A violência no Rio de Janeiro é um problema com causas conhecidas, que são exaustivamente expostas a cada crise. O uso político da violência no Rio de Janeiro também tem causas conhecidas, que são exaustivamente expostas a cada crise.
A geografia que não permite o isolamento da pobreza em guetos afastados, como nas demais capitais, acentuando as tensões da gritante desigualdade social brasileira. Uma lei antidrogas, patrocinada pelos EUA por motivos que têm pouco a ver com diminuição dos danos destas à sociedade, que torna a atividade do tráfico especialmente lucrativa nessa cidade de geografia tão peculiar. A corrosão do aparelho policial propiciada pela sobreposição dessas duas variáveis anteriores. Eis o diagnóstico que vem à tona a cada nova crise no Rio.
Os momentos de “crise” também precisam ser bem analisados, pois, nem sempre, coincidem com surtos de violência. A crise é contínua: bandidos armados, tiroteios, guerra entre gangues, balas perdidas, chacinas e demais crimes chocantes, gerando pautas fáceis aos programas policiais que mostram o desespero e a revolta da população. Desde os anos 80, a frase “não tem como ficar pior” fecha reportagens sobre o tema.
No entanto, em alguns momentos, o noticiário passa a dar uma ênfase especial ao problema. Impressionantes cenas de criminosos fortemente armados e de rajadas de balas traçantes se tornam onipresentes em todos os jornais. Essa mudança repentina de pauta pode ser precedida de um pico nos índices de violência, mas isso não é um pré-requisito. Há um uso político do noticiário que serve a fins pouco relacionados à segurança pública.
No cenário atual, as redes sociais deram outra dinâmica a esse processo de manipulação de informações que, até pouco tempo atrás, era monopólio da mídia tradicional, como ficou claro na eleição do cambaleante xerife do bairro, Wilson Witzel, em 2018. Essa semana, tivemos outro exemplo, que gerou reações firmes, da continuidade da velha estratégia em outros meios, mostrando que os métodos foram renovados, mas o alvo, não:
Independentemente do objetivo político da denúncia da vez, a constante pressão força os governantes a se moverem. O roteiro tem um desenrolar previsível: aumento do efetivo policial, compra de mais armamentos, operações policiais violentas, intervenções das forças de segurança externas, barganhas com a mídia para “suavizar” o noticiário e, agora, manipulação eleitoral por disseminação de fake news.
Não foram poucas vezes que propostas mirabolantes apareceram nas propagandas governamentais, nos programas eleitorais e nos noticiários. Alguns até saíram do papel: “a delegacia legal”, “as UPPs” e “atirar na cabecinha” cumpriram seu papel de propaganda, mas, obviamente, não eram soluções reais para o problema. Apenas um governo apresentou um programa capaz de intervir realmente na raiz da questão: os CIEPs (Centro Integrados de Educação Pública).
Após sua primeira vitória ao governo do estado, em 1982, Brizola e seu vice, Darcy Ribeiro, iniciaram o maior programa de educação em tempo integral da história do país. Os prédios, com a singular arquitetura do projeto de Oscar Niemeyer, começaram a ser espalhados nas áreas pobres do Rio de Janeiro, com cada unidade atendendo a mil crianças que lá ficavam o dia todo recebendo, além de educação, alimentação adequada e atendimento médico e odontológico. Além disso, cada CIEP possuía em seu último andar uma moradia, onde famílias de militares eram selecionadas para lá viverem, com a condição de abrigarem em seu lar crianças abandonadas que vagavam pelas ruas do Rio de Janeiro.
Para assumir o governo, Brizola precisou enfrentar uma tentativa de fraude eleitoral, o “Caso PROCONSULT”, que contou com a participação das Organizações Globo, como mostrado por Paulo Henrique Amorim e Maria Helena Passos no livro “Plim-plim: a Peleja de Brizola Contra a Fraude Eleitoral”. No governo, Brizola ainda protagonizou outro enfrentamento com a Globo na construção do Sambódromo, o que levou a emissora a tentar sabotar os prazos da obra (que foi feita em exatos 110 dias), com enxurradas de matérias denunciando falsos problemas na estrutura de concreto, e a boicotar a transmissão do Carnaval de 1984. Cabe ressaltar que, seguindo seu objetivo principal de revolucionar a educação carioca, Brizola determinou a instalação de salas de aula sob as arquibancadas da Marquês da Sapucaí, que atendiam 10 mil crianças em período integral, evitando que a construção se tornasse ociosa fora dos períodos de Carnaval.
Com esse histórico, é fácil imaginar como atuou o jornalismo das Organizações Globo, dona da Fundação Roberto Marinho, patrona dos “Amigos da Escola”, entusiasta-mor dos “telecursos”, quando Brizola tentou eleger Darcy Ribeiro governador nas eleições de 1986, para dar continuidade ao programa dos CIEPs.
