O coronelismo global no encontro de Ciro Gomes e Tasso Jereissati

Diferentemente da maioria das telenovelas atuais do horário nobre, cujas tramas principais se passam entre a classe média alta do Rio de Janeiro e de São Paulo, grande parte das estórias filmadas até meados dos anos 90 tinham como cenário o interior nordestino. Mostrar o atraso político e social expresso no cotidiano das pequenas cidades do sertão possibilitava, a partir daquele microcosmo, lançar uma crítica generalizada à política do país e, ao mesmo tempo, estigmatizar os políticos vindos da região. O velho Coronelismo denunciado em sotaque do Nordeste foi, aos poucos, incutindo um aguçado alerta no ouvido de cada brasileiro.

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O Globo contra a construção do Sambódromo no Rio: charge publicada em 1984 associando Brizola a Odorico Paraguaçu

A conservação de práticas políticas arcaicas no Norte e no Nordeste do Brasil, tão denunciadas pela Globo, esteve ligada ao acordo entre as elites do país que viabilizou nosso antigo modelo de industrialização. De um lado, as ilustradas oligarquias representadas na FIESP que desejavam modernizar seus parques produtivos, atraindo empresas multinacionais para a região. De outro, as oligarquias do Norte e do Nordeste querendo manter seu domínio nos moldes tradicionais. Esse foi o pacto político que sustentou o golpe de 1964 e sob o qual se erigiu o modelo produtivo que aprofundou as desigualdades regionais no Brasil.

O modelo econômico brasileiro e os arranjos políticos que lhe dão sustentação, observados em sua totalidade, revelam como o “moderno” e o “atrasado” não existem em separado e se constituem mutuamente. Por isso, desatrelar um Sul desenvolvido de um Norte atrasado é uma separação tosca que esconde a ligação estrutural no desenvolvimento das regiões.

Além da coesão política criada pelos acordos das elites regionais, que sustentou a modernização de uma região com a manutenção de estruturas atrasadas em outras, foram as relações econômicas que derivaram desse pacto que possibilitaram a construção dos polos industriais brasileiros a partir dos anos 60 do século XX. O processo de acumulação nas regiões que se desenvolviam só foi possível pela oferta, por parte das regiões que se subdesenvolviam, de matéria-prima em abundância, de um gigantesco mercado consumidor totalmente aberto aos produtos industrializados e da farta mão de obra barata dos migrantes.

Um primeiro efeito desse modelo foi o paulatino fortalecimento político dos grupos econômicos protagonistas do golpe de 64. Estes se voltaram contra os militares assim que eles tentaram distribuir o desenvolvimento, com a criação da Zona Franca de Manaus, ampliação da rede de Universidades Federais e realização de grandes obras de infraestrutura fora das regiões industrializadas, como a Transamazônica, por exemplo. As forças civis que organizaram o golpe de Estado, de repente, descobriram que o país vivia sob uma inaceitável ditadura que deixou como saldo, após 21 anos, os estados do Norte e Nordeste enfrentando problemas do século XVIII e o estado de São Paulo concentrando 2/3 da produção industrial do país.

Esse acúmulo de indústrias em um só local, e nessa proporção, mudou a correlação de forças internas e produziu efeitos políticos que influenciam os caminhos do Brasil até hoje. Foi nesse cenário que o embate entre os trabalhadores organizados das indústrias que se instalaram em terras paulistas e a elite local forjou o antagonismo, e sua expressão partidária, que pautou a política nacional desde meados da década de 1990, mas que não expressa, necessariamente, os dilemas das demais regiões.

Fora do eixo da industrialização, os escombros da velha ordem mantida manu militari deixaram resíduos do Coronelismo. Como mostrado à exaustão na novela das 8, com todas as interjeições características do falar nordestino, originalmente os coronéis eram grandes proprietários de terra que mantinham o controle político de uma região através do terror e do assistencialismo. A manutenção desses poderes locais foi a contraparte dos estados do Norte e Nordeste na modernização brasileira, o que confinou a política nessas regiões às disputas entre atrasadas oligarquias agrárias. Por esse motivo, o antagonismo central nesses locais tinha pouca relação com o tipo de polarização com ares cosmopolitas que vinha de São Paulo.

