Vivas nos queremos: luta pela descriminalização do aborto

Vinte e oito de setembro é dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e no Caribe. Nesta data, em 1990, ocasião do V Congresso Feminista Latino-Americano e Caribenho, na Argentina, ficou decidido que seria a data consagrada a esse tema.
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Por Juliana Leme Faleiros – Vinte e oito de setembro é dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e no Caribe. Nesta data, em 1990, ocasião do V Congresso Feminista Latino-Americano e Caribenho, na Argentina, ficou decidido que seria a data consagrada a esse tema.

A forma como os países dessa região trata do tema é bastante diversa, pois Cuba legalizou o aborto em 1965; Guiana Francesa, Guiana, Porto Rico e Uruguai, nas décadas seguintes, também passaram a autorizar a mulher a decidir sobre seu destino. No México, somente na Cidade do México e em Oaxaca. Brasil, Venezuela e Argentina são exemplos de países latino-americanos que autorizam a prática em restritas situações. República Dominicana, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Haiti e Suriname proíbem o aborto em qualquer circunstância, inclusive se a gravidez for fruto de estupro.

Verifica-se que 10% das mortes maternas na América Latina decorrem de abortos inseguros[2] e que, de acordo com Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access, o maior índice de abortos está na América Latina: 44 por 1000 em mulheres com idade entre 15 e 49 anos[3]. O cenário jurídico díspar, a desigualdade socioeconômica da região e a inadequação das políticas públicas com essa temática podem ser os elementos geradores de tais índices.

O debate sobre aborto, atualíssimo, tem sido permeado por crenças pessoais marcadamente religiosas e, em razão disso, faz-se necessário abrir o diálogo sobre outras bases, principalmente, a Ciência feminista, que confere status de sujeito às mulheres e demonstra que a vida humana não se inicia na concepção.[4]

Falar e debater esse assunto, sem interferência de crenças dogmáticas, é das tarefas mais urgentes, tanto para elevar o patamar civilizatório quanto para salvar a vida de milhares de mulheres e meninas. A criminalização da prática e o não oferecimento de serviços adequados, nem mesmo para cumprir as circunstâncias legais, é abandonar mulheres e meninas à própria sorte, descumprindo a Constituição da República e os documentos internacionais que versam sobre direitos humanos.[5]

Indispensável lembrar que a criminalização de tal prática é moderna, sendo que a partir do século XIX, momento da consolidação dos ideais burgueses da igualdade e da liberdade, que os opositores ao aborto passam a defender que esse assunto seja inserido na esfera criminal, mantendo as mulheres excluídas dos ditos ideais. (FEDERICI, 2018; BADINTER, 1985; POLLITT, 2018).

No Brasil, de acordo com o Código Penal vigente, de 1940, o aborto é considerado crime exceto “se não [houver] outro meio de salvar a vida da gestante” (art. 128, I) e se a gravidez resulta[r] de estupro” (art. 128, II), desde que presente o consentimento da gestante. Ao lado dessas duas possibilidades previstas em lei, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, decidiu pela viabilidade de interromper a gestação de feto anencefálico. (BRASIL, 2013).

Em 2016, a Primeira Turma do STF, também por maioria de votos, no Habeas Corpus 124306, afastou a prisão preventiva dos pacientes acusados da prática de aborto. O Min. Luís Roberto Barroso destacou a importância da vida do feto, mas rechaçou a criminalização da prática abortiva antes de concluído o primeiro trimestre de gestação por violar direitos das mulheres. Ficou registrado na ementa que diversos direitos fundamentais da mulher são violados quando da criminalização de condutas, dentre eles “o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.” (BRASIL, 2016).

Ambas decisões se pautam naquilo que a ciência vem apontando acerca da autonomia da mulher sobre o próprio corpo, sobre a afirmação da mulher como sujeito de direito bem como a formação do cérebro humano. Aliás, sobre este último aspecto, essa foi a postura do STF ao decidir a ADI 3510 sobre a constitucionalidade da Lei nº 11.105/2005, conhecida como Lei de Biossegurança permitindo pesquisas com células-tronco. Nessa ocasião aderiu-se à teoria natalista descartando as teorias concepcionista e da personalidade condicional, ou seja, o STF se posicionou no sentido de que a vida se inicia quando o feto tem atividade cerebral assemelhada à de uma pessoa em vida extrauterina. (BRASIL, 2008).

