A democracia como vítima da compressão espaço-temporal do capitalismo

A democracia como vítima da compressão espaço-temporal do capitalismo
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Fatos e estudos recentes vêm reforçando minha inclinação para acreditar que a democracia é incompreensível sem um programa de estudos que a vincule a outros dois fenômenos históricos interpenetrados, quais sejam, a expansão capitalista e a formação do estado ocidental, desde suas primeiras fundações no século XVI.

Arrisco a hipótese, precária ainda e provavelmente nada inédita ou inovadora, de que nossa redemocratização na década de 1980 foi menos uma luta de uma sociedade oprimida e mais uma conformação do estado nacional à crise do fordismo provocada pelas transformações do capitalismo naquela fase da globalização.

Afirmar isso implica depreciar nossa democracia? Talvez. Obviamente que não se defende aqui exaltação à ditadura civil-militar que se instalou no país a partir de 1964, nem a qualquer outro tipo de ditadura. Evidentemente tambémque a luta democrática foi de suma importância para derrubar um regime execrável e criar as bases para outras lutas transformadoras da sociedade.

Entretanto, o crescimento do Brasil durante cinquenta anos (de 1930 a 1980), maior em média que o da China, e o fortalecimento dos aparatos estatais produtivos pela ditadura (Geisel chegou a enfrentar os Estados Unidos com o acordo nuclear Brasil-Alemanha) são dois elementos históricos incompatíveis com o neoliberalismo que já se gestava na década de 1970 e que resultou na financeirização da economia que vivemos atualmente.

A leitura de René Dreifuss é obrigatória para se entender o que aconteceu. O título da obra deste grande historiador e cientista político que, infelizmente, foi embora cedo, é bastante sugestivo: “1964: A Conquista do Estado”. Nesse livro ele mostra as forças que emergiram na sociedade brasileira e que fincaram raízes – permanecendo aí dando uma banana para a democracia, usando os mecanismos democráticos contra a própria democracia.

O regime de 1964 contribuiu para favorecer multinacionais, submetendo o país aos ditames do Império estadunidense, promovendo forte concentração de renda na sociedade brasileira. O modelo econômico brasileiro funcionava sob os ditames do fordismo, que, entretanto,passou a não mais atender aos movimentos e transformações do Capital a partir, sobretudo, de meados da década de 1970, mais especificamente, com a chamada crise do petróleo, em 1973.

Interessante observar como os passos seguintes aomovimento da redemocratização, após a primeira eleição direta para presidente da República, em 1989, foi se consolidando, de forma irrefletida por parte de diferentes setores da sociedade, aos movimentos de privatização e liberalização da economia, estas como sinônimos de modernização e eficiência. A pergunta é: esses novos movimentos seriam possíveis com uma ditadura à moda antiga?

Obviamente que não se assume aqui uma paranoia conspiratória que vê fantasma em todos os aspectos da realidade, como, por exemplo, supostas articulações de estruturas enigmáticas sobre indivíduos incautos a partir de decisões estratégicas encasteladas em centros mundiais de poder bem definidos, porém invisíveis.

Trata-se, isto sim, da crença de que a realidade é feita de complexos menores em conflitos e em contradições dentro de complexos maiores, para usar uma imagem utilizada repetidamente por Gyórki Luckács. Nesse sentido, democracia, sempre desejável e compatível com a utopia socialista, como mostram vários autores, a exemplo de Ellen Meikisins Wood, não pode ser vista como valor absoluto.

Democracia não é algo abstrato, imutável e dedutível para todas as sociedades. Democracia é um sistema aberto e dinâmico conformando suas peças no quebra-cabeça maior da coletividade, conforme os encaixes possíveis determinados pelas transformações sistêmicas na interdependência globalizada.

Certos governantes não gostam de democracia porque quem vive democracia quer mais democracia. Vale dizer, democracia sempre gera mais democracia. Daí que alguns a classificam como um regime perigoso e carregado de mal-entendidos. Daí porque após importantes avanços entre 2004 e 2010, forças hegemônicas promoveram seu retrocesso.  

Em relação aos movimentos da globalização, não à toa, Fernando Henrique Cardoso inaugura seu primeiro governo em 1994 dizendo que ali terminava a Era Vargas. Intencionalmente ou não, com ideias honestas o não, correntes de pensamento daquela década acabaram contribuindo para as facilidades com que o ultraliberalismo possa nadar de braçadas, atualmente, nas democracias legitimadas pelo voto popular.

Chega a ser sintomático também, soar como alvissareira, por exemplo, a previsão de crescimento da economia para 2020 em torno de 2 por cento do PIB, segundo fontes do mercado – nível próximo da trajetória do país na década FHC, vale dizer, o auge do receituário neoliberal imposto pelo Consenso de Washington. E de uma desfaçatez sem tamanho a euforia por uma suposta retomada do aumento do emprego no setor de serviços. Como se esse setor fosse resolver o problema das desigualdades e do crescimento do país.

Enganamo-nos quando pensamos que nossa democracia estava consolidada apenas por completar três décadas, período em que se estruturaram as bases e os mecanismos neoliberais para chancelar, como normal, a terra devastada de agora promovida pelo ultraliberalismo de Bolsonaro e Paulo Guedes.

E isso, considerando que os governos do PT, que nunca prometeram socialismo algum, continuaram o neoliberalismo iniciado na década anterior. Engano, inclusive, sobre os aparatos de accountatility, a exemplo do escândalo que ficou conhecido como Vaza-Jato, notadamente, sobre o juiz que condenou e prendeu o político que poderia ter vencido as últimas eleições para depois virar ministro do governo eleito. Democracia incrível!

Sobre a necessidade de compreendermos nossa democracia lançando luz ao plano da economia, vale a pena reproduzir a observação de David Harvey (“Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992), tanto mais por que esse livro foi publicado no início da referida década pós-redemocratização.

Segundo ele, os novos ventos que sopravam para balançar o fordismo exigiam o que ele chama de “acumulação flexível”. De fato, depois entronizou-se a moda no Brasil, como regra, de enxotar tudo o que era considerado tradicional – o Leviatã e o nacionalismo sendo asprimeiras grandes vítimas a serem execradas e atacadas.Diz ele:

“Ela (a nova forma de acumulação) se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado ‘setor de serviços’, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (…).

Harvey acrescenta que esse processo envolve ainda um movimento do que ele chama de compressão do espaço-tempo no mundo capitalista – “os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitam, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado. Esses poderes aumentados de flexibilidade e mobilidade permitem que os empregadores exerçam pressões mais fortes de controle do trabalho sobre uma força de trabalho de qualquer maneira enfraquecida por dois surtos selvagens de deflação, força que viu o desemprego aumentar nos países capitalistas avançados (salvo talvez no Japão) para níveis sem precedentes no pós-guerra” (p. 140-141).

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