Foi nesse ambiente que Ciro Gomes emergiu para a política. No fim da década de 1970, a conta do projeto de modernização havia chegado e estava sendo dividida com todo o Brasil. Nesse período, o Ceará conseguiu constituir um grupo coeso de representantes da sociedade local, que passaram a se reunir no Centro Industrial do Ceará (CIC), à época, presidido pelo empresário, e futuro governador do estado, Tasso Jereissati. Os cearenses entenderam bem a função que os estados periféricos desempenharam no desenvolvimento brasileiro e decidiram mudar seu destino, dando início ao contínuo processo de mudanças que vem sendo implementado por lá até hoje.

O grupo conseguiu mudar localmente a correlação de forças, vencendo a eleição ao governo do Ceará, em 1986, e, em seguida, a eleição para prefeitura da capital e de diversas outras cidades no estado. Uniram-se então com dissidentes do PMDB de outras regiões e fundaram o PSDB, lançando-se logo em seguida na disputa interna no partido, da qual dependia o ambicioso plano dos cearenses de alterar o pacto federativo brasileiro com a conquista do poder central.

Assustados com a obstinação organizada dos novos políticos do Ceará, a ala paulista do PSDB tentou se refundir ao PMDB para diluir as forças emergentes das outras regiões. Derrotados no intento, fortaleceu-se o projeto liderado pelos cearenses, com a eleição de Tasso Jereissati para a presidência do partido, em 1991. Naquela data, Ciro Gomes já governava o Ceará, estreitando sua relação com o poder central no ano seguinte, com a posse do presidente Itamar Franco. Tudo fazia crer que o projeto teria o desfecho planejado. O indício principal do sucesso da empreitada eram os alertas emitidos por todos os órgãos de imprensa contra os “novos coronéis do nordeste”, que se entregavam pelo sotaque característico e queriam converter a já famigerada “República do Pão de Queijo” na “República de Sobral”.

Enquanto isso, na desconhecida “República da Avenida Paulista” – até hoje invisível no Google Maps –, articulava-se a renovação do antigo pacto regional, com o PSDB de São Paulo selando um acordo com as velhas oligarquias agrárias do Norte e Nordeste. O Príncipe dos Sociólogos foi coroado gestor do novo modelo de acumulação, via brutal internacionalização da economia e financeirização de todos os setores, e esmagou, como faziam os coronéis das novelas, as possíveis resistências ao projeto.

Filho da reação de 1932, FHC sabia que a história brasileira não respeita a geografia e teima em juntar os pampas gaúchos com as montanhas mineiras. Para evitar os tremores de terra que tal desrespeito às leis geológicas poderia causar, colocou o beligerante Rio Grande do Sul, desarmado, numa guerra comercial contra a agricultura subsidiada de outros países. Para Minas Gerais, reservou uma das mais terríveis armas de destruição em massa já lançadas em nosso território: a Lei Kandir. Batizada em homenagem a seu criador, o deputado do PSDB paulista, Antônio Kandir, essa lei, promulgada em 1996, passou a isentar os impostos sobre a exportação de commodities. Com isso, a arrecadação de São Paulo permaneceu praticamente intocada, enquanto as contas públicas dos estados exportadores eram destruídas, com a justificativa de manter o equilíbrio da balança comercial do país.

Nesse avesso de final de novela, Tasso, derrotado em suas ambições nacionais por FHC e perdendo a hegemonia política em seu estado para seus ex-aliados, pulou do barco. Ciro Gomes segue obstinado no mesmo ideal, prometendo contornar os impasses atuais com um novo pacto federativo e denunciando, em bom cearensês, a agiotagem oficial. O estado de São Paulo enriqueceu, mas a vida da sua população continua tão dura quanto em qualquer outro lugar do país – a não ser que você faça parte de uma ínfima classe privilegiada que se formou por lá. A Rede Globo de Televisão continua seu trabalho, usando seus últimos suspiros para vender ao país a redenção lavajatista e mostrar à nação os mandos e desmandos dos “oligarcas” vindos do interior do Brasil, sempre avisando que “esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.”

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