Fantasmas e feitiços: ler O Capital 150 anos depois

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  1. Reduzido ao status de clássico, daqueles que é preciso conhecer mas nunca estudar, Marx é muitas vezes tratado como um “cachorro morto”, um cadáver que tantas correntes teóricas – da teoria marginalista à filosofia pós-estruturalista – teriam cumprido a tarefa de enterrar. Nada poderia ser mais enganador. 150 anos depois da publicação da primeira edição do Livro I de O Capital (1867) – o início do projeto ambicioso de produzir uma crítica da economia política, isto é, de colocar em xeque não uma teoria ou um autor, mas toda uma ciência social – sua teoria nunca foi tão atual.

Marx não era economista. Filósofo de formação, jornalista de profissão, seu objetivo teórico estava longe de ser a correção das teses de Adam Smith e David Ricardo. Como disse em uma carta de juventude, sua auto-imposta missão era a de levar a cabo a “crítica impiedosa de tudo o que existe”. Dele próprio incluso, é preciso dizer. Seu voraz auto-questionamento não o permitiu concluir os outros volumes do Capital – sobre a circulação e sobre o processo global de produção, respectivamente –, cabendo a Engels publicá-las heroicamente a partir dos rascunhos caoticamente deixados após sua morte.

É inócuo, portanto, o esforço de produzir um Marx homogêneo, harmônico, sem contradições, em que os textos engajados da juventude complementam a rigorosa análise categorial da maturidade – um esforço que tanto entusiastas quanto detratores insistiram em realizar. São justamente essas “linhas de fuga”, suas inconsistências e vacilações, que fazem do projeto marxiano uma tarefa a ser ainda cumprida pelas gerações que vêm, gerações que passam a enxergar com novos olhos críticos não só a realidade, mas também esse livro tão impactante.

Mesmo os leitores de má vontade, que insistem em afirmar Marx como um “homem de seu tempo”, precisam admitir que O Capital é um livro extraordinário. Não bastassem as mais de 700 páginas logicamente encadeadas e a escrita compenetrante, que passa da discussão de um árido conceito econômico a uma citação de Aristóteles ou Shakespeare com uma naturalidade invejável, O Capital é definitivamente um dos livros formadores do que foi o século XX. Mas o valor de Marx de modo algum se resume ao seu impacto histórico. Para a infelicidade de seus críticos, Marx não queria analisar o funcionamento concreto do capitalismo – uma análise que estaria fadada ao esquecimento ao ser produzida em uma época em que carros sequer existiam –, mas sua estrutura fundamental, o núcleo constitutivo da sociedade capitalista que permite diferenciá-la das outras formas de organização social. Se diagnosticamos que ainda vivemos no capitalismo, então a crítica de Marx continua sendo a única a realizar esse feito e a ela que inevitavelmente voltamos em tempos de crise, como os que vivemos.

Muitos seriam os caminhos possíveis para apresentar a relevância de Marx para a análise contemporânea, mas prefiro me ater a uma metáfora muito precisa da obra de Marx: a assombração do valor que sustenta a dominação social capitalista. Seria um erro desprezar as metáforas de Marx. Sua crítica às “robinsonadas” (em alusão a Robinson Crusoe, de William Defoe), suas paráfrases bíblicas (“eles não sabem, mas o fazem”), as comparações do capital com o Mefistófoles (do Fausto de Goethe), longe de meros adornos da escrita, são justamente a forma pela qual Marx busca na estética e na religião a linguagem necessária para transmitir suas ideias e realizar a crítica de uma ciência que, ainda nos dias de hoje, se propõe a explicar o fundamento de tudo. Ironicamente, é justamente no desconhecido e inexplicável que Marx vai localizar o calcanhar de Aquiles do esforço racionalista de entender o mundo sem apresentar sua “razão”. Hic rodus, hic salta!

Marx escreve em um tempo no qual surgia a antropologia moderna e se consolidava o evolucionismo social. Obras clássicas como A cultura primitva (1871) de Edward Tylor e A sociedade antiga (1877) de Henry Morgan são obras que consolidam teoricamente uma forma de compreender as sociedades humanas extremamente influente no período vitoriano inglês. O clássico de Charles Darwin, A origem das espécies (1859), contribuiu significativamente para esse contexto, dando as bases para as teorias que transpunham a evolução das espécies para a evolução das sociedades e que colocavam a Europa e os Estados Unidos no ápice desse processo de crescimento do espírito humano. Marx era um grande admirador de Darwin. Chega a enviar uma cópia especial do Capital ao grande biólogo e a dizer que vê sua própria obra como uma espécie de continuação da teoria da evolução na análise das sociedades. Contudo, seria um erro grotesco juntar Marx no bojo dos evolucionistas sociais, algo que fica especialmente claro em uma das análises mais negligenciadas do Capital: a passagem sobre o “fetichismo da mercadoria e seu segredo”.