Sobre a prática de abortamento no Brasil, a Pesquisa Nacional do Aborto realizadas em dois momentos, 2010 e 2016, (DINIZ, MEDEIROS, MADEIRO, 2016) revela que o aborto é comum e “em termos aproximados, aos 40 anos, quase uma em cada cinco das mulheres brasileiras fez um aborto.”[6] Para os pesquisadores envolvidos, entre um ano e outro não houve alteração consistente nos resultados o que os faz afirmar que o aborto é “problema de saúde pública […] não só por sua magnitude, mas também por sua persistência.”

Ao final do relatório os autores, rejeitando o estereótipo de que mulheres que abortam são mulheres à margem da sociedade, chamam a atenção para o seguinte ponto: “a mulher que aborta é uma mulher comum. O aborto é frequente na juventude, mas também ocorre com muita frequência entre adultas jovens. Essas mulheres já são ou se tornarão mães, esposas e trabalhadoras em todas as regiões do Brasil, todas as classes sociais, todos os grupos raciais, todos os níveis educacionais e pertencerão a todas as grandes religiões do país”, pois 44% confessam algum tipo de religião e apenas 18% afirmam não ter religião.

A criminalização do aborto eleva-o a quarta causa de morte materna no Brasil e impõe sofrimento físico e psíquico a mulheres e meninas. Não impede sua prática; ao contrário, com subnotificação, calcula-se 1 milhão de abortos por ano representando uma “carga alta independe[mente] da classe social. A decisão de induzir um aborto, de interromper uma gestação não depende da classe social. O que depende da classe social é a gravidade e a morte.” (STF, 2018, p. 25).

A Ciência, portanto, demonstra que a criminalização não impede a prática e o jargão nacional muito em voga nos últimos tempos, “liberal na economia e conservador nos costumes”, se revela a síntese do modo como o Brasil se configurou: a conciliação do patrimonialismo com o liberalismo amalgamada com a hipocrisia. Tratar do tema, trazê-lo para a mesa de debates baseados cientificamente é o mínimo que se pode esperar de um país que se diz laico, democrático e signatário de tratados de direitos humanos.

Na Suécia, por exemplo, país dito desenvolvido e historicamente confessional, pois se tornou laico somente em 2000, o aborto é legal desde 1975, sendo permitido sem restrições para mulheres grávidas até a 18º semana. O aborto ainda pode ser praticado até a 22ª semana, caso ocorra outros motivos como inviabilidade do feto.

Outros países, como França, Portugal, Inglaterra ou Alemanha, poderiam ser trazidos para mostrar que países desenvolvidos tendem a garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, mas escolher a Suécia tem um significado notável dado que foi usado, durante a pandemia, como exemplo de garantia das liberdades. Lá as liberdades individuais são respeitadas em sua magnitude e profundidade, motivo pelo qual às mulheres é dado o direito de escolha sobre o destino de sua vida e, principalmente, sobre seu corpo.

Os defensores da criminalização desta prática e, portanto, do posicionamento da existência de vida humana desde a concepção se autoproclamam “pró-vida”, mas em verdade isso é um jogo de palavras, pois devem ser nominados apenas como antiaborto. (POLLITT, 2019). Não são pró. Ao reverso, são opositores à escolha individual e à autodeterminação.

Sendo contrários ao aborto, fica a dúvida sobre a vida de quem supostamente se colocam em defesa e em quais condições defendem que serão vividas, pois, muitos destes mesmos antagonistas também são contrários a políticas públicas de assistência social e, em alguma medida, contrários ao cumprimento da lei. Nos EUA e no Canadá, por exemplo, onde há clínicas legalizadas para a prática do aborto, o esquadrão antiaborto (POLLITT, 2018) comanda ações que vão desde lobby junto aos congressistas até ataques a clínicas legalizadas e atentados contra a vida de profissionais de saúde. Novamente a pergunta: defesa da vida de quem?

