Argentina: confira a íntegra do pronunciamento de Cristina Kirchner

Esse princípio sempre batido e repetido e tantas vezes descumprido do peronismo de “Primeiro a Pátria, depois o movimento e por último os homens”, bem...é hora de transformá-lo em realidade de uma vez por todas. Não somente com palavras, mas também com feitos e, sobretudo, com condutas. Neste caso, primeiro a Pátria, em segundo o movimento e por último uma mulher – permitam-me só por um instante um pouco de humor feminista.
(José Cruz/Agência Brasil)
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Compartilhamos abaixo a tradução da íntegra do discurso de Cristina Kirchner em que anuncia sua candidatura à vice-presidência da Argentina. A chapa de Cristina Kirchner será encabeçada por Alberto Fernández. Ao final do texto encontra-se o vídeo com o discurso da ex-presidente.

Pronunciamento

“Hoje sábado dia 18 começa a Semana de Maio e no próximo dia 25, na nossa data nacional, completam-se 16 anos do dia em que Néstor assumiu como presidente de um país devastado.

Quero me dirigir aos meus compatriotas para compartilhar, como sempre, reflexões e também, claro, decisões.

Nunca me interessaram os cargos políticos, nem mesmo foram minha principal motivação. Talvez porque pertenço a uma geração que não buscava um lugar nas listas*, mas um lugar na história. Sem embargo, também essa mesma e por momentos trágica história, me fez compreender que os cargos também são ferramentas para levar adiante os ideais, as convicções e as utopias. É certo que não as únicas, mas depois de tudo, são ferramentas enfim, sempre.

Depois de ter sido duas vezes presidenta deste país – sua primeira mulher eleita como tal – e de ter ocupado distintos cargos legislativos, sempre por vontade popular expressada nas urnas, sigo mais convencida que nunca que a expectativa ou a ambição pessoal devem estar subordinadas ao interesse geral.

Esse princípio sempre batido e repetido e tantas vezes descumprido do peronismo de “Primeiro a Pátria, depois o movimento e por último os homens”, bem…é hora de transformá-lo em realidade de uma vez por todas. Não somente com palavras, mas também com feitos e, sobretudo, com condutas. Neste caso, primeiro a Pátria, em segundo o movimento e por último uma mulher – permitam-me só por um instante um pouco de humor feminista.

Pedi a Alberto Fernández que encabece a fórmula que integraremos juntos, ele coom candidato a Presidente e eu como candidata a Vice, para participar nas próximas eleições primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias…Sim, as famosas P.A.S.O.

Alberto, a quem conheço há mais de 20 anos, e é verdade, com quem tivemos também diferenças. Tão verdade quanto foi Chefe de Gabinete de Néstor durante toda a sua presidência…e eu o vi, junto dele, decidir, organizar, conciliar e buscar sempre a maior amplitude possível do governo.

Aqueles foram tempos muito difíceis, mas estes que vivemos hoje, os argentinos e argentinas, são realmente dramáticos. Nunca tantos e tantas dormindo na rua. Nunca tantos e tantas com problemas de comida, de trabalho. Nunca tantos e tantas desesperados chorando diante de uma fatura impagável de luz ou de gás. E se olharmos para o Estado…Ai, meu Deus! A dívida externa em dólares contraída em apenas 3 anos é maior que a que Néstor recebeu inadimplente. Isso sim…ainda com um agravante: quase 40% é com o Fundo Monetário Internacional.

O esmagador e desnecessário endividamento do país começa a mostrar agora os primeiros sintomas de uma realidade que será muito difícil de reverter…Especialmente se opormos os nomes e posições pessoais ao desafio de construir uma coalizão eleitoral não apenas capaz de triunfar nas próximas eleições, mas também para que aquilo pelo que se convoca a sociedade possa ser cumprido.

E essa última questão não é menor. É um princípio fundamental, portanto, evitar somar à frustração atual resultante da fraude eleitoral que facilitou a chegada de Mauricio Macri ao poder, uma nova frustração que, não tenho dúvidas, submergiria a Argentina ao pior dos infernos.

Sim…não tenho dúvidas. A situação do povo e do país é dramática. E essa fórmula que propomos, estou convencida que é a que melhor expressa o que neste momento a Argentina necessita para convocar os mais amplos setores sociais e políticos, e econômicos também, não só para ganhar uma eleição, mas para governar. Porque algo deve ficar claro a todos e todas…Tratar-se-á de ter que governar uma Argentina outra vez em ruínas, com um povo outra vez empobrecido…Está claro, portanto, que a coalizão que governe deverá ser mais ampla que a que havia ganhado as eleições.

Estou convencida que esta é a melhor contribuição que posso dar ao meu país. Lhes disse dias atrás na sede do Partido Justicialista. Nós, os dirigentes, devemos deixar de lado as ambições e vaidades pessoais, e eu estou disposta a contribuir desde o lugar que possa ser mais útil. Talvez, nesse dia quando disse isso, alguns ou algumas pensaram que era uma das tantas fórmulas de rigor, tão naturais, tão presentes sempre em todo encontro político, mas não, não é assim.

Tenho a certeza que nosso povo não espera palavras nem discursos ocos e vazios. Precisa de gestos e feitos concretos que deem certeza e segurança a uma unidade que comece a organizar suas vidas…que com tanta perversidade esse governo lhes desorganizou em pouco mais de três anos.

Creio, sinceramente, que este é o caminho.

O mundo atual e a América Latina em especial mudaram para pior nos últimos tempos. Hoje estamos em tempos graves. Tempos de disputa comercial, tecnológica, militar e política.