É possível dizer que a ideia de fetichismo em Marx se aproxima da ideia de “animismo” de Tylor, uma espécie de força espiritual que se apropria de objetos comuns dando a eles características mágicas que só fazem sentido para os membros daquela cultura. A diferença de Marx perante os antropólogos novecentistas é que ele não via o animismo como um delírio primitivo, muito pelo contrário: encontrava sua forma mais delirante no cerne da sociedade moderna, no núcleo fundamental da sociedade capitalista, isto é, na forma mercadoria. A análise do feitiço da mercadoria – o termo alemão usado por Marx (Fetichismus) tem origem, precisamente, na palavra portuguesa “feitiço” – dá substrato precisamente para compreender como opera a “ilusão” típica da sociedade capitalista, uma ilusão tão irracional quanto a dos totens e bonecos voodoo ironizados pelos acadêmicos europeus e americanos.

A teoria do fetichismo é o fundamento social para a teoria do valor de Marx. Esta, muito longe de uma teoria econômica, busca precisamente explicar  como uma relação social pode se revelar objetivada na sociedade, como se dá os efeitos dessa percepção ao mesmo tempo ilusória e real. Como o valor, sendo uma abstração que se apresenta no mundo somente por meio de suas representações (no valor de troca, na forma-dinheiro), pode ter uma realidade inquestionável que independe da consciência humana e que possui efeitos materiais concretos na organização social.

O enigma do valor, portanto, não deve ser procurado na mente dos trocadores de mercadorias, mas em suas ações, na sua prática. Uma abstração geralmente é fruto do pensamento. Toma-se um conjunto de particularidades e abstrai-se uma categoria que seja comum a todas, mas que não existe naquele universo de particularidades, por exemplo. No caso do valor, no entanto, estamos lidando com uma abstração real, uma abstração que surge pela própria ação humana independentemente de sua consciência. O caráter “místico” da mercadoria está justamente no semblante objetivo, “coisal” pelo qual a mercadoria se apresenta socialmente. Não se trata de um fenômeno subjetivo ou uma simples percepção falsa da realidade. Ao contrário, o fetichismo da mercadoria, ou o feitiço que a forma-mercadoria lança sobre a sociedade, é o que permite que “uma relação social determinada entre os próprios homens” assuma para eles “a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”, que uma sociedade pode ser governada por coisas.

É claro que as coisas não vão sozinhas ao mercado, são as pessoas que as levam. O ponto de Marx, contudo, é que as relações sociais próprias e fundamentais da sociedade capitalista – ainda que não sejam as únicas – não se dão diretamente entre as pessoas: são mediadas por coisas, pelas mercadorias. As pessoas relacionam entre si seus produtos de trabalho como valores, estabelecem preços, vendem suas mercadorias em troca de dinheiro, compram produtos para satisfazer suas necessidades etc. e graças a isso permitem que os valores e os trabalhos abstratos se relacionem entre si estabelecendo uma proporção. Por essa razão, afirma Marx, quando se diz que a relação de troca se dá pela equivalência do trabalho abstrato “salta aos olhos a sandice dessa expressão”, mas quando se vai ao mercado e compra um produto com dinheiro, a relação de seus trabalhos privados com seu trabalho social total lhes aparece “exatamente nessa forma insana”.

No ato de troca é gerada uma abstração real que surge para eles como algo que não é resultado da relação de troca, mas de algo aparentemente inerente às mercadorias e, mais amplamente, inerente à sociedade como um todo: parece que as coisas naturalmente possuem “valor”, como possuem peso, volume ou cor, e portanto seguem leis objetivas às quais devemos simplesmente nos submeter, como a lei da gravidade. A diferença entre a lei da gravidade e do valor, contudo, é que essa é puramente social, não existe fora das sociedades capitalistas e nem continuará existindo em uma sociedade pós-capitalista – ainda que hoje se imponha como tal.

A ideia de que existe uma “relação social entre coisas” (a famosa “reificação” das relações sociais) não é uma metáfora. No capitalismo, as coisas de fato se relacionem entre si, os seres humanos apesar de atores do processo, apenas obedecem à lógica da mercadoria, por mais destrutiva e irracional que ela possa se tornar. É a própria relação, portanto, que produz os efeitos e não uma consciência prévia à relação – mesmo a consciência de uma “classe dominante” . É como a hierarquia militar: a relação entre superior e subordinado não surge idealmente na cabeça de nenhum dos dois, mas da prática, da efetivação dessa relação – e, como no exemplo da hierarquia, não basta discordar individualmente dessa abstração pois ela se impõe objetivamente àqueles que dela participam.

A tese de Marx é a de que a sociedade que se estrutura pela troca de mercadorias não se baseia em algum tipo de alucinação coletiva, mas em uma espécie de miragem. Quando alucinam, as pessoas têm suas faculdades mentais obscurecidas, enquanto que em uma miragem são os próprios elementos “objetivos” que se apresentam de forma distorcida para a consciência. A ilusão, desse modo, não está nos olhos e na cabeça de quem vê, mas no próprio objeto do olhar: se a alucinação é uma ilusão subjetiva, a miragem causada pelo fetichismo da mercadoria é uma espécie intrigante de ilusão objetiva, uma ilusão que se apresenta na própria coisa por não ser fruto de um erro individual, mas de relações sociais que se dão de forma não consciente. Os teóricos que insistem em uma compreensão da ideologia como “falsa consciência” – um erro solucionável com uma boa dose de “ciência” marxista-leninista e consciência de classe – ignoram essa dimensão do fenômeno. A consciência  do processo não exime ninguém de estar enredado em relações fetichistas e de lidar de forma fetichista com o mundo (como quando vai no mercado e se preocupa com o preço e com o dinheiro no bolso, e não com todo o processo de trabalho e de valorização envolvido).