A criminalização do aborto estigmatiza a mulher, aumenta a probabilidade de morte materna, traz transtornos de ordem psíquica e isenta o poder público de promover políticas públicas sobre direitos sexuais e reprodutivos, mantendo uma espiral de perpetuação de violências dos mais diversos matizes e impedindo a mulher de vivenciar a plenitude de sua vida sexual.

Nem presas nem mortas. Vivas e livres nos queremos. A descriminalização significa a responsabilização do Estado em viabilizar o respeito à vida humana, à condição de sujeito de direito das mulheres e a possibilidade de organizar sua própria vida e estabelecer quando e quantas vezes exercerá a maternidade.

Por: Juliana Leme Faleiros[1].

Nem presas nem mortas. Vivas e livres nos queremos. A descriminalização significa a responsabilização do Estado em viabilizar o respeito à vida humana, à condição de sujeito de direito das mulheres e a possibilidade de organizar sua própria vida e estabelecer quando e quantas vezes exercerá a maternidade.

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Referências:

BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão ADPF 54. Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, 30 abr. 2013. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur229171/false. Acesso em: 26 set. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão HC 124306. 2016. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur364766/false. Acesso em: 26 set. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão ADI 3510. 2008. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur178396/false. Acesso em: 26 set. 2020.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF, 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 26 set. 2020.

DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2017, vol.22, n.2, pp.653-660. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017000200653&script=sci_abstract&tlng=pt Acesso em: 26 set.2020.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. Trad. Coletivo Sycorax.

OPAS/OMS – Organização Pan-americana de Saúde. América Latina e Caribe têm a segunda taxa mais alta de gravidez na adolescência no mundo. 2018. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5604:america-latina-e-caribe-tem-a-segunda-taxa-mais-alta-de-gravidez-na-adolescencia-no-mundo&Itemid=820. Acesso em: 26 set. 2020.

POLLITT, Katha. Pró: reivindicando o direito ao aborto. Tradução de Mariana Rezende. São Paulo: Autonomia Literária, 2018

SINGH, Susheela et al. Abortion Worldwide 2017: uneven progress and unequal access. uneven progress and unequal access. 2017. Disponível em: https://www.guttmacher.org/sites/default/files/report_pdf/abortion-worldwide-2017.pdf. Acesso em: 26 set. 2020.

Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 446. 2018. Rel. Min. Rosa Weber. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf. Acesso em: 26 set. 2020.

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Notas:

[1] Doutoranda e mestra em Direito Político e Econômico (MACKENZIE). Especialista em Direito Constitucional (ESDC). Advogada e Professora.

[2] Nas últimas décadas, dada a permanência da criminalização e deficiência de políticas públicos em muitos países latino-americanos a região tem vivido uma onda verde, ou seja, organizações políticas têm pressionado as instituições para que reverta esse quadro e para isso usam a cor verde. No mesmo sentido, grupos antiaborto se organizam e a América Latina tem vivido pressões importantes denominadas de polítca antigênero.

[3] Ainda mais grave é o dado que mostra que América Latina e Caribe têm a segunda maior taxa de gravidezes na adolescência. A média global é 46 por 1000 meninas, nesta região é de 66,5 nascimentos por 1000 com tendência a crescer. (OPAS/OMS, 2018).

[4] A Audiência Pública promovida pelo STF e conduzida pela Min. Weber, relatora na ADPF 446, é um documento importante para apreender a disputa sobre essa temática. Cf. (STF, 2018).

[5] O caso da menina de 10 anos moradora do Espírito Santo, em agosto de 2020, que, inegavelmente, se enquadra nos moldes legais da legislação vigente, é emblemático acerca do abandono de mulheres e meninas em condições precárias e das arbitrariedades cometidas por autoridades públicas em todos os níveis e áreas de conhecimento.

[6] Considerando a pesquisa, todos nós conhecemos uma ou mais mulheres que já tenham praticado o aborto e, caso não saibamos, talvez não conheçamos tão bem nossas companheiras de vida ou sejamos refratários para exercer a alteridade e a olhar o outro.