EUA, a restauração interminável

Por Gilberto Maringoni - As cenas de soldados camuflados ocupando galerias do Congresso dos EUA parecem deslocadas na chamada mais sólida democracia do planeta. Será mesmo? Vale a pena olhar um pouco para trás.
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Por Gilberto Maringoni – As cenas de soldados camuflados ocupando galerias do Congresso dos EUA parecem deslocadas na chamada mais sólida democracia do planeta. Será mesmo? Vale a pena olhar um pouco para trás.

A Guerra Civil Americana (1861-65) é, depois da Revolução Francesa, o grande processo histórico que possibilitou o advento da modernidade. Se na Europa a ascensão de uma nova classe social ao poder de Estado redefiniu a superestrutura social, com uma nova institucionalidade e uma surpreendente divisão de poderes, na América do Norte o que se colocou em pauta foi a infraestrutura econômica do capitalismo moderno. Vencer o atraso e possibilitar o desenvolvimento significava ampliar e dar elasticidade ao mercado interno e adotar o trabalho livre como relação social fundamental. Mudanças tectônicas na configuração do Estado foram negociadas, engendrando uma intrincada teia de pactos federativos.

Para isso, o país teve a felicidade de contar com uma liderança a altura do momento histórico, Abraham Lincoln, que não teve dúvidas em deixar as boas maneiras de lado e encarar como inevitável o enfrentamento armado com metade do país.

O Sul, à época, tinha muito mais a ver, em sua configuração econômica e social, com os países abaixo da fronteira do rio Grande do que com o Norte industrializante. Não à toa, os planos dos líderes latifundiários era criar um país que incorporasse pedaços ainda não conquistados do México e da América Central, tendo por base a monocultura do algodão e de alguns outros produtos, com a difusão da escravidão. Esta acabou no início da Guerra, mas suas feridas seguem abertas até hoje, apesar das heroicas lutas pela garantia dos direitos civis.

As cenas de tropas da Guarda Nacional, armadas até os dentes, tomando o Capitólio na tarde desta quarta (13) não são cenas deslocadas no espaço, não são imagens que cairiam bem em El Salvador ou na Guatemala, ou mesmo no Brasil de Bolsonaro. São cenas fantasmagóricas da Guerra, do conflito com o Sul racista, escravista, preconceituoso e excludente que persiste numa Restauração que atravessa séculos.

A Guerra Civil é matéria liquidada, obviamente. O país é outro, sua composição étnico-social se alterou fortemente com as ondas imigratórias e os EUA se tornaram a potência hegemônica no mundo. Mas as raízes históricas do conflito seguem em frente, potencializados pelo fato da curva de prosperidade ter se interrompido. Cada vez mais os filhos têm uma condição social inferior à dos pais. Os descontentamentos se misturam com as ações de uma extrema direita que agora assume o figurino trumpista e que se consolida como corrente de opinião no Partido Republicano (ironicamente, o de Lincoln) e na sociedade.

O que o outro lado, um suposto Norte modernizante, tem a oferecer hoje, para além dos falcões de Wall Street e dos senhores da Guerra? O que tem a oferecer a um país de desigualdades crescentes, que nunca teve um Estado de bem-estar, e dividido quase ao meio?

Os fantasmas da Guerra Civil ainda sobrevivem. É pouquíssimo provável que a situação descambe para um descontrole social. Mas os escorpiões estão loucos para saírem da caixinha.

Por: Gilberto Maringoni.