Apresentação ao debate da derivação do Estado

Proun, c.(1925), El Lissitzky. Derivação do Estado
Proun, c.(1925), El Lissitzky
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O presente artigo trata-se de uma sistematização do texto introdutório do Holloway e Picciotto ao livro “State and Capital”, em decorrência da grande importância desse livro na organização do que ficou conhecido como o debate alemão da derivação do Estado, cuja emergência deu-se em face de problemas práticos concretos datados do final da década de 60 que evidenciou a inadequação da compreensão do Estado pela teoria marxista predominante até então.

De forma a introduzir esse debate na Grã-Bretanha, a apresentação elaborada pelos autores engloba várias contribuições ao debate da derivação, cujo marco teórico comum é a derivação da forma política estatal a partir das categorias da econômica política, não se tratando, no entanto, de uma escola unificada, mas que possui o grande mérito de, apesar das nuances de cada autor, não apenas apontar criticamente para as insuficiências das demais teorias marxistas, como também oferecer o caminho para uma teorização adequada do Estado.

Considerarei minha tarefa cumprida caso essa curta apresentação ao debate da derivação, cuja estrutura textual propositalmente é a mesma da sistematização elaborada por Holloway e Picciotto, consiga apresentar os principais pontos desse debate e que instigue a continuidade da leitura por parte daqueles que estão interessados em solidificar as bases teóricas a partir das quais poderemos compreender o papel do Estado no capitalismo e as próprias possibilidades concretas de ação política.

A “teoria política marxista” e a análise do Estado:

A primeira parte da introdução escrita por Holloway e Picciotto trata das duas correntes teóricas predominantes àquela época na Grã-Bretanha, demonstrando a base sobre o qual suas teorias erigem e seus principais equívocos e limites.

Tratando, de um lado, da abordagem teórica “política”, os autores apresentam o debate existente entre Miliband e Poulantzas devido à influência de ambos os autores dentre os teóricos políticos. Entretanto, diferentemente de como são teorizados, ao invés de colocá-los como polos opostos de uma relação antagônica, apontam para o fato de que tanto Miliband quanto Poulantzas partem de marcos teóricos menos distintos do que semelhantes.

Havendo como ponto de partida em comum a compreensão do fenômeno político como um objeto autônomo de análise em relação ao “nível econômico” que, no caso de Poulantzas, é sempre relegado a um “em última instância”, isso implica em uma redução da complexa análise do fenômeno político a uma preocupação em elaborar conceitos específicos ao “nível político”.

De um lado, a teoria política marxista desenvolvida por Miliband padece de uma elaboração teórica para além do empirismo especulativo ao qual ele remete-se ao criticar o posicionamento da teoria burguesa tradicional. E, de um mesmo lado, Poulantzas, ainda que superando as insuficiências das proposições elaboradas por Miliband, falha em identificar a relação objetiva específica existente entre o Estado e a “anatomia” da sociedade burguesa, que pressupõe as contradições da acumulação capitalista, remetendo-se a uma separação dos objetos de estudo a partir de uma compreensão da autonomia do fenômeno político, o que revela uma leve desvantagem da abordagem “política” quando comparada com a “econômica” justamente porque não há um enquadramento adequado do fenômeno político ao quadro de contradições da reprodução das relações de produção, de como a lei da queda tendencial da taxa de lucro influi diretamente na organização e reorganização da materialização da forma política (e que se trata da principal causa dessa transformação), o que acaba por limitar a análise de Poulantzas sobre o Estado ao nível da “descrição perceptiva”.

É justamente a ausência de uma compreensão materialista do Estado em Poulantzas que prejudica suas análises acerca do Estado quando ele trata, por exemplo, da questão da integração europeia e as conclusões necessárias acerca da forma de estruturação das instituições políticas no plano internacional, bem como a questão da própria insurgência do fascismo e a importante função que este desempenha para a necessidade de reorganização periódica das relações de produção capitalistas com a finalidade de conformar as próprias contradições do movimento de acumulação de capital. Ao invés, ele reduz suas análises, devido à falta de compreensão teórica adequada, aos termos de uma crise política e ideológica.

O principal equívoco na análise de Miliband e Poulantzas deve-se a uma ausência de clareza por parte de ambos de que as categorias específicas apresentadas na crítica à economia política de Marx não se tratam de categorias pertencentes apenas ao âmbito econômico. Pelo contrário, o debate da derivação demonstrará como, a partir desses “conceitos econômicos”, o próprio fenômeno político deve ser analisado.

