Crise brasileira: o fascismo do Alzheimer coletivo

Crise brasileira: o fascismo do Alzheimer coletivo
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A crise institucional em que o Brasil se meteu tem um componente marcante de destruição das capacidades cognitivas promovida pelos usurpadores do mandato popular: trata-se do Alzheimer coletivo que vem sendo preparado já há algum tempo para atuais e futuras gerações, sintoma silencioso da assunção alegre e feliz de sermos hoje uma sociedade iletrada. Tanto no sentido de não mais lermos livros, como no da incapacidade de saber ler os fatos e compreender seus nexos com a totalidade da nossa realidade.

A falta de pudor do iletrado feliz tem a ver com a ilusão de estarmos supostamente juntos no “mesmo barco”, vivendo o mesmo sinal dos tempos e usufruindo as maravilhas da mesma tecnologia que tudo resolveria nas diferentes dimensões da vida – as principais delas relacionadas à compreensão do real e à garantia da liberdade de pensamento e expressão.

Não me refiro aqui nem aos setores mais precarizados da sociedade que poderão ter a doença agravada pela falta de recursos – evidentemente, os que conseguirem sobreviver por mais tempo. Penso nas jovens famílias dos diferentes extratos da classe média que se sentem empoderadas menos por seus bens móveis e imóveis do que pelos recursos simbólicos e materiais de poder. Famílias onde há juízes, promotores, advogados, professores, jornalistas, médicos, engenheiros, pequenos empresários, enfim, uma gama diversificada de profissões que presumimos sejam de pessoas que cultivam o hábito da leitura, incentivando-o junto a seus filhos e netos.

Uma vez felizes e alegres com sua livre expressão pelas redes sociais, num ambiente em que todos resolveram escrever e dar opinião sobre tudo, muitos, mesmo sem saber manejar as regras da língua portuguesa, ignoram fazer deste poder simbólico o esconderijo da sua real condição de iletrados. Ou, se se preferir, sua condição de analfabetos funcionais ou analfabetos políticos, ainda que sejam bem remunerados em postos importantes do mundo privado ou dos aparelhos de estado. “Leem” os fatos do mundo com uma rapidez nunca vista e dessa fugaz leitura encampam teorias as mais diversas, porém, com o traço característico do senso comum, da suposta unanimidade de assim se sentirem “participando da história em movimento”.

Nesse contexto, misturam-se muitos tipos, desde aqueles que sabem ler, mas não leem um texto até o fim, sequer um livro em toda a sua vida, até aqueles que só leem o que se repassa nas redes sociais. Recentemente vivi uma experiência certamente semelhante à que milhares de pessoas já devem ter vivido – algo muito comum que revelou a verdadeira face de certo Brasil violento durante a última campanha presidencial. Ao repassar para uma pessoa querida e próxima artigo que escrevi sobre a crise institucional brasileira, fui ofendido de forma surpreendente, embora minhas palavras ensaiavam uma análise, e não acusações e afirmações absolutas, ainda que com base nas minhas inevitáveis posições muito bem demarcadas política e ideologicamente.

Ao ponderar ao meu querido interlocutor que tentara no artigo tratar o tema não com ódio, mas com serenidade, fui surpreendido pelo pedido de desculpas acompanhado de sua afirmação de que não percebera que o artigo era de minha autoria. Pensou que eu estava repassando de forma panfletária e “ativista” texto contra a Lava-Jato na guerra discursiva que reflete os conflitos e a luta de classes em suas diferentes arenas da atualidade. Ou seja, não se pode nem criticar a Lava-Jato porque ela teria se tornado uma unanimidade nacional, apesar de muitos apontarem situações controversas de sujas ações. Não se pode nem fazer um balanço entre excessos e medidas acertadas. Se criticou é porque é a favor da corrupção. “Pensei que você estivesse defendendo o STF”, justificou-se.

Diagnóstico: meu interlocutor manifestou a postura típica dos iletrados que se regozijam com as bandeiras que assumem, sem sequer ler o texto, sem saber quem escreveu e como chegou a ele – sem sequer saber o que o texto quis dizer. Os iletrados alfabetizados de indigência reflexiva. Não sabem analisar, separar, sintetizar. Não sabem abstrair. Não sabem diferenciar o essencial das aparências. Não sabem estabelecer os nexos dos fatos numa totalidade histórica. Não sabem, enfim, ler. Acham que história é algo do passado. Não conseguem vincular o singular ao geral, daí a perda da memória e também das funções vitais do ser criativo como indivíduo, que só é indivíduo numa coletividade histórica.

Esse o sintoma silencioso do Alzheimer coletivo que atrofia o exercício crítico em favor do nosso próprio “fascismo interior” em relação ao qual Michel Foucault já nos advertira para tomarmos cuidado. Talvez a advertência foucautiana seja carregada de exageros, considerando que muitos possam ou não ter essa propensão e muitos certamente não têm. Entretanto, as evidências do real indicam a necessidade de muito cuidado e alerta com esse tipo de fascismo, que pode ser combatido pelo cultivo da leitura e do espírito reflexivo.

Refiro-me mais à leitura de livros, livros e livros – prática que não parece ser incentivada pelo próprio modus operandi das redes sociais e seu poder de absorção do tempo e atenção dos indivíduos. Aliás, o totalitarismo e o terrorismo de estado só são legitimados pelo fascismo interior dos indivíduos através de ampla capilaridade e extensão populacional. Se o fascismo alemão que a história conheceu se alastrou de forma intensa nas mentes de muitos sem redes sociais, o que dizer agora da possibilidade de outros tipos de fascismos?

Certamente existem outros sintomas para o Alzheimer coletivo. Entretanto, quando uma sociedade se sente empoderada, alegre e feliz por ser despudoramente iletrada é porque os sinais da doença devem estar muito avançados em todas as gerações, coetâneas ou não, independente de idade, profissão e condição social ou econômica.

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