A Rede Globo, de repente, descobriu que parte do financiamento do Carnaval carioca provinha, desde sempre, do jogo do bicho. Logo, como Darcy vinha de um governo que ajudou a melhorar a organização do Carnaval, ele era o candidato dos bicheiros. E Brizola foi associado ao tráfico, pois, vejam vocês, passou a exigir da polícia que as leis do país valessem também dentro das favelas! Ao invés de arrombar a porta dos barracos com o coturno, a polícia precisaria de mandados judiciais nas ações de investigação, assim como era feito em outras regiões da cidade.
Para essa tarefa de destruir a imagem de Brizola, a Globo conseguiu um parceiro político providencial: o Partido dos Trabalhadores. A parceria não se deu apenas por dividirem votos do campo lançando candidatos inviáveis, ou pela oposição ferrenha que o partido fazia na Assembleia e nas ruas, mas por reverberarem, inclusive nas campanhas ao governo, as calúnias dos meios de comunicação contra Brizola. Em 1986, o resultado desse cerco foi a eleição de Moreira Franco, interrompendo de imediato o projeto dos CIEPs, que teria mudado a cara do Rio de Janeiro atual.
Com a derrota nas eleições presidenciais de 1989, que poderiam ter levado os CIEPs a todo o Brasil, Brizola se candidata no ano seguinte ao governo do Rio. Eleito, retoma seu projeto com força total, tentando recuperar o tempo perdido. Para se ter dimensão do esforço despendido por Brizola, no ano de 1993, seu governo investiu 48% do orçamento do estado em educação! Ao todo, construiu 515 CIEPs, além de muitas escolas técnicas e uma universidade, a UENF.
No jornalismo da Globo, essa epopeia educacional pouco foi apresentada. No período, muitas denúncias, como habitual, e as manchetes da súbita explosão da violência no governo Brizola. O noticiário tinha como foco os arrastões e muitas declarações de pessoas dizendo que a situação da violência no Rio de Janeiro “não tem como ficar pior”.
Para sentirmos o clima da época, um fato curioso foi a conhecida entrevista de Brizola ao Roda Viva em 1994, quando concorria pela última vez à presidência da República. O tema central da entrevista girou em torno da violência no Rio em seu governo. Com uma revista enrolada nas mãos, Brizola respondia a todas as questões até revelar que portava uma Revista Veja de 1981, que trazia na capa a manchete “Guerra Civil no Rio”, ilustrada com a foto de uma montanha de cadáveres, mostrando a antiguidade do problema. Outra curiosidade: em 1983, apenas 6 meses após assumir pela primeira vez o governo do estado, o próprio Brizola fora capa da mesma revista, com a manchete “O Rio com medo: a semana dos saques”.
Além da derrota na eleição presidencial de 1994, o PDT também perdeu a sucessão do governo carioca. Assumiu Marcello Alencar, do PSDB, que sepultou de vez o programa dos CIEPs. Em 1982, ficou famosa uma frase dita por Darcy Ribeiro na campanha: “Se os governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. Hoje, os cariocas colhem o efeito da derrota desse projeto e o orçamento do estado reflete essa tragédia: a Secretaria de Segurança Pública do estado absorve 12 bilhões de reais por ano e a Secretaria de Educação, 7 bilhões.
Qual o papel da mídia nisso?
Antes da internet, o monopólio midiático tornava os proprietários das concessões públicas de rádio e TV tão poderosos quanto os representantes dos poderes da República. Brizola dizia que Roberto Marinho deveria fundar o P.O.G. – Partido das Organizações Globo, para que disputasse eleições e tornasse legítima sua atuação política. O partido não foi fundado (talvez o Partido da Lava Jato seja o mais perto que tenham chegado disso) e o poder de construir a verdade conveniente aos poderosos só foi de fato abalado com o advento das redes sociais instrumentalizadas pelas novas tecnologias de dados.
No início da intervenção militar no Rio de Janeiro durante o governo Temer, a Rede Globo veiculou uma matéria no Jornal Nacional e na GloboNews, apresentando trechos de falas de governadores do Rio de Janeiro sobre o problema da violência urbana. Em ordem cronológica, igualou todos os governadores, desde 1983, mostrando o fracasso de suas políticas de seguranças, a despeito das promessas feitas. Nessa narrativa, Brizola, Moreira Franco e Marcello Alencar ocuparam o mesmo papel. O governador que criou os CIEPs e os que o enterraram foram apresentados, pela empresa que serviu de coveira ao programa, como demagogos incompetentes.
Na atual conjuntura, a manufatura dessa narrativa vem servindo a outros usuários, que a disseminam por novos meios digitais, também com nefastas intenções. E o discurso da antipolítica, embalado por tantos anos pela Globo, se torna agora a munição dos fuzis que os milicianos de terno estão apontando também para ela.