Tribunal Global das Nações Unidas para Violações dos Direitos Humanos das Mulheres, ao final da II Guerra cerca de 90% das mulheres de conforto haviam falecido. A destruição de parte da documentação pertinente ao tema pelos oficiais japoneses sempre dificultou a precisão das estatísticas, no entanto inúmeros historiadores trabalharam com a questão, valendo-se da existência e divulgação de alguns importantes documentos oficiais.

As feridas da II Guerra contribuíram para que as relações entre a Coreia do Sul e o Japão fossem normalizadas apenas em 1965, via tratado bilateral, apesar da impopularidade dessa gestão diplomática perante grande parte da população sul-coreana. Contudo, o presidente Park Chung-Hee levou adiante sua estratégia de inserção internacional, visando aproximar-se do Japão – então num contexto de progressivo crescimento econômico. Assim, os japoneses concordaram em garantir cerca de 800 milhões de dólares em doações e empréstimos para o governo sul-coreano, desde que este renunciasse a busca de maiores reparações formais referentes à questão colonial. Nas duas décadas seguintes, a Coreia do Sul se tornou o destino número um dos investimentos e do comércio japonês, no contexto em que despontava enquanto um dos Tigres Asiáticos.

No entanto, os temas vinculados às violações de direitos humanos pelos japoneses seguem sendo uma ferida aberta na relação bilaterais. Nos anos 1980 vieram à tona novamente estes litígios, com depoimento de mulheres violadas e sobretudo após a democratização sul-coreana, em 1987, com a maior publicização do debate. Em 2007, após anos ignorando a questão, Tóquio anunciou oficialmente um pedido de desculpas aos coreanos, ainda que historicamente as cortes japonesas tenham desobrigado o governo do país a pagar indenizações pertinentes à questão dos abusos.

Em 2015 – ano da comemoração de 50 anos do restabelecimento de relações diplomáticas entre o Japão e a Coreia do Sul -, após décadas de ameaças e ressentimentos, as autoridades japonesas e sul-coreanas acordaram a instituição de um fundo de compensação no valor de US$ 8,3 milhões para apoiar as mulheres sobreviventes. Com este, a Coreia comprometeu-se, junto ao Japão, a encerrar eventuais atritos bilaterais. No entanto, parte das próprias antigas mulheres de conforto sobreviventes rejeitaram o acordo e o pedido de desculpas, alegando não terem sido consultadas. Assim, no final de 2018 foi anunciado pelo Ministério de Gênero e Igualdade da Coreia do Sul um processo de desmantelamento da Fundação para a Reconciliação e a Reparação, alegando descumprimento japonês do pacto acordado em 2015. Ainda em 2017, o governo liberal de Moon Jae-in havia anunciado rejeição ao acordo de 2015, pactuado pela administração conservadora sul-coreana junto ao governo japonês.

Os litígios e seus efeitos contemporâneos

Diferentemente da Alemanha, que assumiu as responsabilidades de maneira irrestrita pelos crimes cometidos durante a II Guerra Mundial, o Japão manteve uma política oficial de celebração dos seus feitos vinculados à época, causando ressentimentos nos países vizinhos (BRAZINSKY, 2019). Com efeito, os atritos diplomáticos nipo-coreanos são parte de feridas históricas profundas, cujos efeitos tendem a ser duradouros.

Nos últimos anos, há um recrudescimento dos litígios, com efeitos diversos. Na esfera econômico-comercial, em 2018 a Suprema Corte da Coreia do Sul condenou a japonesa Nippon Steel a pagar cerca de 330 mil dólares para quatro ex-funcionários sul-coreanos vítimas de trabalhos forçados durante a guerra. E há dezenas de outros processos em curso na justiça coreana, envolvendo empresas da envergadura da Mitsubishi e Mitsui, contabilizando quase 300 casos vinculados às violações executadas ao longo do antigo conflito. Enquanto resposta, o Japão avançou em direção a uma disputa comercial, estabelecendo controles sobre as exportações para a Coreia do Sul de três materiais químicos utilizados para a produção de chips de computadores, dentre outros produtos com emprego de alta tecnologia, afetando diretamente empresas como a Samsung e a Hynix (SEO et al, 2019). Na sequência, o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe removeu oficialmente a Coreia do Sul da lista dos 27 parceiros comerciais preferenciais japoneses, gerando protestos por parte das autoridades sul-coreanas e a retirada do Japão de sua lista de parceiros comerciais confiáveis (PESEK, 2019).

Paralelamente, a população sul-coreana aderiu maciçamente a uma campanha entusiasmada a partir das redes sociais, com a hashtag #BoycottJapan, dissuadindo consumidores de comprarem de lojas japonesas como a Uniqlo, a Muji, a Daiso e a 7-Eleven. Estimativas apontam para um declínio de cerca de 30% das vendas da Uniqlo na Coreia do Sul desde então, afetando muitas das suas mais de 180 lojas em território sul-coreano (SPOSATO, 2019). A própria atividade turística de sul-coreanos no Japão foi reduzida em cerca de 50% nas semanas subsequentes, e até mesmo as cervejas japonesas, por muito tempo as cervejas estrangeiras mais populares na Coreia do Sul, têm enfrentado a resistência dos boicotes. Cabe destacar que a Coreia do Sul tem sido o segundo país com o qual os japoneses possuem maior superávit comercial, beirando os 20 bilhões de dólares em 2018, atrás apenas dos Estados Unidos da América (SPOSATO, 2019). Visando debilitar este superávit, ainda em agosto o governo sul-coreano anunciou a elaboração de um fundo de 6,4 bilhões de dólares para reduzir a dependência nacional das exportações japonesas.

