Torcidas de futebol nos ensinam contra o erro tático de crucificar os arrependidos

Torcidas de futebol nos ensinam contra o erro tático de crucificar os arrependidos
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Talvez seja um erro tático criticarmos em tom de crucificação aqueles que declaram publicamente seu arrependimento por terem votado em Jair Bolsonaro. Critiquemos, mas com a canja da serenidade. Há casos e casos, e aqui não quero amenizar as coisas para os arrependidos bem educados, letrados ou “sensíveis” por sua atividade artística ou profissional. Tirando boçais, corruptos e truculentos dementes, precisamos ganhar os eleitores que ou anularam o voto ou votaram com o espírito da negação marcado pelo antipetismo fabricado e despropositado. Não adianta esperar que eleitores votem sempre deslocando-se de sua condição de classe social.

Costumo dizer que não existe voto certo ou errado, pois as urnas são nossa “aposta institucionalizada”, para usar a expressão do cientista político Guilhermo O’Donnell. O voto não é cheque em branco, pois, afinal, mesmo aqueles eleitos com nosso voto, se traírem nossas expectativas, não terão nosso apoio em futura eleição. E institucionalizada por sua rotina legal garantida e previsível como principal ação de accountability vertical realizada de quatro em quatro anos. A alternância no poder é a mais importante situação desse tipo de modalidade de accountability por permitir retirar do poder os governantes sem rupturas ou ações traumáticas.

O termo accountability, sem tradução para o português, pode ser entendido como prestação de contas para fins de responsabilização, conforme trata a teoria política contemporânea. A vertical seria o conjunto de ações de fiscalização e manifestações de protestos oriundas da sociedade sobre o governo, tais como, além do voto, o jornalismo, pressões de movimentos sociais e outras situações. Já a denominada accountability horizontal é a realizada de forma intraestatal como, por exemplo, fiscalizações do ministério público, tribunais de contas, comissões do legislativo, ouvidorias e outras formas.

Não vem ao caso aqui nem debater sobre princípios e o sentimento daqueles que previram o que seria o governo Bolsonaro e agora se indignam com os arrependidos. Se entrássemos por essa vereda, talvez tivéssemos que refletir também sobre a luta de classes na sociedade capitalista e, paralelamente, também sobre o que é consciência de classe, fenômeno mais difícil de compreender. Arrisco a dizer que arrependidos, mas também muitos que berram contra Bolsonaro, não têm consciência de classe, e isso por sua própria condição de classe.

Parece evidente e compreensível até a indignação contra os arrependidos diante do desastre a que chegamos. Entretanto, a veemência do dedo apontado na cara dos arrependidos embute também, em muitos casos, a arrogância da presunção ideológico-política de empunhar seu voto como sendo mais graduado ou qualificado que o voto dos demais eleitores.

É a pretensão, por exemplo, daqueles que acham que seu voto é superior ao do clientelismo difuso pelo qual o eleitor elege o político em troca de telhas, camisetas, dentaduras, uma indicação para emprego e outras coisas. No entanto, o voto equipara todos, independentemente de classe social, na hipocrisia da igualdade política que chancela as desigualdades econômicas. O voto em si já é uma contradição do ponto de vista rousseauniano por delegar a outro sua própria soberania. Por que seria mais desqualificado o voto do sujeito que tem sua casa destelhada no político que promete resolver seu problema?

Já Schumpeter lembraria que o voto faz parte do método para chancelar a disputa entre elites. Que o voto seja racional, ideológico, pragmático ou retrospectivo para cada eleitor à sua maneira, isso a democracia não tem como controlar ou julgar em termos de valor ideal, em abstrato, muito menos que alguns seletos tenham condições de provar que seu voto é mais qualificado que o dos demais eleitores mortais.

Ora, voto também não é hóstia consagrada ou tatuagem eterna na alma do eleitor. Não é como flâmula ou bandeira de times de futebol – o que nos remete, inclusive, contraditoriamente, para a grata ironia do exemplo de torcidas arqui-inimigas, que vêm se juntando em protestos contra o governo e pela democracia. Torcidas do Corinthians e do Palmeiras estão dando uma lição aos “politizados” arrogantes e aos donos da verdade. Histórica e aguerridamente adversárias, elas nos convidam a pensar sobre a necessidade dos momentos de tática e de estratégia, considerando as condições e a existência de um inimigo em comum.

Sim, não temos apenas um inimigo, mas o atual e principal do momento chama-se Jair Bolsonaro. Principal inimigo justamente por estar no governo desmontando o estado nacional e destroçando os mecanismos da democracia. Bolsonaro não precisa nem dar golpe algum. O golpe já aconteceu em 2016. Suas ameaças recentes (que não têm como prosperar mais) fizeram parte da cortina de fumaça dentro da tática para desestabilizar seus opositores por conta da inação do governo. Não tendo políticas públicas concretas, o governo vai vendendo o país em suas articulações golpistas e corruptas, além de coadunar a defesa da família do presidente, o que não deixa de ser uma pedra no sapato dos seus apoiadores.

Muitos eleitores de Bolsonaro, incluindo intelectuais e pessoas esclarecidas, apesar de sua condição, assim como muitos eleitores em geral, ignoram a complexidade do processo de políticas públicas, acreditando que indivíduos, de forma isolada e demiúrgica, possam dar jeito no país, independentemente de outros atores e do conjunto das diversas instituições. Ajudaram a eleger Bolsonaro por uma mistura de ignorância e afetos de simbologia. Ignorância não no sentido da burrice ou boçalidade, mas no de desconhecer como funciona a luta pelo poder e como ocorrem as políticas públicas no chão da realidade.

Deveríamos, por acaso, execrar agora a TV Globo porque ela foi um dos atores que contribuíram para a eleição de Bolsonaro? Ela que, também agora, luta contra ele? Se Bolsonaro tentasse acabar com a TV Globo, iríamos defender quem? Amanhã ou depois vão dizer que meu voto foi pior porque votei em Ciro Gomes no primeiro turno, mas supostamente melhorou depois no segundo turno por ter votado em Haddad? Mudei minha perspectiva ou apenas de posição eleitoral?

Nesse momento, carregar na tinta da execração pública dos arrependidos talvez seja emparedá-los num ressentimento desnecessário. Talvez contribua para empurrá-los para um eventual futuro voto nulo – voto que talvez precisemos não seja nulo nas próximas eleições. Tão acoitados pelos que se posicionam pretensamente por um suposto voto mais qualificado, acabam sentenciados definitivamente, como no gesto da suástica gravada à faca na testa do chefe da Gestapo pelos bastardos inglórios.

Mas, no filme, os gestos extremos se justificavam – tanto como metáfora como na alusão à verdade histórica – pelas condições de guerra que fizeram estados nacionais divergentes se aliarem para derrotar um inimigo. Mal comparando, algo em comum com o Brasil de agora, em que os extremos justificam-se mais pela necessidade de táticas e estratégias do que de declaração de princípios óbvios. Os arrependidos das últimas eleições devem ser criticados, sim, mas não submetidos a uma pena capital e definitiva. Precisamos mais de ação do que de marcação de posições já conhecidas para reverter o quadro atual.

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