Tratando ainda das teorias políticas marxistas, Holloway e Picciotto também incluem Gramsci na crítica direcionada a Miliband e Poulantzas acerca das limitações às análises das categorias políticas desenvolvidas pelos autores, atribuindo aos três uma determinação “teórico-classista” na medida em que todos apreendem o conceito de classe como a categoria política central, havendo uma identificação direta do Estado para com a classe, tomando esta como o ponto de partida e não “as leis e o desenvolvimento histórico do processo de acumulação e de produção capitalista”[1], o que no caso de Poulantzas leva a uma compreensão da luta de classes como pertencente a um processo relativamente autônomo às relações econômicas propriamente ditas, quando na verdade o próprio processo de acumulação de capital é a luta de classes.

A “economia marxista” e o Estado

De outro lado, Holloway e Picciotto tratam dos economistas marxistas que, diferentemente dos teóricos políticos, compreendem o Estado tomando como ponto de partida as próprias categorias econômicas. Assim, dentre os economistas marxistas predominava na Grã-Bretanha o debate existente entre os denominados fundamentalistas e neo-ricardianos.

Os neo-ricardianos, exemplificados pelas abordagens teóricas de Glyn e Stutcliffe, bem como Ian Gough, em certa medida aproximam-se da análise de Miliband no tocante ao empirismo profundo ao qual se remetem, visto que as análises sobre o Estado baseiam-se na identificação do mesmo como um instrumento da classe dominante a partir do conteúdo concreto da ação estatal, negligenciando a própria forma estatal e a forma que assume a luta de classes.

Além disso, a abordagem teórica neo-ricardiana tem como característica o fato de que suas análises partem das formas tal como elas aparecem na superfície da sociedade, isto é, formas fetichizadas como lucro, preço, salário, etc., o que evidentemente acaba comprometendo seriamente suas análises acerca do Estado, em que é pressuposto a própria separação na análise da economia e da política enquanto pertencentes a esferas relativamente autônomas. Nesse sentido, os limites da ação estatal estão relacionadas à luta de classes, que não é compreendida dentro das próprias relações econômicas, mas algo externo à estas, pertencentes à esfera política.

Diferente dos neo-ricardianos, os economistas marxistas fundamentalistas vão além, posto que eles partem da categoria do capital e, portanto, não se mantém em um nível superficial de análise como fazem os neo-ricardianos, mas isso não significa que os fundamentalistas chegam a uma compreensão materialista adequada acerca da forma política, uma vez que não investigam a fundo a questão da especificidade do político para a organização do regime de acumulação capitalista, ainda que Yaffe chegue à conclusão de que “embora as ações do Estado favoreçam o capital pelo seu conteúdo, certas limitações são impostas à ação estatal pela natureza de sua relação com o processo de acumulação”[2], ao proceder à análise acerca dos gastos estatais e os limites destes na resolução do problema da crise devido a sua natureza improdutiva.

O debate da derivação do Estado é importante dado que demonstra como, ainda que se identifique a relação entre o Estado com a categoria do capital, essa relação não se resume a apontar que o nível econômico é determinante, como o faz a análise sobre o Estado apresentada por Fine e Harris, tampouco pode a análise acerca do Estado se restringir a um mero apontamento de que existe uma relação entre o capital e o fenômeno político.

Essa compreensão, levada às últimas consequências, conduz inevitavelmente a conclusões que inviabilizam a possibilidade de compreensão do importante papel das formas políticas no capitalismo e, portanto, a possibilidade concreta de sua superação.

É preciso ir além e identificar, a partir da derivação da forma política da categoria do capital, a natureza específica dessa relação e o fundamento lógico e histórico da separação existente entre as formas políticas e as formas econômicas na totalidade das relações capitalistas.

O debate da derivação do Estado

É nesse sentido que se inicia o debate da derivação na Alemanha, diante das limitações das compreensões teóricas acerca do Estado até então predominantes em face de problemas práticos imediatos, decorrentes de acontecimentos datados do final da década de 60 em diante, que apontaram de maneiras diferentes para a seguinte questão: os próprios limites da ação estatal.

Desses acontecimentos, Holloway e Picciotto destacam três que impulsionaram o desenvolvimento de uma compreensão materialista do Estado: a recessão de 1966 e 1967, as eleições de 1969 com a assunção de um governo social-liberal, bem como a perda da força do movimento estudantil, que chamaram atenção, respectivamente, para: a real capacidade do Estado em “administrar” as crises, a inviabilidade de se alcançar reformas efetivamente transformadoras através de ações estatais reformistas, e quais são os aspectos objetivos que engendram a crença generalizada em um Estado que assume um papel de garantidor do bem-estar social da sociedade como um todo.

O primeiro artigo responsável pela teorização do debate da derivação foi “A ilusão do Estado Social e a contradição entre trabalho assalariado e capital” de Müller e Neusüss, em que os autores apontam para a necessidade da derivação da forma estatal a partir das categorias da economia política, em se tratando de formas determinadas historicamente que assumem as relações sociais, não havendo o que se falar em um estudo da economia e da política de maneira autônoma como o faz Poulantzas, por exemplo.

