Isolamento dos EUA mostra estabilidade no sistema internacional

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Se há uma direção no imbróglio provocado pelo assassinato do general iraniano Qasem Soleimani, ordenado por Donald Trump, pode-se dizer que ela aponta para uma surpreendente estabilidade do sistema internacional de Estados. Não há risco de III guerra mundial e nem esteve em jogo o enfrentamento entre grandes potências. Tudo indica que voltamos ao período de “paz impossível, guerra improvável”, definição de Raymon Aron para a Guerra Fria. Parece o fim dos tempos, mas é um cenário melhor do que o vivido pelo mundo entre as décadas de 1990-2000. Vigorou naqueles tempos a pax americana, sem roteiro pré-definido e no qual o mundo dependia de decisões unilaterais.

O DRONE QUE DISPAROU meia dúzia de mísseis contra Soleimani teve o efeito contrário ao pretendido pela Casa Branca. Diferentemente dos ataques ao Afeganistão e ao Iraque, em 2001-03, na esteira da Guerra ao Terror pós-11 de setembro, a ação não provocou cumplicidade entre os principais membros da OTAN. Tampouco o presidente norte-americano obteve unanimidade em casa.

UMA PESQUISA realizada pelo jornal USA Today constata que 55% dos norteamericanos considera que seu país está menos seguro depois do ato brutal da sexta (3). E a maioria democrata na Câmara colocou-se abertamente contrária à ação, enquanto prossegue o processo de impeachment contra o chefe do Executivo. França, Alemanha e Inglaterra evitaram fazer coro com o rito imperial. A frase “Hoje, vou pedir à OTAN que se envolva muito mais no processo do Oriente Médio”, proferida por Trump na manhã da quarta (8), é uma confissão desse revés. Mesmo com o bombardeio iraniano às bases de Ain Al-Asad e Erbil, o mandatário não se sentiu à vontade para promover retaliações. Expica-se; além de as bases estarem em processo de esvaziamento, a ação foi previamente anunciada, o que levou os EUA a retirarem seu pessoal dos dois locais. Ninguém morreu ou se feriu.

É BEM POSSÍVEL que os ataques tenham visado mais responder a um vasto clamor de vingança que se disseminou pela sociedade iraniana do que fustigar o poder imperial. As autoridades de Teerã sabem que uma agressão frontal aos Estados Unidos representa quase um suicídio, diante da total assimetria de forças. A possível morte de centenas de jovens militares americanos, de outra parte, teria o condão de inverter a bússola sobre quem seria o agressor nessa história. Trump parece ter deixado o assunto de lado.

POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, o Irã é, até agora, o vencedor político do episódio. Além do isolamento do inimigo, Teerã atraiu para si a simpatia de grande parte do Oriente Médio – à exceção dos previsíveis Israel e Arábia Saudita – e criou um efeito teflon contra as denúncias de autoritarismo fundamentalista que com razão volta e meia lhe são dirigidas. Não bastasse isso, parecem ter ficado para trás os enormes protestos de massa que acometeram o país nos dois últimos meses do ano passado, motivados por aumentos nos preços de combustíveis. Eles resultaram na morte de quase 150 pessoas.

APÓS O ATAQUE ESTADUNIDENSE, passou a valer a máxima de “união nacional contra o agressor externo”. O governo de Hassan Rouhani parece ter conseguido realizar uma versão árabe da Guerra das Malvinas, com sucesso. Como se sabe, em abril de 1982, a ditadura militar argentina, em seus estertores, ocupou militarmente o arquipélago tomado pela Grã Bretanha um século e meio antes. O decadente regime tentou ali sua última cartada, uma guerra patriótica que revertesse o crescente descontentamento popular. A derrota abreviou o fim da tirania militar, que cairia no ano seguinte.

O GESTO DE TRUMP foi além e conquistou outro tento. O sentimento de vítima acabou por passar o pano nas seguidas denúncias de corrupção do governo de Adil Abdul-Mahdi, no Iraque, e também apagar as mais de 400 mortes ocorridas também nos últimos meses em protestos maciços nas grandes cidades.

A PARTIR DA QUARTA (8), os principais atores em cena parecem querer encerrar a parte mais quente do espetáculo, passando a uma fase de acirramento do cerco econômico (Trump) e escalada verbal (Irã). As chances de Teerã fechar o estreito de Ormuz são mínimas e até agora a disparada dos preços do petróleo não ocorreu na escala anunciada pelos alarmistas.

HEDLEY BULL, examinando a cena internacional há mais de quatro décadas no seu “Sociedade anárquica”, destacou que a estabilidade do sistema é obtida num quadro de equilíbrio de poder planetário. Pensando em termos globais, é o que aparentemente está acontecendo. China e Rússia não entrarão diretamente na disputa. Bull sublinha que:

“CONSIDERE-SE (…) a função exercida na manutenção da ordem internacional pela posição especial das grandes potências. Elas contribuem para a ordem internacional mantendo os sistemas locais de hegemonia dentro dos quais a ordem é imposta a partir de cima, colaborando para administrar o equilíbrio global de poder e, de tempos em tempos, impondo sua vontade coletiva a outros Estados”.

ASSIM, SE HÁ UMA ESTABILIDADE geral no sistema global, isso não quer dizer que no subsistema regional a situação esteja controlada. Se para os atores envolvidos, o melhor negócio é parar por aqui, é possível que grupos extremistas – com ou sem ligação diretas com os Estados – tomem iniciativas que possam tensionar a região. A até agora misteriosa queda do jato ucraniano pouco depois da decolagem em Teerã coloca ainda pontos de tensão no quadro geral. Só a absoluta irresponsabilidade e falta de percepção das autoridades iranianas poderia levá-las a alvejar um alvo civil de um terceiro país sem relação direta com os fatos. Monta-se aqui uma guerra de informações que ainda pode crescer muito.

O ASSASSINATO DE SOLEIMANI não deve ser subestimado. Tratava-se de figura de proa do regime iraniano. De outra parte, há que se pensar com frieza. Sem desprezar o papel dos indivíduos da História, é preciso atentar para o fato de que forças armadas são dirigidas coletivamente. É possível que a liderança política e militar de Soleimani seja inigualável. Mas o aparato bélico não padecerá de falta de comando e haverá a manutenção da tática atual com sua substituição.

O EQUILÍBRIO DO TERROR, conceito também saído da Guerra Fria, é assustador. Mas é equilíbrio, é estável e previsivel.

UMA NOTA FINAL: Além de Israel e Arábia saudita, por motivos óbvios, quem deu apoio irrestrito ao tresloucado gesto de Donald Trump foi Jair Bolsonaro, a essa altura elevado á condição de pária global. Ao contrário de ganhar destaque, o brasileiro desponta firme para levar o país à total irrelevância na cena global. Além de prejudicar seriamente o comércio brasileiro com o exterior.

Por Gilberto Maringoni