As Garras Imperialistas sobre o Saneamento Básico

As Garras Imperialistas sobre o Saneamento Básico
Botão Siga o Disparada no Google News

O lobby cleptocrático conquistou mais uma vitória em Brasília: a aprovação do PL 3261/2019 que sacramenta a entrega do saneamento básico brasileiro. O texto de autoria de Tasso Jereissati agora volta para o Senado, onde muito provavelmente será ratificado. A privataria desmedida é completamente injustificada não apresentando uma única razão econômica. Sob o verniz de uma “agenda social”, aprofunda-se ainda mais o gigantesco déficit do setor. Neste cenário, os fundos de investimentos imperialistas, sedentos por abocanhar setores lucrativos e com baixo risco, afiam suas garras para tomar mais esta veia exposta de nosso país.

De todos os números que atestam o nível de destruição neoliberal do Brasil, talvez o mais revoltante seja o déficit de saneamento básico. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) apontam que cerca de 39% das residências urbanas brasileiras não possuem coleta de esgoto. Há grande disparidade regional na cobertura: no Nordeste este mesmo índice sobe para gritantes 63,7% e no Norte atinge a marca 86,7%. Uma verdadeira vergonha nacional.

As estimativas sobre o volume de recursos necessários para zerar esse déficit absolutamente escandaloso variam bastante. As cifras da equipe econômica de Guedes, famosa por sua “contabilidade criativa” dos dados do PIB e da distorção gritante das informações para a aprovação da Destruição da Previdência, apontam para algo em torno de R$ 700 bilhões para que se atinja a universalidade até o ano de 2033 no atendimento tanto na oferta de água canalizada como da rede de esgoto. A mídia vassala reforça a imagem de completa estagnação do setor, que somente a “varinha mágica” da iniciativa privada seria capaz de contornar.

Pelo atual marco regulatório do setor, já existem empresas privadas que atuam no saneamento básico. Os estados e municípios possuem relativa autonomia para realizar licitações e concedê-las a iniciativa privada, mantê-las com sociedades de economia mista ou até na Administração Direta. Há até mesmo entidades do terceiro setor prestando serviços de saneamento básico. No entanto, a modalidade mais comum é a celebração dos chamados “contratos de programa” entre os municípios e seus respectivos estados, com dispensa de licitação, para que a coleta de esgoto e fornecimento de água seja realizado por sociedades de economia mista estaduais (empresas híbridas com 50% + 1 de capital votante controlado pelo Poder Público). O quadro abaixo discrimina os tipos de prestadores de serviços:

Os dados do SNIS indicam que mesmo no deserto neoliberal das gestões petucanas os investimentos em saneamento básico cresceram, ainda que erraticamente e num ritmo bastante inferior ao necessário:

Não podemos deixar de observar que a velocidade da ampliação da cobertura de abastecimento de água é muito lenta, praticamente paralisando depois do aprofundamento do neoliberalismo a partir da era Joaquim Levy:

Já para o tratamento de esgoto, os dados são ligeiramente mais positivos, demonstrando uma curva de nítido crescimento da rede. Mesmo assim, a universalidade do atendimento ainda fica num horizonte excessivamente distante. Mais uma vez, o dano da contração dos investimentos públicos no setor fica patente a partir de 2015:

Para justificar a privataria, os sabujos entreguistas costumam chamar a atenção para o fato de que as empresas públicas são “cabides de emprego” ou estariam em situações econômicas precárias. Aqui a mentira é dupla. Primeiro, porque já existem empresas totalmente privadas que atuam no segmento. Segundo, porque todos os dados contábeis do segmento são razoavelmente positivos, com mais de 100% de suficiência de caixa:

Mesmo a tal difundida ideia do “cabide de emprego” é completamente desmentida pela crescente produtividade no setor medida em função de ligações realizadas por empregado:

Se as empresas de saneamento básico são em média sadias, duas perguntas precisam ser respondidas. Por que a velocidade de expansão da cobertura da coleta de esgoto e do atendimento de água é relativamente baixa? E por que tamanha sanha para privatizar esse segmento?

O consenso neoliberal que rege o Brasil há mais de 30 anos é o maior responsável pelo baixo crescimento do setor. Após a explosão desenfreada da população urbana sem planejamento durante a Ditadura Empresarial-Militar, o déficit de saneamento básico atingiu volumes vergonhosos. Nos anos 80, no momento em que a expansão industrial brasileira deveria se voltar para estes serviços públicos urbanos, fomos acometidos pela inflação do dólar e o consequente aumento dos juros denominados na moeda imperialista.  O resultado foi o colapso de nossa dívida pública e a espiral hiperinflacionária. Nos anos 90, o projeto de recolonização do Brasil é completado pela abertura econômica de Collor e pelo tripé macroeconômico – mantido em vigência até o governo de Bolsonaro. A obsessão doentia por superávits fiscais virtualmente congelou estes investimentos.

