Esquerda brasileira precisa fazer mais perguntas do que diagnósticos

Esquerda brasileira
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Um dos piores inimigos da compreensão efetiva da realidade é a presunção. Outro é a crença de que somente especialistas têm pistas possíveis e seguras da verdade. Ambos acometem tanto os que se assumem agentes autorizados do conhecimento como os que nestes depositam fé por sua especialidade reconhecida.

Pode parecer jogo de palavras, mas é para sugerir que a esquerda brasileira talvez esteja precisando, sim, fazer mais perguntas do que diagnósticos sobre o que vem acontecendo com ela e o Brasil, conforme propõe o recente artigo de Vladimir Safatle, no “El País”, intitulado “Como a esquerda brasileira morreu”.

O artigo causou certo desassossego em alguns setores, com reações até despropositadas e agressivas contra o autor. Tanto mais porque o próprio Safatle se propôs a fazer perguntas com hipóteses, sem apresentar alguma alternativa ao fundo de poço a que chegamos, reconhecendo que a morte atingiu a própria classe intelectual a que o autor pertence, como ele fez questão de admitir entre parênteses.

Transcrevo o que ele disse: “É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível neste momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo. Isso vale tanto para partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação.”

Independente de concordar ou não com ele, aproveito suas palavras para pensar de forma científica, já que ele mesmo fala em hipótese, cujo mérito nem é o meu propósito discutir neste presente texto – e que, se fosse o caso, estaria aí, a hipótese, para ser corroborada ou refutada com outras hipóteses.

Penso que um bom método científico se faz pela formulação de novos problemas, e não somente por achados empíricos inéditos, muito menos por aqueles que se encaixam mais às nossas crenças. As luzes do conhecimento não estão prontas para serem acesas. Elas não existem, de forma acabada, mas são engendradas no processo conflituoso da vida.

Por outro lado, dizer que a esquerda morreu ou que chegou ao fundo do poço, como eu escrevi num texto recente, não significa desânimo ou achar que a direita venceu de vez e para sempre. Também não teria aqui o estoque total de perguntas que entendo que devem ser feitas para se compreender o que está acontecendo com a esquerda e o Brasil. Até porque elas vão surgindo no tal processo conflituoso da política e da vida em geral.

Por exemplo: por que o governo neofacista consegue aprovar uma reforma da previdência, ferrando o presente e o futuro de amplas camadas da sociedade, mas a esquerda não consegue mobilizar o povo nas ruas contra isso tudo? É uma questão só de propaganda e convencimento? Então o governo é super-competente em seu maquiavelismo ultraliberal e o povo é burro?

Da mesma forma, governo e parlamentares conseguem se articular e aprovar medidas para flexibilizar as leis trabalhistas – e fica por isso mesmo? Pergunta: por que a esquerda não conseguiu mobilizar o povo nas ruas para impedir essas mudanças? Um ministro da educação desrespeita professores e alunos, a esquerda não consegue galvanizar movimentos e atos para pressionar pela demissão dele, por quê?

Se existem alternativas elaboradas – disso sabemos que há – aos descalabros propostos e sendo postos em execução pelo governo na economia e em outros áreas, porque a esquerda não consegue mobilizar o povo nas ruas e setores diversos da sociedade para mudar a rota? Por que o povo não se mobilizou nas ruas pelo esclarecimento definitivo do assassinato da vereadora Marielle Franco e Anderson Gomes? Ou a esquerda seria contra uma mobilização por esse tipo de causa?

Por que propostas interessantes sobre diferentes questões de políticas públicas formuladas por Ciro Gomes, Lula, Flavio Dino, além de outros, não têm desencadeado um processo de convergência das forças que podemos considerar de esquerda? O que o movimento estudantil está fazendo nesse momento em termos de debates, articulações, movimentos contra o governo Bolsonaro

Poderíamos intuir ou apurar respostas em relação a seguinte questão: por que o PT acabou encarnando o que se entende por “esquerda” com todas as contradições que conhecemos sobre as políticas neoliberais continuadas pelos governos de Lula e Dilma? Enfim, são apenas perguntas dentre muitas outras possíveis no fio de novelo a ser puxado para uma reflexão mais profunda sobre a esquerda e o Brasil hoje.

Em meio às indagações diversas, nossos afetos, escolhas e preferências nos induzem a crenças sobre caminhos que achamos o melhor. Ninguém é dono da verdade, e aqui me reporto a György Lukács sobre a importância do acaso na vida dos homens e mulheres. Isso mesmo, do acaso! Diz o pensador:

“Ao passo que, no próprio processo do trabalho, em decorrência do surgimento do trabalho médio enquanto determinação do ser decisiva nesse ponto, a casualidade costuma aparecer apenas como valor limítrofe na probabilidade estatística das legalidades, ela passa a ser uma qualidade essencial do ser – dependendo do caso, de valência positiva ou negativa –, das conexões do ser social que surgem desse modo. Reportamo-nos ao dito de Marx de que, em cada caso dado, sempre depende do acaso quem está a frente de um movimento dos trabalhadores. Isso não se refere só à esfera política, mas ao quadro completo de toda atividade ideológica.” (p. 630-631). “Para uma ontologia do ser social, vol. II”, São Paulo: Boitempo, 2013).

Enfim, temos processo histórico, determinações na gênese das configurações sociais, políticas e econômicas e acasos. O que está em jogo são nossas vidas e a vida das gerações futuras. O que fazer? E como fazer? Última pergunta, sem esgotar a possibilidade e necessidade de outras, claro: será possível uma alternativa alvissareira que reúna esquerdas e forças liberais para derrotar Bolsonaro o avanço do obscurantismo?

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