Entre paus e pedras – Política, Sangue e Carnaval em São Paulo

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“Encheram minha boca de sal e, depois disso, me deram urina para beber.”

“A gente era cercada nua, por homens ameaçando de abuso sexual o tempo todo.”

“Os torturadores sabiam que ele tinha um grave problema nos rins e após os golpes ele passou a mijar sangue. Ele pediu socorro, mas não foi atendido. Depois foi divulgado que ele foi morto em tiroteio que o carro em que estava pegou fogo.”

“Me prenderam em casa e me levaram para Casa Azul. Lá me bateram com vontade. Me retiraram daqui semi-morto. Saí vestido numa saia, pois não podia botar uma calça [por conta dos ferimentos causados pela tortura]”.

“Eles me bateram e disseram ‘se você não disser onde está o Porfírio mato seu marido e seu irmão’. Disse: ‘não digo porque não sei. Se soubesse também não diria’. Reuni minhas forças e dei um tapa no soldado, que cambaleou. Ele me deu um ‘telefone’ e eu desmaiei. Acordei toda molhada de cachaça e vômito.”

As entrevistas com vítimas da Ditadura são abundantes na internet e estão disponíveis no relatório da Comissão da Verdade. Existe site disponível para divulgar as informações colhidas quando da realização das 3 Comissões da Verdade. As histórias, as mais degradantes da nossa condição humana. Em geral, homens armados mutilando o corpo e a mente de pessoas comuns, supostamente vinculadas “ao grande mal do mundo, o comunismo”. O que machuca e envergonha a nossa sociedade é que, na ausência de uma abordagem transparente e a condenação dos envolvidos, o eco dos porões da Ditadura insistem em se fazer presentes.

Sobre o assunto, sem ferir a história e a complexidade pertinentes (já debatidas detalhadamente no DISPARADA pelo colega Paulo Ricardo Barbosa de Lima), a mais recente biografia de políticos brasileiros insiste em perpetuar grupos com discursos simpáticos à truculência das ditaduras, sob um falso manto de “nacionalismo”. Vale dizer que as ditaduras latino-americanas em nada foram nacionalistas. Não defenderam os interesses de seus povos, ao contrário, foram parte da estratégia norte-americana de combate ao “perigo vermelho”, dentro e fora de seu território, sob o manto da “Aliança para o Progresso”.

Infelizmente, anos depois, fica clara a influência dos “grandes irmãos do norte” por sobre a estratégia militar brasileira. Repare: na verdade os militares brasileiros torturaram e mataram seus compatriotas em nome do interesse americano. Jamais foi em nome de um projeto nacional. Ao contrário, valendo-se de um inimigo que não era comum (em defendendo o próprio ponto de vista, o Brasil jamais precisaria se submeter a nenhum dos lados), fato é que os militares escolheram oferecer o pescoço à coleira estadunidense e investir contra o próprio povo. Traição no seu mais puro extrato.

Triste, mas se repete. As imagens da “Marcha da família com Deus pela liberdade” deixam clara a estratégia se repetindo. Se não por influência americana (o que apenas a história vai comprovar) por mimetismo barato da mediocridade da classe média brasileira. “Queremos governo cristão”, ou “Verde, Amarelo sem foice nem martelo” foram substituídos por “Fora PT” ou “Minha bandeira jamais será vermelha”, sendo repetido constantemente em brados por aqueles que se julgam defendendo a nação.

Fracasso.

Fossem de fato entender o tabuleiro político, saberiam que a ninguém interessa um projeto imposto de “fora para dentro”. Os comensais das sombras da ditadura vão ao exterior bater continências às bandeiras estrangeiras e pedir apoio aos “grandes irmãos”. São respondidos com a profunda indiferença. Atualmente, os laços de domínio por sobre o Brasil não dependem mais da influência militar. A intoxicação ideológica, os padrões de consumo, os valores, tudo isso não depende mais dos militares para ser implantado e assentado na América. Dominados os índios, os bandeirantes são tratados como escória. A política ama traições, mas abomina o traidor”.

Sobra, para o futuro a reconciliação entre os militares enxotados pelos seus grandes irmãos com a sociedade, vítima da traição. Um desafio que requer sentar-se à mesa e rediscutir os rumos das instituições, os objetivos nacionais e as interações com o povo. Mais ditadura não ajudará os militares, ao contrário. É a sociedade assustada, temerosa de que o cão volte a morde-la, que mantém seus defensores raquíticos, enjaulados na mediocridade e execrados pela história. Está na hora de rever esse quadro.

No entanto, os grupos que “defendem o regime mais liberal” e não se negam a constantemente aparecer entre sorrisos e abraços com as viúvas da ditadura incitam a juventude à estupidez. Caso claro foi a tentativa de manifestar apoio à truculência incitando a memória do regime militar de forma jocosa com a tortura do povo. Fazer bloco de rua com piadas sobre os porões da ditadura é incitar o cachorro raquítico a latir para seu dono traumatizado. A combinação é explosiva e agrava a situação crônica do relacionamento.

O resultado não poderia ser diferente: como incitação à violência não resolve a violência (ao contrário, a estimula), tivemos o espetáculo de estupidez finalizado em grande ato. Os “grandes defensores da ditadura” não aguentaram minutos de sprays de pimentas e pancadas na cabeça. Ora, estranho que defendam e façam graça da memória dos torturados se não aguentam, por breves minutos, a truculência como forma de solução dos problemas.

Os vídeos de reclamações não são poucos. Os organizadores se revoltaram, disseram fazer questão de levar o bloco à frente. Lamentável não enxergar o quanto prejudicam com isso a memória de militares sérios, que foram prejudicados e permanecem sendo, por conta de uma relação estremecida entre as corporações e a sociedade que lhes deveria dar apoio. Para cada Ustra que existiu, existem 10 Lott buscando entregar progresso para o Brasil. Para cada Golbery, 20 Heliodoros.

Entre paus e pedras a memória de uma abordagem atávica sobre a Política leva o Brasil a permanecer na sua rota eterna de Carnaval, Sangue e acomodação com o seu futuro.