A falácia do Ensino Superior democratizado: ações afirmativas são necessárias, e não só elas

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Em 2004, quando cursava a graduação em Pedagogia na Universidade Federal de São Carlos, conheci o racismo por meio do estágio curricular. Não que ele não existisse, mas a mim fora ensinado, ao longo de minha trajetória branca, sobre a democracia racial. Ao mesmo tempo em que o racismo à brasileira se desvelava a mim, entrava em ebulição o debate sobre reserva de vagas com recorte racial e social naquela universidade, assim como em âmbito nacional. Naquele ano, o Plano de Desenvolvimento Institucional da UFSCar, abalizou, dentre suas decisões, a formulação de um Programa de Ações Afirmativas (AA) a ser implementado, isto porque os números eram alarmantes.

Dados do Mec-INEP, presentes em relatório da Comissão de AA da UFSCar em 2006, demonstravam que em 2003, 87,6% das matrículas do ensino médio se concentravam na escola pública e apenas 12,44% na iniciativa privada. Em contraposição, os dados se invertiam no ingresso à Universidade Pública, sendo que apenas 20,1% de seu contingente eram advindos da escola pública, e 79,9% vinham de escolas privadas. O recorte racial se mostrava ainda mais assustador: 20,1% de pessoas que ingressavam ao ES eram negras e 79,9%, brancas.

Contudo, nos últimos dias o IBGE divulgou pesquisa, amplamente comemorada, que indicava o índice de maior percentual negro nas Universidades públicas brasileiras, quando comparado à população branca. Destarte, temos de nos questionar: Se esses dados exprimem a realidade, as Ações Afirmativas já não são mais necessárias? Ao olharmos para a realidade do Ensino Superior no país, é isso que vemos, a multiplicidade social e racial tendo ocupado os campis universitários? Há que tomarmos cuidado.

A pesquisa divulgada na última semana refere-se à PNAD contínua, pesquisa criada em 2011 com o intuito de inferir dados sobre o mercado de trabalho, por meio do índice do rendimento da população, ocupação e desocupação de trabalhadores, dentre outros números. Uma mesma amostra é pesquisada ao longo de cinco trimestres e, complementarmente ao seu objetivo principal, outros dados são coletados, tais como a escolarização. Portanto, ainda que se possa mensurar questões sobre o Ensino Superior, é preciso compreender e verificar seus dados na fonte. Além disso, todos os outros índices da pesquisa, comparativos entre a população negra e branca, demonstram a esmagadora desigualdade racial do país, o que já nos sinaliza um alerta.

O órgão responsável por produzir dados sobre o Ensino Superior é o INEP, e o Censo da Educação Superior de 2018 demonstra que 3,5 milhões de ingressantes em cursos de graduação presencial e a distância naquele ano são brancos. Em relação à população negra este número é de 3 milhões, ou seja, menor. Além disso, dado fundamental, é que 2,4 milhões são pardos e apenas 591 mil pessoas se autodeclaram pretas.

Há outro dado precípuo na pesquisa para compreendermos o cenário do Ensino Superior brasileiro. De quase 8,5 milhões de ingressantes em cursos de graduação em todo o país, apenas 2 milhões são destinados às Universidades Públicas. Por outro lado, quase 6 milhões e meio estão alocados em instituições privadas. Desse contingente, quase 2,7 milhões são brancas, perto de 1,8 milhões se declaram pardas e, menos de 400 mil são pretas. No Ensino Superior Público, os números mostram que em torno de 836 mil jovens se declaram brancos, aproximadamente 645 mil jovens são pardos e, apenas, menos de 196 mil são jovens pretos.

Temos, pois, que a realidade da Universidade ainda não é múltipla, como se propõe as Ações Afirmativas, pois o índice de pardos é em grande medida superior ao número de pretos, dado fundamental para compreender os índices. Além disso, temos que problematizar esse desnível espantoso entre o Ensino Superior Público e a rede privada, entendendo suas causas e consequências.

A democratização do Ensino Superior promovida nos últimos anos, descolada de políticas econômicas que proporcionassem condições de permanência, conclusão e inserção no mercado de trabalho, possibilitando crescimento e estabilidade econômica, além de apenas galgar financeiramente grandes empresas, como a Kroton, produziu um contingente de jovens endividados, que não conseguem pagar suas mensalidades, criando uma dívida de 13 bilhões de reais.

Portanto, além de não podermos realmente comemorar, criamos um grande problema a ser resolvido, com uma geração jovem que sonhou e acreditou com o Ensino Superior e uma melhor qualidade de vida e agora se vê em uma situação financeira pior que antes da Universidade. Não nos enganemos com promessas, retóricas e fantasias.

Por Marisa Demarzo, pedagoga e doutoranda em Educação pela UNICAMP.