Criado durante o Regime Militar, os recursos do FGTS eram em parte destinados para investimentos (rentáveis!) em infraestrutura de saneamento básico. São uma das únicas fontes de expansão da malha de coleta de esgoto e abastecimento de água. A sanha privatista do governo neocolonial de Bolsonaro chegou até mesmo a aventar a hipótese de entregar esse patrimônio dos trabalhadores brasileiros. Os reiterados saques do Fundo na tentativa desesperada da equipe de Guedes em animar a demanda agregada minaram ainda mais a capacidade do FGTS de expandir os serviços de saneamento básico. Levando em consideração o nítido projeto de destruição dos direitos trabalhistas e dos vínculos formais de emprego perpetuados por esse governo lesa-pátria, não é absurdo dizer que os recursos do FGTS destinados à expansão do saneamento básico brasileiro serão ainda menores no futuro.

Para piorar o cenário de desolação, a criminosa PEC do Teto de Gastos limitou ainda mais a capacidade do setor público em investir em saneamento básico. Trata-se de uma regra completamente irracional, mesmo dentro dos objetivos neoliberais, pois todos os estudos a respeito do tema apontam que cada centavo gasto em saneamento economiza nove centavos em saúde pública, atestando a total falta de planejamento do desenvolvimento brasileiro. Além disso, os efeitos econômicos de investimentos no setor são extremamente benéficos para a economia como um todo, porque a tecnologia envolvida em saneamento é relativamente baixa e nacionalizada.

A entrega de um setor econômico que é um monopólio natural para a incitativa privada é extremamente temerária. Em função da própria natureza do serviço, o saneamento básico nas mãos da iniciativa privada é propenso a subinvestimento e aumentos tarifários exacerbados.

Como dissemos mais acima, a distribuição do atendimento de saneamento básico é extremamente desigual no território brasileiro. Regiões mais isoladas de nosso país têm custos operacionais bem maiores, o que implicaria menores margens de lucros ou até mesmo inviabilidade econômica para a prestação desse serviço. Embora Guedes da boca para fora tenha insistido para que as privatizações fossem realizadas com metas estipuladas de expansão do atendimento do saneamento básico contemplando tais localidades, podemos no mínimo questionar se a iniciativa privada aceitaria comprar essas unidades de negócio.

No modelo atual, bem longe do ideal, vigoram os chamados “subsídios cruzados”, nos quais as tarifas pagas em localidades mais vantajosas financiam em parte a prestação de serviços nas regiões menos lucrativas. Tendo em mente que a maioria dos municípios possui contratos de programa com sociedades de economia mista estaduais, trata-se na verdade de uma operação interna a estas empresas. Um dos casos mais notórios é o da SABESP que atende 365 dos 645 municípios do estado de São Paulo. No fundo, o sistema de subsídios cruzados permite o atendimento das pequenas cidades do interior.

Assim como na criminosa Medida Provisória editada pelo governo de Temer, a atual lei de entrega do saneamento básico impõe aos municípios a obrigatoriedade da realização de licitações abertas, contemplando inclusive a iniciativa privada. Cai por terra, portanto, a autonomia dos entes federados para decidir como devem instituir os contratos de prestação de serviços em saneamento básico. Com isso, os subsídios cruzados existentes dentro das operações das sociedades de economia mista estaduais que celebram contratos de programa se tornam praticamente inviabilizados, pois os municípios mais rentáveis (como a cidade de São Paulo) são muitos mais atrativos para o capital privado. Na verdade, a baixa rentabilidade dos investimentos nas localidades menos vantajosas será socializada, enquanto os municípios mais rentáveis terão todo o seu excedente canalizado para rentistas privados. No médio prazo, prejudica-se ainda mais a saúde fiscal do governo.

Segundo um estudo da FGV a respeito do assunto, cerca de metade dos investimentos na expansão da rede de saneamento básico se deu por meio de recursos próprios das Sociedades de Economia Mista. Considerando o ritmo extremamente lento da expansão da malha de saneamento básico, esta preponderância dos recursos próprios atesta a completa insuficiência dessa fonte para se atingir a universalidade até 2033.

Contudo, os investimentos realizados com os chamados “recursos não-onerosos” – aportes orçamentários sem retorno por parte dos entes federativos – passaram a ter uma importância maior a partir da implementação dos PACs (Programas de Aceleração do Crescimento).   Há também um peso relativo grande dos “recursos onerosos”, investimentos realizados com capital do FGTS e do FAT, remunerados pelas taxas vigentes para estes fundos.

