Damares e a esquerda em transe

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Em poucos dias o governo Bolsonaro já disse a que veio e sinalizou quem será o seu senhor: fixação do salário mínimo abaixo do estipulado pelo governo antecessor, esvaziamento da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e entrega da demarcação de territórios indígenas nas mãos dos ruralistas, agressivas promessas quanto à privatização do patrimônio público e nova retirada de direitos trabalhistas. Descarada ideologização do MEC (Ministério da Educação) pelo ministro Vélez Rodríguez, que além de nomear pessoas completamente inexperientes para setores importantes da pasta, traz como carro chefe de sua gestão um programa de militarização das escolas públicas municipais sob o eufemismo de “cívico-militar”. Extinção do Ministério da Cultura, esvaziamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, fim da SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) fragilizando políticas de acesso a Educação para os mais diversos grupos em condição de risco na sociedade brasileira, com destaque para a população LGBT.

O novo governo, aproveitando da força inicial advinda das urnas, chegou botando a mão na massa e tirando do papel seu programa reacionário, antipopular e antinacional. E frente a tudo isso qual foi a importantíssima luta travada por diversos setores da esquerda na rede nos últimos dias? Sim, a luta pelo direito de usar azul ou rosa, “cor não tem gênero”, dizem repetidamente (e irritantemente) os indignados de ocasião, em busca de mais um “like”. E tudo isso por conta de uma declaração da nova ministra da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Uma coisa é certa: amplos setores que se identificam como de esquerda, não entenderam absolutamente nada com a eleição de Bolsonaro.

Já deveria ser um fato plenamente compreendido como o novo presidente cresceu nas redes através de um discurso de comunicação muito bem pensado, focando em pautas ligadas aos costumes, apelando ao conservadorismo de parcelas consideráveis da população brasileira. O pior é que a direita conservadora, acertando nessa leitura tática, passou a pautar a discussão pública no Brasil, sobrepondo a discussão periférica sobre costumes, à discussão central sobre política e economia. Há anos a esquerda só consegue ser reativa às pautas colocadas por essa direita, como se estivesse presa em um looping temporal infinito, uma espécie de “Feitiço do Tempo” tupiniquim, que sempre termina com a vitória bolsonarista.

É impressionante como meios de mídia que se querem independentes e progressistas, como a Mídia Ninja, seguem exatamente as mesmas práticas da mídia mainstream, esvaziando o debate público. Ou existe diferença fundamental entre noticiar que a caneta usada por Bolsonaro na posse não era BIC e a convocação de um “ato” no qual meninos usam rosa e meninas usam azul, desfilando os “modelitos” lacradores contra a malvada Damares? Ambos infantilizam o debate e o público dentro de uma batalha por “curtidas” na rede, criando cortinas de fumaça que escondem o que de fato importa.

Sejamos claros: uma esquerda rasa, de parcela da classe média, de preparo intelectual precário, que coloca questões fundamentalmente individuais como essa da roupa azul ou rosa no centro do debate público, caindo na armadilha comunicacional da direita, só joga mais água no moinho bolsonarista. Essa é a aposta desse governo: manter a militância ativa através de pautas ideológicas e de costumes, para mitigar o desastre anunciado em áreas estruturais, principalmente na economia. Vamos falar de “combate ao socialismo” enquanto entregamos o patrimônio nacional para o capital estrangeiro; vamos falar de “ideologia de gênero” enquanto implementamos de fato uma ideologia militarista nas escolas públicas; vamos exaltar a “pátria” enquanto abrimos o nosso território para uma base militar dos EUA. Essa é a estratégia escolhida e que tem ganhado amplitude justamente porque conta com a anuência ingênua dessa esquerda que ainda não saiu da puberdade.

Por fim, vale uma última reflexão: uma esquerda que não combate de maneira feroz a entrega da Educação para o que há de mais retrógrado no pensamento contemporâneo, que não se posiciona claramente contra a venda da Embraer para a Boeing e que não se indigna com a desvalorização do salário mínimo, que não tem como norte claro a defesa dos valores democráticos, da soberania nacional e dos mais pobres, é de fato esquerda?

“Decifra-me ou te devoro” desafiava a Esfinge de Tebas.

Seja de azul ou rosa, parcela considerável da esquerda já está sendo devorada e ainda nem percebeu.