Pelo contrário, em se tratando o objeto da crítica à economia política de Marx a própria sociedade burguesa e as relações sociais veladas pelas formas econômicas, as formas políticas são derivadas a partir dessas mesmas formas econômicas na medida em que o objeto de estudo do político é a mesma totalidade de relações sociais da sociedade burguesa, quais sejam, as relações de produção capitalistas, não havendo o que se falar, por exemplo, do fenômeno político como um objeto autônomo de estudo.

Holloway e Picciotto sintetizam os principais desafios enfrentados pelo debate da derivação da forma e da função do Estado em três pontos que desembocam no questionamento central acerca dos próprios limites da compreensão materialista do Estado levada às últimas consequências: “o problema de qual deveria ser o ponto de partida para derivar a forma do Estado a partir da sociedade e, particularmente, se a derivação deveria basear-se na análise da superfície ou da essência da sociedade capitalista; o problema da relação entre a derivação da forma e a derivação da função do Estado; e o problema da relação entre a derivação lógica e a análise histórica”[3].

Dada a ausência de uma unidade das diferentes contribuições ao debate, Holloway e Picciotto apresentam três classificações a essas contribuições de forma a facilitar a sistematização do debate.

Assim, a primeira orientação geral engloba os autores que derivam o Estado de uma necessidade proveniente da relação entre capitais individuais, considerando que estes não são capazes de conformar as contradições da lei geral de acumulação capitalista, havendo a necessidade de que um poder público, situado acima das classes, atue autonomamente no interesse do capital social total regulando e reproduzindo as relações entre os capitais individuais.

Aliás, como assim desenvolve Müller e Neusüss acerca do “caráter benevolente” do Estado, essa forma que este assume constitui a própria base objetiva que responde a questão levantada anteriormente acerca da crença generalizada no caráter reformista e de bem-estar social das ações estatais, cuja proteção da classe trabalhadora decorre apenas de sua função de conformar as próprias contradições do capital. Também incluso na primeira classificação encontra-se a abordagem de Altvater que deriva a forma do “Estado da incapacidade do capital, como resultado de sua existência enquanto muitos capitais reciprocamente antagônicos, de reproduzir a natureza social de sua própria existência”[4], apresentando em seu artigo “alguns problemas do Estado intervencionista”[5] as principais funções exercidas pelo Estado; bem como a tese elaborada por Blanke, Jürgens e Kastendiek que aproximam-se de Pachukanis ao tratar da compreensão do fenômeno político como necessário à garantia e manutenção das relações de troca entre sujeitos equivalentes.

Apesar do mérito indubitável dessa primeira abordagem teórica, não apenas por analisar a relação entre os capitais individuais e o Estado representando o capital social total, como também por questionar a própria tese relacionada ao capitalismo monopolista de Estado e tratar de questões relacionadas à nacionalização, setor público e, sobretudo, os próprios limites da atividade estatal, Holloway e Picciotto apresentam três objeções que comprometem essa abordagem teórica.

A primeira delas refere-se à impossibilidade de se questionar a capacidade que o Estado tem de exercer determinadas funções dado que o ponto de partida da análise do Estado é sua derivação da necessidade de assumir um papel que o capital individual não é capaz de cumprir, fazendo com que a própria função do Estado seja pressuposta.

A segunda refere-se a pouca ou quase inexistente teorização adequada acerca da natureza repressiva do Estado, da relação de exploração e legitimidade existente entre a classe capitalista e a classe trabalhadora, visto que o ponto de partida é o conflito existente entre os capitais individuais (isto é, entre iguais) e não entre o próprio capital-trabalho.

Por fim, a terceira refere-se à falha dos autores em articular a análise lógica e histórica, presente principalmente no trabalho de Blanke, Jürgens e Kastendiek, no qual os autores equivocadamente implicam em uma cisão entre a forma do Estado e sua análise histórica, desembocando em uma compreensão a-histórica da forma política estatal, quando o próprio conceito de forma implica necessariamente no desenvolvimento de relações sociais historicamente determinadas.

Passando para a segunda classificação proposta por Holloway e Picciotto, a base teórica mais ou menos delineada é a derivação do Estado a partir das categorias tal como elas aparecem na superfície da sociedade capitalista. É nesse sentido o desdobramento das considerações teóricas elaboradas por Flatow e Huisken que, apesar de teorizarem devidamente como o Estado assume a forma fetichizada de um terceiro impessoal que atua em prol dos interesses gerais, “eles mesmos tornam-se reféns das ilusões fetichistas e perdem vista da natureza da superfície como uma mera forma cujo desenvolvimento só pode ser compreendido através de uma investigação das relações de classe que ela vela”[6].