Na esfera securitária, Seul decidiu não renovar o Acordo Geral de Segurança de Informação Militar (GSOMIA) assinado junto à Tóquio em novembro de 2016, num processo que contou originariamente com o apoio dos Estados Unidos. Afinal, na medida em que o Japão questionou a confiabilidade coreana, deixando de compartilhar informações securitárias sensíveis, não mais havia sentido para a manutenção do acordo. Nesse contexto, as Forças Armadas da Coreia do Sul realizaram exercícios militares perto das rochas de Liancourt, no Mar do Japão, um grupo de ilhotas chamadas Dokdo/Takeshima, objeto de disputa entre ambos os países. Ressalte-se que o Japão possui ainda litígios com a China pelas ilhas Senkaku/Diaoyu e com a Rússia pelas ilhas Kurilas. São elementos adicionais às complexas questões securitárias da Península[1], do Mar do Sul da China[2] e da própria iniciativa chinesa da Nova Rota da Seda[3].

Fonte: O Estado de São Paulo (2019)

Estes conflitos diplomáticos envolvem contradições entrelaçadas. Primeiro, o Japão, depois do fim do milagre nos anos 1980, se ressente de ter perdido a condição de epicentro geoeconômico para a China – em processo de reconstrução do sistema sinocêntrico – e mesmo de ver muitos dos Tigres (novos e velhos) competirem e até mesmo superarem sua economia em diversos setores. Segundo, a liderança de sul-coreana, o presidente Moon Jae-in, tem buscado apaziguar as relações com o Norte da Península, alterando os arranjos de equilíbrio de poder na região. Terceiro, Beijing aproveita as tensões nipo-coreanas para ampliar a ascendência sobre Seul, tensionando os rumos das divergências. Por fim, mas não menos importante, uma eventual normalização das relações inter-coreanas aparece como possível elemento deslegitimador das pretensões de Tóquio de recuperar sua condição de projeção de força bélica – restringida desde a derrota na II GM.

Conclusões

O declínio relativo do Japão na Ásia Oriental, combinado com as feridas abertas da II GM, são variáveis decisivas para as relações diplomáticas regionais. A Coreia do Sul tensiona as relações com o Japão, estabelecendo uma política de barganha perante os países vizinhos. Ademais, a liderança crescente da China sobre uma espécie de sistema sinocêntrico dá novos contornos às dinâmicas locais, enquanto os Estados Unidos se equilibram para manter sua presença ostensiva na condição de superpotência. Resta saber se o custo da manutenção de sua narrativa acerca dos ocorridos na II GM não contribuirá para o Japão perder mais posições na região.

Referências:

BRAZINSKY, Gregg A. “How Japan’s failure to atone for past sins threatens the global economy”. The Washington Post, 11 ago. 2019.

CALVOCORESSI, Peter. Política mundial a partir de 1945. Porto Alegre: Penso, 2011.

CHONG, Kim Hyun. Discurso de abertura. 23 ago. 2019. Disponível em: <https://english1.president.go.kr/BriefingSpeeches/Briefings/448>.

O ESTADO DE SÃO PAULO. “Coreia do Sul faz exercício militar para se defender do Japão e eleva tensão”. O Estado de São Paulo, 25 ago. 2019.

PAUTASSO, Diego. “A Nova Rota da Seda e seus desafios securitários: os Estados Unidos e a contenção do eixo Sino-Russo”. Estudos Internacionais, v.7, n.2, 2019.

PAUTASSO, Diego; DORIA, Gaio. “A China e as disputas no Mar do Sul : o entrelaçamento entre questões regional e global”. Revista de Estudos Internacionais (REI), v. 8, n. 2, 2017.

PAUTASSO, Diego; NOGARA, Tiago Soares. “A Coreia Popular e a questão securitária na Península Coreana”. Opera Mundi, 15 out. 2019.

PESEK, William. “US-China and Japan-South Korea trade wars undermine world’s economy”. Nikkei Asian Review, 5 ago. 2019.

SEO, Yoonjung; WAKATSUKI, Yoko; HOLLINGSWORTH, Julla. “Symbol of the devil: why Korea wants Japan to ban Rising Sun flag from Tokyo Olympics”. CNN, 7 set. 2019.

SPOSATO, William. “Japan started a war it wasn’t ready to fight”. Foreign Policy, 6 ago. 2019.

VISENTINI, Paulo Fagundes. As relações diplomáticas da Ásia. Rio de Janeiro: Fino Traço, 2012.

 

Por Diego Pautasso, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Tiago Soares Nogara, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), da Universidade de Brasília (UnB).