Nós, argentinos e argentinas, temos que ter inteligência suficiente e visão prática para que esta disputa pelo poder mundial não nos arraste a maior dependência e pobreza. Temos que saber abordá-la em benefício do nosso crescimento como país e do bem-estar do nosso povo. Podemos fazê-lo, sabemos fazê-lo. Além do mais, temos que fazê-lo.

Reitero, mais que ganhar uma eleição, necessitamos de homens e mulheres que possam governar uma Argentina que se encontra em uma situação de endividamento e empobrecimento pior que a de 2001. E que tenha suficiente amplitude de ideias e de setores políticos para representar com compromisso o interesse nacional, repito, representar com compromisso o interesse nacional, e dar resposta às necessidades mais urgentes do nosso povo.

Não se trata de voltar ao passado nem de repetir o que fizemos entre 2003 e 2015 – e de que, além de acertos, críticas ou erros nos sentimos muito orgulhosos -, mas o mundo é diferente e nós também.

Sempre pensei que governar é dar novas respostas a novos desafios, em especial aos mais jovens…vocês sabem que eles e elas são minhas fraquezas.

Governar não é apenas assinar decretos ou dar discursos. É principalmente tomar decisões que sejam compreendidas, aceitas e compartilhadas pela imensa maioria do nosso povo, que percebe que elas são para melhorar-lhes sua qualidade de vida e para que seus filhos e suas filhas e seus netos e suas netas tenham futuro.

Nos últimos anos da minha gestão, e em especial desde que me despedi do governo com uma Praça de Maio lotada de povo, como não se recorda na história argentina, tenho sido vítima da mais feroz e impiedosa campanha de mentiras e difamações contra minha pessoa, minha família e nosso governo. Não darei nomes. Vocês sambem que são e como têm feito. Eles apenas se entregam por suas expressões públicas e suas más ações.

Não é por acaso também que essas mentiras, difamação e ódio tenham servido aqueles que as instalaram para se beneficiar economicamente em limites nunca vistos. E tudo isso à custa do mais fenomenal endividamento da Nação e do pior e mais rápido empobrecimento do povo argentino.

Sem embargo, não me guiam nem o ódio e nem o rancor. Pelo contrário, minha decisão é uma contribuição à reconstrução de um país diferente, a qual tomo como uma imensa responsabilidade diante da história.

Um outro dia, quando na Sociedad Rural apresentei meu livro Sinceramente… – ele que vejo e sinto como uma contribuição para a discussão, o debate e ao conhecimento histórico dos problemas dos argentinos – propus um novo contrato social de cidadania responsável.

Esse novo contrato social não é mais nem menos que a busca de uma visão prática que produza uma base de ordem. Uma nova ordem que permita o desenvolvimento individual das pessoas dentro das condições humanas e espirituais, mas sempre, sempre dentro dos marcos de uma realização social coletiva para evitas que o esforço de cada argentino e cada argentina termine sendo devorado pelo egoísmo e pelo individualismo.

Temos que entender de uma vez por todas e para sempre que o descontentamento ou o incômodo pessoal nunca modificaram o status quo, nunca transformaram a realidade. Mas se esse descontentamento adquire etapas superiores de unidade e coordenação, logo abandona o caminho da lamentação para transformar-se no caminho da proposta.

E quero ser eu a primeira a exercer o ato de responsabilidade cidadã…Deixando de lado ambições ou vaidade pessoais, assumo com grande compromisso e responsabilidade este novo desafio, convencida absolutamente que é o melhor para o nosso povo e nossa Argentina.

Aos meus companheiros e companheiras lhes peço que estreitemos filas acompanhando esta fórmula, militando e trabalhando com alegria e esperança, porque o triunfo depende de nós mesmos e da contribuição de cada um de nós.
Eu creio, sinceramente, estar dando hoje o primeiro passo.

Compreender o presente da nossa Nação obriga a não pensar na própria sorte e destino pessoal. Mas de toda forma lhes posso assegurar que o fato de que me reconheçam, ao ponto de poder ser eleita novamente por cidadãos e cidadãs para conduzir os destinos de nossa Pátria, é reparador depois de tantos insultos e lisonjeador depois de tanto esforço.

Porém, não estamos aqui para elogios, alguém dizia que a experiência é um pente que te dão quando está careca. Mas ainda tenho bastante cabelo e uma experiência construída desde muito menina na militância política, que teve como corolário o orgulho de ter sido oito anos presidenta de todas e todos os argentinos.

Essa experiência não esteve isenta de erros, mas se transforma em um valor somente se tomada em conta e escutada. A experiência é isso, a experiência não é perfeição. Creio além do mais que serve e estimula a compreensão.

Aos meus compatriotas, que estão angustiados por perder o trabalho, sem sequer o manterem. Que estão angustiados pelos preços que não deixar de subir e as tarifas dos serviços públicos que são impagáveis.

Aos meus compatriotas que também estão preocupados porque o governo segue endividando o país numa obscena jogatina financeira de taxas de juros astronômicas e liquidando dólares emprestados.

Aos meus compatriotas que contemplam paralisados como o Estado cada vez mais se afasta do povo e somente beneficia os setores mais poderosos e ricos.

A todos e a todas lhes peço que não desmaiem, que não se resignem. Sabemos e sabem que um país melhor não é uma utopia. Que um país melhor é possível porque já o vivemos, o tocamos e o sentimos.

Reconstruir, portanto, um país para todos e todas deve ser não apenas nosso sonho, mas nosso objetivo. Amo muito a todos e todas. Cuidem-se muito.

Sinceramente, Cristina.”

* O voto para deputados na Argentina é em lista partidária.

Veja em seguida o vídeo com o pronunciamento de Cristina Kirchner:

Tradução por Ricardo Begosso.