A terceira classificação, por fim, refere-se à abordagem de Joachim Hirsch que, diferentemente da primeira e da segunda abordagem aqui apresentada, extrai suas considerações acerca do Estado não da superfície da sociedade burguesa, ou da necessidade de exercer uma função a partir do antagonismo da relação entre os capitais individuais, mas da própria categoria do capital e as relações sociais que ela expressa.

O ponto de partida tomado por Hirsch nos fornece duas principais implicações: a primeira dela diz respeito à própria questão relacionada à funcionalidade da ação estatal em seu papel de materializar os interesses do capital social total, pressuposto na primeira abordagem aqui apresentada, colocando seriamente em questão se o Estado realmente consegue exercer essa funcionalidade na reprodução das relações capitalistas; a segunda implicação, por sua vez, diz respeito aos próprios limites da organização e da ação estatal, que são moldados pelas mesmas contradições inerentes à lei geral de acumulação capitalista relacionadas à queda tendencial da taxa de lucro, cujas contratendências implicam na necessidade periódica de reorganização das relações de produção que constituem o regime de acumulação. Isso nos fornece uma base para que possamos compreender como as formas políticas materializam-se em instituições políticas estatais internamente em cada Estado, sendo também possível analisar as diferentes fases de reorganização do regime de acumulação e modo de regulação no curso do desenvolvimento histórico do capitalismo em escala mundial.

Não obstante, Holloway e Picciotto apontam para uma insuficiência na abordagem teórica de Hirsch, que é justamente a falta de uma teorização adequada a respeito da luta de classes. O problema da derivação lógica da forma política do processo de acumulação de capital, e o papel do Estado como uma contratendência aos próprios limites do processo que dá origem a ele é a dificuldade de, a partir disso, analisar o próprio processo concreto da luta de classes, cujo resultado apenas pode ser apreendido a partir do conteúdo concreto das lutas e não através da derivação de sua forma, sendo que o próprio processo de acumulação de capital é o processo concreto de luta de classes.

Nesse aspecto, Heide Gerstenberger, em suas reflexões, apresenta uma preocupação maior com o problema em se compreender o processo concreta da luta de classes, que possibilita uma análise das particularidades do desenvolvimento de determinados Estados, e colocando em dúvida a própria questão de até que ponto podemos falar do “Estado capitalista”.

Também a contribuição de Claudia Von Braunmühl é importante devido ao seu apontamento para a necessidade de se desenvolver uma teoria concernente ao desenvolvimento internacional do capitalismo e como que se dá a estruturação e relação entre cada Estado-nação no contexto global de acumulação de capital.

Apresentadas as principais correntes teóricas predominantes da Grã-Bretanha, cujo debate encontrava-se polarizado entre a abordagem política e a abordagem econômica, Holloway e Picciotto introduzem o debate alemão da derivação do Estado justamente pelo seu mérito em estabelecer “o pré-requisito essencial para uma compreensão do Estado baseado na relação dialética entre forma e conteúdo da luta de classes”, evidenciando o fato de que contrapor a abordagem econômica da lógica do capital (forma) à abordagem política (luta de classes) não passa de uma “falsa polaridade”, posto que “a lógica do capital é nada mais que a expressão da forma básica da luta de classes na sociedade capitalista”[7].

Apesar das críticas ao próprio debate da derivação, ele sem dúvidas apresenta uma teorização necessária para que, a partir disso, a partir da construção de uma teoria materialista do Estado, seja possível proceder adequadamente à análise da forma política e as instituições políticas nas quais ela se materializa internamente a cada Estado.

Para o contexto político nacional, as considerações teóricas extraídas do debate da derivação são pontos de partida incontornáveis para a elaboração de uma compreensão teórica sólida, capaz de nos colocar nos trilhos corretos para compreender o Estado brasileiro e a sua colocação na dinâmica internacional das relações de produção.

Obs. I: Para uma leitura completa do livro State and Capital, ver: https://libcom.org/library/state-capital-marxist-debate-john-holloway-sol-picciotto

Obs. II: Dentre os principais livros que considero importantes para o aprofundamento dos estudos acerca do debate da derivação, encontra-se a contribuição incontornável de Camilo O. Caldas, livro intitulado A teoria da derivação do Estado e do direito.

[1] HOLLOWAY, J.; PICCIOTTO, S., State and Capital, p. 10.

[2] Ibid., p. 13.

[3] Ibid., p. 19.

[4] Ibid., p. 20.

[5] Terceiro artigo do livro State and Capital.

[6] Ibid., p. 24.

[7] Ibid., p. 29.