Na sociedade capitalista, a consciência espontânea das pessoas sucumbe ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro. O fetichismo, portanto, não esconde as relações “reais” por meio de relações “ilusórias”, ele é constitutivo das próprias relações “reais”, da relação de troca, da equivalência de valor, da inserção do trabalho particular concreto no trabalho abstrato da sociedade. Sem ele não seria possível essa relação social mediada pela relação entre coisas. É central para Marx, no entanto, o aspecto inconsciente envolvido no fetichismo, condição para que esse encantamento funcione. Não se trata de mera ilusão, novamente, posto que a própria efetividade social do processo depende de os indivíduos envolvidos nela não estarem cientes de sua lógica subjacente.

É claro que a forma-dinheiro e a forma-mercadoria só podem funcionar em uma sociedade que age de acordo com a sua existência. Se todos parassem de agir como se um pedaço de papel representasse o “valor” das coisas, tivesse “permutabilidade imediata” para adquirir seus produtos necessários à sobrevivência, a relação de valor seria impossibilitada. O fetichismo, portanto, não só é um fenômeno que se estrutura a partir da sua não-consciência (posto que as pessoas têm plena consciência de que possuem no bolso “apenas” um pedaço de papel), mas um fenômeno objetivo que possui uma força material própria. Não só eles “não sabem, mas o fazem”, como saber não muda a obrigação de continuar agindo dessa forma para sobreviver. Como Marx percebeu, sua descoberta científica (no nível da consciência, portanto) não tem o poder em si de alterar a realidade, da mesma forma que “a decomposição científica do ar em seus elementos deixou intacta a forma do ar”.

Por isso, em Marx, a transformação social não pode se dar pela “educação”, pela “ilustração”, pela “consciência” simplesmente, mas pela ação política concreta, que não tem uma relação imediata com essa consciência. Apesar da mudança de foco da sua obra teórica madura, Marx ainda mantinha a ideia de que toda a crítica do mundo feita até então ainda não teria sido apta a transformá-lo, e nesse sentido continua a estar certo. A “consciência” dos indivíduos opera dentro dos parâmetros “inconscientes” da forma mercadoria. Isso é o que estrutura uma formação social em que “o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção”. Ou, como ele famosamente formulou no 18 de Brumário de Louis Bonaparte, “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem circunstâncias sob as quais ela é feita”. A descoberta de Marx não está na afirmação de que a história é um produto das pessoas, mas no desamparo delas perante o que elas mesmas criaram.

Não é à toa que para Marx o valor se revele na dinâmica do capitalismo como uma “objetividade fantasmagórica”, na “forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. A metáfora do fantasma é precisa, pois eles não precisam “materialmente” existir para nos assombrar. Do mesmo modo, o fato de o valor não ser tangível não o impede de causar efeitos como se fosse. A “verdade” do fantasma (ou do valor) não importa para os seus efeitos: quem corre de um fantasma não se importa no momento da fuga com a sua existência material. Da mesma forma, não importa se o dinheiro é um mero pedaço de papel se sem ele não é possível sobreviver, se a sua ilusão se impõe socialmente de maneira incontestável. Como já havia alertado Marx, a mercadoria pode realmente nos assombrar “muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria”.

O fetichismo da mercadoria não está em nossa mente, no modo como percebemos “falsamente” a realidade, mas na própria realidade. Não basta estar ciente do fetichismo envolvido nas mais banais atitudes da vida cotidiana, pois ele se impõe a todos ainda assim e com isso conforma as ações e a organização social. Desse modo, a “irracionalidade” envolvida no fetichismo faz com que o capital seja o verdadeiro sujeito autônomo dessa “fenomenologia do antiespírito”, como diria Theodor W. Adorno. Não a transposição do progresso humano para o pensamento, mas justamente o anúncio do declínio da sociedade moderna. A dinâmica capitalista só faz cavar sua (e a nossa, consequentemente) própria cova ao gerar, pelo seu próprio desenvolvimento, barbáries antagônicas aos valores iluministas e racionalistas que eram (em tese) seu pressuposto inicial, como a história de guerras, genocídios, totalitarismos, fome e pobreza do último século pode facilmente demonstrar.

Não é à toa, portanto, que a política do início desse novo milênio esteja cada vez mais se afastando dos ideais deliberativos dos democratas apaziguados prometidos pelos profetas do “fim da história” e ressuscitando ideologias que pareciam estar enterradas, que ressurgem como assombrações catastróficas na Europa, nos EUA, no Brasil e no resto do mundo. O “impulso cego e desmedido” do capital está destruindo a própria sociedade e mais urgente do que nunca é preciso puxar o freio de emergência do trem da história que segue rumo ao abismo. O tempo está correndo e a solução não se dará num passe de mágica.