Cabe ainda observar que os investimentos em saneamento básico realizados pela iniciativa privada praticamente acompanham as inversões públicas nesse setor. Mesmo no seu pico, dificilmente alcançaram mais do que 10% do total investido no segmento:

Como afirmamos, já existem diversas empresas privadas atuando no saneamento básico. A maioria delas presta serviços a pequenos municípios. Entretanto, há dois casos notórios de grandes empresas que atendem extensas regiões. A primeira é Aegea que realiza a coleta de esgotos e o fornecimento de água em Manaus. Além dos escândalos de corrupção envolvidos na venda da empresa – que já havia sido privatizada! – não houve significativa expansão na malha de saneamento básico da capital amazonense, que apresenta alguns dos piores índices de cobertura do Brasil: cerca de 10% para coleta de esgoto e 23% para o fornecimento de água. A Aegea também ostenta um dos maiores desperdícios de água tratada do Brasil, perdendo quase 74,6% de todo o volume transportado em seu sistema.

Outro caso emblemático é o da SANEATINS, do Estado de Tocantins. Durante sua privatização, havia grande expectativa que a entrega deste monopólio natural para a iniciativa privada implicaria a expansão do atendimento naquele estado. Á época somente 12 cidades tinham coleta de esgoto no estado. Anos depois da privatização a situação não melhorou: somente 15 dos 139 municípios do estado possuem sistema de esgoto.

Se não há nenhuma justificativa do ponto de vista econômico para a entrega do saneamento básico, como explicá-la?

Tabata Amaral e outros apologistas da destruição neoliberal como Vinicius Torres Freire procuraram conferir um verniz social para a entrega deste monopólio natural para rentistas privados. Os sicofantas liberais dizem que a retirada do peso da “máquina pública” permitirá que o saneamento básico alcance justamente os mais pobres, acabando com os privilégios dos “cabides de emprego”.  Na verdade, foi justamente as amarras colocadas sobre a soberania popular e pela mentalidade obtusa de uma suposta fiscalidade que causaram a situação absolutamente vexaminosa de nosso país na área do saneamento básico. Apesar da óbvia falsidade de seus argumentos, é interessante observar que esse tipo de cara “social accountability” a la Luciano Huck está sendo mobilizado para o aprofundamento da destruição neoliberal.

A real explicação reside nos esgotos, por assim dizer. O Intercept produziu uma extensa matéria mostrando os laços que unem o sujo lobby com interesses estrangeiros. A abominável figura de Diogo Mac Cord, o mesmo que foi na Jovem Pan defender que o Brasil deveria ser igual ao Chile, emerge como protagonista desta tenebrosa transação.  Uma “think-tank” conhecida como Water Resources Group  – organizada pelo Banco Mundial e mantido com dinheiro da Ambev, Coca-Cola e Nestlé, todos monopólios que investem pesadamente em adquirir ativos ligados à água – possui acordo de cooperação com a Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base, a Abdib, onde Mac Cord trabalhava. Logo após a publicação da MP de Temer, a primeira versão desse vergonhoso marco legal de entrega do saneamento básico, Mac Cord foi promovido de lobbysta da Abdib para Secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura, dentro do guarda-chuva do superministério de Paulo Guedes.

Outro grande lobbysta do setor é a ONG imperialista “Trata Brasil”, mantido com dinheiro de Lemann por meio da Ambev – o mesmo que possui Tabata Amaral como uma de suas vassalas – em parceria com a Coca-Cola. A teia de relações é tão complexa que a coluna “Joio e o Trigo” elaborou este mapa para ajudar na compreensão.

Por trás de toda essa imensa rede de sujeira lobbysta, aparece onipresente um “sócio oculto”. Em um mundo com taxas de lucro cada vez menores, forçando os bancos centrais das potências imperialistas a praticarem juros negativos, os imensos fundos de investimento caçam desesperadamente oportunidades de inversões rentáveis a fim de manter seus “ratings”. A BRK Ambiental é a principal dona da SANEATINS e está presente em mais de 100 municípios brasileiros. Sua composição societária é de 70% do fundo imperialista Brookfield – o mesmo que comprou a NTS apropriando-se de nossa malha dutoviária de Gás Natural – e 30% de recursos do FGTS captados praticamente sem riscos. Seus tentáculos se esparramam por quase todo território brasileiro:

A irracionalidade da entrega de nosso saneamento básico fica ainda mais gritante quando se compara ao que é feito nos próprios países imperialistas. A maioria das grandes cidades do capitalismo central está buscando reverter as privatizações feitas no passado, dado que são antieconômicas e praticam tarifas exorbitantes.

Há uma lógica no que está acontecendo no Brasil. Não é somente uma série de “retrocessos” promovidos por uma “mentalidade feudal”. O Brasil está sob ataque. O Primeiro Mundo começa a sentir o peso de décadas de financeirização e o delicado arranjo social-liberal que emergiu na crise da inflação do dólar dos anos 70 está ruindo. Os grandes conglomerados monopolistas e os fundos financistas precisam desesperadamente de investimentos rentáveis. Por isso, afundam suas Garras Imperialistas em nossas veias expostas.

Até quando vamos permitir?

(*) Gráficos, mapas e tabelas de autoria da SNIS, CERI/FGV e BRK Ambiental.